“A arte, a ficção, a cultura sempre renascem. A gente retoma e sempre retomará.” Esta declaração foi dada pela atriz Marieta Severo ao Canal Brasil ainda no início do governo Bolsonaro, prevendo o imenso desafio que o setor cultural teria diante de um governo que prenunciava que boicotaria a área, como realmente fez. Mas ela poderia ter sido dita por qualquer artista brasileiro das décadas de 1960 ou 1970, quando o Brasil mergulhou em uma ditadura militar que censurou terrivelmente as artes. Curiosamente, essa vigilância não impediu que obras de grande impacto fossem lançadas no período.Em 2023, livros de reconhecida importância, como As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, o lírico Água Viva, de Clarice Lispector, o inovador Avalovara, de Osman Lins, o volume de memórias Balão Cativo, de Pedro Nava, e o romance de estreia de Rubem Fonseca, o Caso Morel, estão completando 50 anos desde sua primeira publicação. Isso quer dizer que esses títulos que têm seu lugar reconhecido na literatura brasileira chegaram ao público num sangrento 1973, momento crítico da vida nacional, batizado, de anos de chumbo.Esse aparente paradoxo não foi isolado no que se refere à literatura brasileira durante a ditadura militar, instalada com o golpe de 1964 e só terminada com a eleição de Tancredo Neves pelo Congresso Nacional, em 1985. Os livros, em geral, conseguiram escapar mais vezes dos crivos bizarros da censura, que não perdoava jornais, músicas, montagens teatrais e até telenovelas. Num estudo sobre o tema, o pesquisador Alcmeno Bastos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identifica esse fenômeno como fruto de estratégias bem traçadas por autores e autoras para despistar seus possíveis perseguidores.Leia também:- Sucesso de livro do príncipe Harry reforça fascínio por bastidores da realeza- Atual situação dos yanomamis reacende representação indígena nas artesNo livro A História Foi Assim: O Romance Político Brasileiro nos Anos 70/80, Alcmeno analisa 34 obras de diferentes ficcionistas, como Antônio Callado, Roberto Drummond e o goiano José J. Veiga, buscando razões para que títulos de flagrante cunho político tenham conseguido fazer suas trajetórias sem serem incomodados pelos militares, o que não costumava acontecer com outras manifestações culturais. Em sua visão, isso ocorria porque os censores fiavam-se na informação de que os trabalhos eram pura ficção, sem uma relação mais estreita com a realidade, não enxergando metáforas e alusões nelas contidas.Ao mesmo tempo, o pesquisador alerta para que a confusão entre realidade e ficção, entre História e Literatura não seja feita, mesmo que possa haver laços muito estreitos entre essas áreas. Ainda assim, tais paralelos não passaram incólumes, por exemplo, na TV, onde a primeira versão da novela Roque Santeiro, da TV Globo, foi proibida de ser exibida no dia de sua estreia, em 1975. Canções de compositores como Chico Buarque foram picotadas em seus versos considerados subversivos. Alguns artistas, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram expulsos do País.Uma outra explicação para que menos livros tenham sido barrados era o pequeno número de profissionais no Serviço de Censura Federal. De acordo com o projeto Memórias da Ditadura, mantido pelo Instituto Vladimir Herzog, a censura prévia aos livros começou com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, mas entre 1970 e 1974, havia apenas 17 censores para avaliar toda a produção e as traduções. Para dar vazão a tanta demanda, os censores deveriam ser ao menos 120. Com isso, os critérios de seleção do que poderia ou não ser publicado eram falhos e muitos não eram vistoriados.Sim, a censura era política, mas também ocorria no campo dos costumes, banindo obras que os responsáveis do governo por avaliar os trabalhos consideravam imorais. Ao lado das pornochanchadas, que responderam por boa parte da produção do cinema nacional nos anos 1970 depois que os diretores de perfil mais combativo, como Glauber Rocha e Cacá Diegues, foram sabotados, os livros foram das poucas produções que conseguiram mais liberdade para ousar em temas íntimos. Isso é ainda mais notável quando lembramos como era o ambiente da época, de perseguição e medo.Mas medo não foi uma palavra que entrou na criação de As Meninas, em que Lygia Fagundes Telles consolida o peso de seu nome na literatura, produzindo um enredo liderado por mulheres que se afirmam contra regras e hipocrisias. Relações homoafetivas, consumo de drogas ilícitas e discursos que se voltavam contra qualquer tipo de autoridade são alguns dos exemplos mais brandos de ousadias. Lygia, porém, foi muito mais longe. Suas protagonistas são jovens universitárias que vivem num pensionato, exatamente o ambiente de onde saíam tantos opositores ao regime militar.Para além do cenário, o universo onde essas universitárias transitam corresponde a tudo aquilo que o governo militar tentava deslegitimar. Lygia tanto sabia disso que inclui no livro uma descrição minuciosa de uma cena de tortura e não se furta a fazer referências explícitas a um contexto de forte repressão, social e individual, sobre as pessoas. É uma espécie de grito ao mesmo tempo de denúncia e liberdade que a autora produz num romance que, como se tudo isso não bastasse, é uma obra-prima de arquitetura formal, de desenho de personagens de múltiplas facetas e de debate sobre situações mais amplas.Já Clarice Lispector opta, em Água Viva, livro lançado também naquele turbulento ano de 1973, por um caminho mais intimista, mas igualmente intenso, priorizando sensações que as mulheres pouco expunham até então. Todos os sentidos estão em plena atividade nesta obra que foge completamente das convenções literárias, abrindo-se a interpretações que podem ser um tanto desconcertantes para os mais puristas – ou moralistas. Biógrafo de Clarice, o jornalista Benjamin Moser pondera que Água Viva é uma criação que explora sons e aromas, um dos títulos mais ousados da escritora. Será que os censores entenderam?O mesmo pode-se perguntar sobre Avalovara, considerada a obra-prima de Osman Lins, uma vez que é um dos trabalhos com engenharia formal mais complexa já realizados em nossa literatura. Com oito eixos temáticos baseados em temas universais e atemporais, Osman intercala prosa e poesia e propõe uma série de enigmas narrativos, convidando os leitores a entrar num jogo instigante e que exige atenção, já que une mundo real com a linguagem, transformando sentidos. É um livro barroco, que talvez o regime não tenha visto como problemático.Quanto a O Caso Morel, de Rubem Fonseca, o que salta aos olhos é a forma aberta, abrupta e obsessiva com que o autor explora atos repugnantes no enredo que envolve um inspetor de polícia, um escritor de ficção e um artista acusado de crimes terríveis. O mundo cão nunca foi o alvo principal dos censores da ditadura, bastando lembrar os livros-reportagem publicados por José Louzeiro naquele período, como Aracelli, Meu Amor (1976) e Pixote: Infância dos Mortos (1977). Aliás, sobre Fonseca pesa a acusação de que teria ajudado a fazer propaganda contra o governo João Goulart, derrubado no golpe de 64, mas o autor teve o conto O Cobrador censurado em 1978 e seu livro Feliz Ano Novo também foi vetado na época.Os vetados e os liberadosDurante a ditadura militar, alguns autores foram duramente perseguidos, dentro de uma lógica que alvejava nomes conhecidos do campo da esquerda, logo de cara rotulados de subversivos. Eram os casos de Darcy Ribeiro e Caio Prado Jr., dois dos principais pensadores da sociedade brasileira. Em 1985, quando a censura caiu, a Universidade Federal do Rio de Janeiro compilou, por meio de um projeto de sua Escola de Comunicação, quase 100 títulos que foram proibidos de circular naquele período. E lá estão Darcy e Caio Prado, acompanhados de teóricos e líderes comunistas.As obras do arquiteto da Revolução Bolchevique, Vladimir Lênin, foram banidas do País naquelas duas décadas e caso a repressão encontrasse um exemplar desses na casa de alguém, o dono estaria em maus lençóis. O mesmo vale para outras personalidades e autores que serviam de referência ou inspiração para grupos opositores, como as Obras Escolhidas, de Mao Tsé-Tung, A Internacional Comunista Desde a Morte de Lênin, de Leon Trotsky, Socialismo e o Homem em Cuba, de Ernesto Che Guevara, e A Aventura Boliviana: Che Guevara, de Fidel Castro. Os livros de Karl Marx então, nem pensar.Darcy Ribeiro, que deu ao País uma contribuição do porte de O Povo Brasileiro, teve censurado o livro A Universidade Necessária. Caio Prado Jr., autor de clássicos como Formação do Brasil Contemporâneo, entrou na lista de censurados com A Revolução Brasileira e O Mundo do Socialismo. Nesse grupo, estavam ainda o historiador Eric Hobsbawm, os filósofo Louis Althusser e Régis Debray, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, e o psiquiatra Frantz Fanon, todos com publicações impedidas, assim como trabalhos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Jânio Quadros.Os dramaturgos Plínio Marcos e Nelson Rodrigues (um de esquerda, outro mais alinhado à direita) tinham seus textos perseguidos não em forma de livro, mas nas montagens teatrais de suas peças. Aliás, o teatro era uma das artes mais visadas pelo regime militar, bastando lembrar o famigerado Comando de Caça aos Comunistas, uma milícia paramilitar de extrema-direita que promovia atentados, invadia salas de espetáculo, ameaçava e chegava a agredir os artistas de grupos resistentes. Dias Gomes, comunista notório e autor de teatro de renome que migrou para a TV, também sentiu o peso da censura. Muitas vezes, pediram sua cabeça na Globo, sem sucesso.Outros autores, entretanto, mesmo com sua militância histórica a partidos de esquerda, não foram tão incomodados no regime militar. Jorge Amado é um exemplo interessante nesse sentido. Durante a Ditadura Vargas, o autor baiano chegou a ter livros queimados em praça pública. Nos anos de chumbo, porém, ele lançou alguns de seus maiores sucessos, como Tenda dos Milagres, em 1969, e Tereza Batista, Cansada de Guerra, em 1972, além de Tieta do Agreste, em 1977. Isso sem contar a adaptação para o cinema de Dona Flor e Seus Dois Maridos, que bateu recordes de bilheteria em 1976.Outro exemplo nesse sentido é o do jornalista Antônio Callado, que lançou em 1967 seu clássico Quarup, em que revela, por meio de uma história de ficção, belezas e mistérios do universo indígena da região do Xingu. Callado foi preso pelo regime em 1965 durante um protesto, ao lado de outros autores e intelectuais, num grupo que ficou conhecido como Os 8 da Glória, em referência ao bairro carioca onde tudo aconteceu. Nessa turma estavam o diretor Glauber Rocha, o poeta Thiago de Mello e o jornalista e romancista Carlos Heitor Cony, que também publicou livros ousados nos anos 1970.Cony é um caso à parte, já que foi uma das primeiras vozes a se manifestar contra o arbítrio do golpe de 64, poucos dias depois que ele foi impetrado, tendo seus olhos abertos pelo amigo Carlos Drummond de Andrade durante uma caminhada que faziam por Copacabana e viram tanques do Exército na famosa praia. Seu livro Pessach, a Travessia, publicado em 1967, é uma metáfora dessa tomada de consciência, no qual ele elege um homem premido pela repressão como seu protagonista. Em 1974 ainda viria o quase temerário Pilatos, romance escatológico e bem-humorado em que partes íntimas ganham outras conotações, inclusive políticas.Não se pode esquecer ainda uma trinca de obras do goiano José J. Veiga, que falavam diretamente de regimes e situações que imprimiam medo às pessoas, mas que os censores parecem não ter compreendido. A Hora dos Ruminantes, de 1966, A Sombra dos Reis Barbudos, de 1972, e Aquele Mundo de Vasabarros, de 1982, mergulham no realismo mágico – arma, aliás, muito utilizada por escritores latino-americanos para enfrentar governos autoritários – para criar alegorias de projetos políticos sombrios, ameaças difusas e comunidades intimidadas diante de algo a que não podem reagir. Uma descrição perfeita de ditaduras e ditadores.Naquele período, um editor se destacou por sua postura corajosa de enfrentamento ao arbítrio. Ênio Silveira, editor do selo Civilização Brasileira, não se intimidou com várias ações que o regime tomou contra sua empresa e seu criador, mantendo uma linha de publicações progressistas que quase ninguém ousava fazer temendo as represálias. Em 1965, ele chegou a ser preso por ter oferecido uma feijoada ao ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, um dos grandes oponentes dos militares. Em 1966, um Inquérito Policial Militar definia Ênio como "sujeito disposto a mudar a ordem política e social para implantar a ditadura comunista". Ainda assim, ele manteve sua editora aberta e influente.Turbulências de 1973O Brasil vivia o último ano do governo do general Emílio Garrastazu Médici, certamente o mais cruel de toda a ditadura militar brasileira. Nos porões do regime, opositores eram torturados e mortos. Nos anos anteriores, a luta armada ganhara força e naquele 1973 a Guerrilha do Araguaia, que elegeu a região do Bico do Papagaio (na época, divisa do norte de Goiás com o Pará) como foco irradiador de uma resistência rural, sofria reveses depois de operações do Exército na região. Os corpos de diversos guerrilheiros só foram identificados muitos anos depois e alguns jamais foram encontrados.Na vizinhança, a coisa não estava melhor, sobretudo no Chile, destino de grande parte dos homens e das mulheres que caíram na clandestinidade por conta da perseguição do governo militar brasileiro. A nação onde viviam tantos exilados viu a gestão socialista de Salvador Allende ruir no dia 11 de setembro, com o bombardeio do Palácio La Moneda, sede do governo, e a morte do presidente. O general Augusto Pinochet tomava o poder, com apoio dos EUA, promovendo um banho de sangue com assassinatos políticos em massa e inúmeros crimes contra a humanidade.Também lá, há uma forte ligação daquele evento com a literatura. O presidente Allende era primo do pai daquela que seria uma das autoras mais populares do País e com fama mundial, Isabel Allende (não confundir com a filha do próprio líder deposto, que também se chama Isabel e depois entrou na política). E poucos dias após o golpe, o poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura, notório militante comunista e amigo próximo do presidente morto, sucumbiu a um câncer. Houve a suspeita de que ele pudesse ter sido envenenado no hospital, mas essa hipótese foi refutada por exames posteriores.Ditaduras e literaturaUma ditadura, involuntariamente, contribuiu para o surgimento de um clássico brasileiro. Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, é o relato da experiência que o autor alagoano viveu ao ser detido no presídio da Ilha Grande durante o governo Vargas em 1936, acusado de ser colaborador da Intentona Comunista de 1935, tentativa de golpe para derrubar o presidente promovida por quadros de uma esquerda mais radical. Graciliano não tinha qualquer envolvimento. Ainda assim, mesmo quase um ano encarcerado, ele lançou, naquele mesmo ano de 1936, o livro Angústia e já no Estado Novo que marca a Ditadura Vargas, publica Vidas Secas.Vargas tinha essa dicotomia. Seu governo perseguiu vários escritores e muitas vezes teve atos de cunho fascita, como fazer fogueiras com obras que seu temido Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) condenava. Por outro lado, mantinha em seu ministério nomes como José Américo de Almeida, um dos maiores intelectuais de seu tempo e autor de A Bagaceira, obra que prenuncia a Geração de 30 nordestina, na qual o próprio Graciliano estava, assim como Jorge Amado e Rachel de Queiroz (aliás, a escritora era parente e amiga do primeiro general-ditador do regime militar, o ex-presidente Castello Branco).No Ministério da Educação e Saúde (sim, as pastas eram unidas nos anos 1930), Vargas colocou Gustavo Capanema, político que tinha uma identificação intensa com a cultura. Basta dizer que seu principal colaborador era ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, que se mudou para o Rio de Janeiro por conta desse trabalho. Uma das principais iniciativas daquele tempo foi a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), em 1937. O órgão, renomeado de Iphan, foi criado por pessoas como os escritores Rodrigo Melo Franco de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. -Imagem (Image_1.2608137)