No Mercado Municipal de Goiás, as duas estão sentadas lado a lado. São estátuas instaladas para lembrar duas poetas que orgulham a antiga capital goiana. Mais de um século atrás, esta cena poderia ser vista na antiga Vila Boa. Talvez conversassem sobre vidas e projetos; talvez confidenciassem segredos; possivelmente debatiam poesia. Cora Coralina e Leodegária de Jesus, nascidas num intervalo de apenas 12 dias em 1889 – Cora em 20 de agosto, Leodegária no dia 8 – foram poetas com destinos bem diferentes.Nos 130 anos de Cora também são lembrados os 130 anos de Leodegária. Pelo menos é o que vem ocorrendo nos últimos anos, após décadas de esquecimento em relação a essa poeta que publicou apenas dois livros e cuja obra foi eclipsada pela vizinha famosa da Casa da Ponte. Leodegária foi uma poeta mais precoce que Cora, entrando para a história como a primeira mulher a publicar um livro em Goiás. Esse vanguardismo, porém, foi soterrado por tragédias, preconceitos e ignorância sobre sua poesia. O que está mudando.No Mercado, as estátuas das duas escritoras estão ali porque ao lado foi inaugurada a Livraria Leodegária de Jesus. “A memória de sua obra estava morrendo”, diz uma das proprietárias, a professora de literatura Goiandira Ortiz. Ao lado das amigas e também professoras Ebe Lima Siqueira e Edna Ázara, Goiandira vem se empenhando em manter acessíveis a obra e a história da escritora. “Ela foi uma figura da maior importância para a escrita produzida por mulheres em Goiás”, salienta. História que começa num dos casarões de Goiás.“Meus pais moram nesta rua e quando passei em frente deste imóvel, percebi que era o que eu estava procurando.” O artista plástico Gabriel Caetano adquiriu a antiga casa de Leodegária, onde ela viveu antes de se mudar, na juventude, de Goiás para Minas Gerais. Ao comprar a casa, ele a reformou e a transformou em espaço cultural, onde instalou seu ateliê. “A intenção é fazermos desta casa uma residência para artistas que venham a Goiás ou que queiram essa tranquilidade para criar”, informa o produtor Carlos Cipriano, namorado de Gabriel.Com uma placa na porta que informa que a escritora ali viveu, o espaço ganhou outra vida. “Reformamos com a intenção de deixar tudo muito aconchegante”, diz Cipriano. “Banquei os reparos. O teto já tinha caído e do madeiramento do telhado, só aproveitamos duas vigas”, recorda Gabriel. Mas a estrutura da casa, com suas marcas rústicas, permaneceram. Residência estreita e comprida, nos fundos ela guarda um jardim, onde já há intervenções artísticas. Em uma das salas, destaque para a imagem da escritora, como a abençoar o novo uso de sua casa.Com a livraria e o espaço cultural relacionados ao nome de Leodegária, mais pessoas passaram a conhecê-la. Na última semana, uma feira de poesia, com bancas de livros de editoras independentes, agitou o mercado. O evento foi mais uma iniciativa de colocar o nome da poeta na pauta. Ela é uma das patronas da Academia Goiana Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag), mas apenas em espaços mais eruditos seu nome é mencionado sem surpresas. A intenção é mudar essa situação.Goiandira Ortiz tem tomado outras atitudes nesse sentido. “Ajudamos a republicar o livro Lavras de Goiás III, o volume que reúne os dois livros de Leodegária, Coroa de Lírios e Orchideas. Além disso, no volume há um ensaio da professora Darcy França Denófrio, importante para compreender sua poesia. Este livro estava fora do catálogo, mas com a Editora Cânone, colocamos de novo no mercado.” É uma das poucas edições em que a poesia de Leodegária pode ser apreciada.Em 2014, o Ateliê Tipográfico da UFG, em um trabalho quase artesanal, reeditou o título Orchideas, lançado originalmente – e até então uma única vez – pela Editora Ave Maria, em 1928. Da primeira edição de Coroa de Lírios, o trabalho pioneiro publicado em 1906, não há exemplares disponíveis, mas o volume de poesia foi recuperado, da editora Livro Azul, de Campinas, para a antologia Lavras de Goiás. E assim tem sido feita essa garimpagem, com textos esparsos em jornais de Goiás, Bahia e interior paulista, onde Leodegária chegou a publicar algo.“O pesquisador Basileu França também escreveu livro sobre Leodegária”, diz Goiandira. “Mas tudo isso é muito pouco, ainda mais quando comparamos com a projeção que ganhou os versos de Cora. Elas foram contemporâneas, mas tomaram rumos diferentes. Enquanto Cora teve reconhecimento merecido, Leodegária não, o que é pena”, analisa. Na livraria que leva o nome da escritora, ela tem sido alvo de curiosidade. Todos querem saber quem é a senhora sentada ao lado de Cora. Já é um começo.Poemas:AmarAmar é ter no peito um paraizo;É trazer dentro d´alma um céo de flôres.É sofrimento occulto num sorriso;É navegar feliz num mar de dores.Vago clarão dulcissimo, indecisoQue inunda a alma toda de fugores;Uma mistura de soluço e riso;É provação, mas feita de dulçores.Amar… é bem o sacrifício mudo;É ser feliz, desventurado embora.Amar… é bem o sacrifício mudo;Grato soffer que nunca martyrisa,Que os infelizes corações enflora,E regenera e eleva e divinisa! Manhã na RoçaDesperta a natureza… Um claro sol douradoSe mostra altivo e bello, às portas do levante.Acorda, na floresta, o inquieto povo aladoE a brisa do sertão suspira farfalhante.Floresce o lírio azul, na várzea, e, mais distante,Na bruma, surge alem o monte illuminado.Vagueia, na planicie, o manso gado erranteE a voz do camponez retumba, no vallado.E enquanto a madre-silva o calice desataE vae a estrella d’ Alva, aos poucos, descorandoAo som cadencioso e brando da cascata,Formosa roceirinha alegre, como a aurora,Levando a enxada ao hombro, esbelta, sae cantandoUma canção de amor, pela campina a-fora. -Imagem (Image_1.1870881)