? Veja se você não vai esquecer do seu Deus! Agora vai apanhar juntamente com o rapaz seu protegido!Quem grita é o delegado Miguel Lamano, de Ribeirão Preto, numa sala de interrogatórios. Quem ouve é Madre Maurina Borges da Silveira, religiosa da Ordem Terceira de São Francisco, presa na cidade do interior paulista acusada de envolvimento com grupos armados de esquerda que faziam oposição à ditadura militar brasileira.A cena se passa no final de novembro de 1969, período mais cruel da repressão política nos anos de chumbo. O delegado cumpre a ameaça. Bate no rosto e na cabeça da freira. Esta não é a primeira sessão de tortura a que Madre Maurina é submetida nesses que são os dias mais infernais de sua vida cristã.A descrição de todos esses tormentos e muitos outros está numa carta que a religiosa enviou da Penitenciária de Tremembé, em 17 de dezembro de 1969, endereçada ao então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, denunciando as práticas desumanas nos porões da ditadura. Nela, a freira conta que foi assediada, humilhada, espancada, tomou choques elétricos.A correspondência revela, antes de tudo, um dos episódios do período que mais causaram indignação na Igreja Católica. A detenção e os abusos levaram à excomunhão de dois delegados ? além de Miguel Lamano, também Renato Ribeiro Soares ?, estimulou nomes de peso a entrar na luta contra a tortura e marcou a vida de uma mulher e de toda sua família.A religiosa morreu este ano, no dia 5 de março, em Araraquara, num convento onde viveu seus últimos anos. Tinha 84 anos. Durante décadas, Madre Maurina foi econômica ao falar daquela terrível experiência, que culminou com seu banimento do País, um exílio de quase dez anos e a volta ao Brasil para um julgamento militar que a absolveu.As lembranças eram muito dolorosas. Boatos foram disseminados sobre o que aconteceu durante sua detenção, o que só aumentou a dor diante dos sofrimentos pelos quais passou. Quando foi presa, dos dez irmãos da religiosa, seis moravam em Goiânia. Hoje, há cinco vivos, três na capital goiana e dois em Minas Gerais. Após anos de silêncio, alguns deles decidiram falar sobre o episódio. Os irmãos lembram os sofrimentos de Madre MaurinaFrancisco Plácido Borges, irmão caçula de Madre Maurina e que mora em Goiânia, se lembra do exato momento em que soube da prisão da freira. "Eu estava na casa de um amigo, quando deu o plantão na TV. Maurina era uma das pessoas presas em Ribeirão Preto acusadas de ter algo com a luta armada." Foi um choque. "Maurina não era e nunca foi comunista."Francisco esteve na cidade paulista em 1968 e notou que o ambiente ali era inquieto. No Lar Santana, instituição franciscana na qual sua irmã era madre superiora, havia um entra e sai constante de jovens. Um grupo havia alugado um porão da instituição e esse espaço foi usado para reuniões e armazenamento de material de propaganda.Madre Maurina, em seus depoimentos à Justiça Militar e nas poucas entrevistas que concedeu sobre o episódio, nunca negou que cedeu o porão para os estudantes. Ela acreditava que as reuniões ali eram do Movimento Estudantil Jovem (MEJ), de caráter católico e fins pacíficos. Eles, porém, eram membros das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN).Naquele tempo, o interior paulista era importante foco de resistência armada ao governo militar e não foram poucas as ações na região. O pivô no caso de Madre Maurina foi o estudante Mario Lorenzato, membro da FALN. Para combater os grupos, os militares montaram na região aquela que ficou conhecida como Operação Bandeirante.O comandante da ofensiva era o temido delegado Sérgio Paranhos Fleury, acusado de torturas e que chefiava o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, o Dops. Quando houve a operação para a captura dos guerrilheiros, Madre Maurina viu a foto de Mario nos jornais e se alarmou. Ela decidiu abrir o porão ocupado pelo grupo.Numa entrevista que deu há 15 anos, para um jornal de Ribeirão Preto, Maurina relata que encontrou no local material de propaganda de esquerda. Temendo que aquilo prejudicasse a ordem das franciscanas, decidiu queimar tudo. Foi seu grande erro. Segundo seu relato, poucos dias depois, foi intimada a depor no Quartel Militar de Ribeirão Preto. Eram 14 horas do dia 25 de outubro de 1969. Ela não podia imaginar que ali começava seu calvário.Misael Neto, outro dos irmãos da religiosa que vivem em Goiânia, viajou para Ribeirão logo que soube da prisão, mas não o deixaram entrar. Ele foi ao Lar Santana e encontrou as outras freiras em pânico. "Elas não atendiam a campainha do convento. Tive que pular o muro para entrar", conta ele. Lá dentro, viu as religiosas cuidando do jardineiro do local. "Ele estava todo machucado. Os militares queriam que ele denunciasse o envolvimento de Maurina com o grupo terrorista."O único que conseguiu falar com ela durante sua detenção foi o primogênito da família, padre Vicente Plácido Borges, que foi pároco por várias décadas na pequena Conceição das Alagoas, conhecida como Garimpo, no Triângulo Mineiro, perto de Uberaba. Ele morreu há dois anos. De acordo com outro dos irmãos da madre, o frei dominicano Manoel Borges da Silveira, hoje residindo em Juiz de Fora, os guardas permitiram esse encontro porque padre Vicente chegou de batina e com muita humildade.Os guardas avaliaram que não haveria maiores problemas, mas a conversa foi monitorada. Misael, porém, garante que padre Vicente só conseguiu contato com Maurina quando ela já estava no Presídio de Tremembé, sob os cuidados das colegas de hábito da Irmandade do Bom Pastor, que cuidavam do presídio paulista na época.Frei Manoel atesta a inocência da freira. Ele próprio esteve na mira dos militares em razão de pregações consideradas esquerdistas. Frei Inocêncio, como era chamado então, tinha grande proximidade com nomes bem combativos de sua ordem naquela época, como Frei Betto. "Quando ela foi presa, eu estava de mudança para Conceição do Araguaia, no Pará. Não estive mais perto de tudo porque isso poderia piorar a situação", relata. Ele se lembra que assistia ao noticiário da TV querendo saber novidades sobre a prisão de sete frades dominicanos quando soube da detenção da madre. "Foi algo totalmente inesperado." Testemunho da barbárie"Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas palavras, venho relatar a V. Exa. as torturas a mim infringidas, por agentes da Polícia de São Paulo, com a aquiescência de delegados de Ribeirão Preto." É com essa frase que Madre Maurina Borges inicia, em carta enviada ao Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, em 1969, um relato impressionante de até onde chegava a violência política.A correspondência faz parte dos arquivos pessoais de Frei Manoel Borges, irmão da religiosa. Foi conseguida após uma investigação feita pela jornalista Denise Assis, do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, que teve acesso, há quase uma década, aos arquivos militares referentes à religiosa. Na carta, a madre salienta que só a escreve para que outras "pessoas inocentes não sofram injustamente."Na correspondência, ela conta que, no Quartel de Ribeirão Preto, garantiu não saber de atividades terroristas do grupo de jovens que se reunia no Lar Santana, instituição que dirigia na cidade. O depoimento tornou-se um pesadelo. "Não me foi possível continuar [a responder às perguntas], pois interrompiam-me a cada instante, com gritarias, ameaças." Os policiais diziam que ela conseguiria suportar as torturas porque "a vida das freiras já é uma tortura."Chamaram-na de cínica e de "freira do diabo". Disseram-lhe para se ajoelhar e rezar por seu destino. "Você não é filha de Deus. Fica sabendo que teremos o prazer de prender bispos e padres", continuaram. Era 25 de outubro de 1969 e as agressões das próximas horas não seriam apenas verbais. De acordo com o relato da madre, ameaçaram-na com "um exame ginecológico" e queriam que ela confessasse ser amante de Mário Lorenzato, líder do grupo que motivou sua prisão.Delegado Fleury"Responda afirmativo, é o suficiente, estará resolvido. Vai me dizer que é diferente dos outros!" Quem falava era ninguém menos que Sérgio Paranhos Fleury, delegado que se tornou símbolo da tortura no regime militar. "Maurina olhou para ele e disse que o conhecia de imagens da imprensa", diz seu irmão, Francisco Borges.O delegado teria se irritado com o comentário, mas não colocou suas mãos sobre ela. "Ele não torturava. Ele assistia aos outros torturando", conta Francisco. Diante da resistência da freira em confessar culpas que não tinha, começaram os choques. A corrente elétrica entrava pelos dedos das mãos e estremecia todo o corpo da religiosa.Após essa primeira sessão, Madre Maurina foi levada a uma cela, onde estavam duas presas. Durante dez horas seguidas, ela ouviu os gritos das torturas aplicadas aos outros detidos. A freira conta na carta que sentia pavor quando o tilintar das chaves anunciava que outro preso estava sendo buscado para interrogatório.AssédioDe acordo com seu relato ao ministro Buzaid, na madrugada do dia 26 de outubro de 1969, ela foi reconduzida à temida sala. Lá estava um homem louro. Ele colocou uma arma em sua mão e ordenou que Maurina o matasse caso não fosse católico. Maurina desconfiou que estava bêbado. Depois, começou o assédio. "Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu te quero muito. Vem pertinho de mim. Pelo amor de Deus, fala tudo. Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher."Enquanto falava tudo isso, o torturador a abraçava. Ela não cedeu. Chegou a correr um boato de que Madre Maurina teria sofrido violência sexual, abortado ou dado à luz um filho fruto de suposto estupro. As pessoas que estiveram com a religiosa naquele período (família, companheiras de cela) não confirmam essa versão."Isso é uma mentira", afirma seu irmão Francisco Borges. "Não houve nada disso", reforça frei Manoel Borges, outro irmão. "É pura invenção. Isso não aconteceu", completa Misael Neto, um dos irmãos mais próximos da religiosa. Dom Paulo Evaristo Arns, então bispo-auxiliar de São Paulo, também desmentiu a história todas as vezes que falou sobre o assunto em entrevistas.ExcomunhãoNaquela noite, a madre não conseguiu convencer seus algozes de que seu ideal era apenas religioso. No mesmo dia 26, ela foi transferida para Cravinhos, onde ficou quase um mês incomunicável. No final de novembro, ela voltou a Ribeirão para outro "depoimento". Na verdade, para mais pancadas e xingamentos. Ao confirmar as torturas, o bispo de Ribeirão, Frei Felício da Cunha, excomungou dois delegados envolvidos na violência.Pesquisadores do período dizem que essa ação surtiu efeito. Boa parte dos militares era católica e, por incrível que pareça, temia tal punição. Madre Maurina não foi mais torturada. "Ela levou muitas pancadas na cabeça. Isso prejudicou sua saúde, afetou a glândula hipófise e lhe trouxe problemas", revela seu irmão Misael Neto.Sabendo dos riscos que ela corria na prisão, Misael tentou de todas as formas ver a madre. "Falei até com o bispo de Ribeirão Preto e ele tentou me ajudar, deu alguns telefonemas, mas os delegados não permitiram de jeito nenhum", recorda. Nem a família, nem ninguém tinha acesso à religiosa. Prisão, claustro e banimento do BrasilDepois do Quartel de Ribeirão Preto e do presídio em Cravinhos, Madre Maurina foi transferida para o Presídio Tiradentes, na capital paulista, onde ficavam muitos presos políticos. Dividiu a cadeia com mulheres acusadas de terrorismo.A freira só conseguiu alguma segurança nesse período quando foi levada para a Penitenciária Feminina do Tremembé, em São Paulo, cuidada pelas irmãs do Bom Pastor. "As freiras ameaçaram entregar as penitenciárias do Trembembé e do Carandiru, que elas também cuidavam, se Madre Maurina não fosse para lá", relata Misael Neto.Assim que chegou, a freira foi acolhida no claustro do convento. Foi lá que ela soube, surpresa, que havia sido incluída na lista dos presos políticos a serem trocados pelo cônsul do Japão, Nobuo Okuchi, sequestrado em 11 de março de 1970. "Ela não queria ir de jeito nenhum", testemunha seu irmão, frei Manoel Borges. "Aquele grupo fez propaganda contra a ditadura com o nome dela", diz Misael.Algemada, ela entrou no avião que a levaria ao México no dia 14 de março de 1970, onde seria recebida pelas irmãs de São José de Lyon. "Eu, meu irmão padre Vicente e minha mãe pegamos um táxi em Minas, mas chegamos duas horas depois de ela embarcar", relata Misael. Ele conta que Maurina, ao entrar naquele avião, não sabia para onde ia e nem como sobreviveria. "Ela foi banida com uma mala de roupa e só."No exterior, a saúde da freira ficou frágil, perdendo parte da visão e sofrendo um grave acidente. "Ela caiu de um ônibus em movimento. O resgate achou que havia morrido, quando perceberam que ainda tinha pulso", conta Francisco Borges. "Ela bateu com a cabeça no meio-fio", complementa Alice Fontes, mulher de Misael e próxima à madre.Maurina rogou várias vezes para voltar ao País. Em outra carta ao ministro Buzaid, ela escreveu que "atormenta-me a perspectiva de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer." O processo militar MJ-56 773/71 analisou o caso de Madre Maurina. Em julho de 1971, a sentença da 2ª Auditoria da 2ª Comissão da Justiça Militar permitia o retorno da freira ao País. A medida nunca foi cumprida.A carta enviada pela religiosa ao ministro apelando por sua volta é de outubro daquele ano. Buzaid pediu uma análise do Serviço Nacional de Informação (SNI), que avaliou que o perdão traria ganhos ao governo. O Conselho Militar entendia que o nome da madre só foi incluído no episódio do sequestro do cônsul japonês por uma "manobra de guerra psicológica, por parte dos militares da subversão."O caso foi apreciado pelo próprio presidente Médici, em 1971, que se calou. Já no governo Geisel, em 1976, o então Ministro da Justiça, Armando Falcão, trabalhou contra seu retorno. Para ele, isso abriria "um precedente que poderá estimular o pedido de outros banidos para serem julgados no País."Madre Maurina só voltou em 1979, com a anistia. "Tenho eu obrigações com o meu País, demonstrar minha inocência", escreveu a freira a Buzaid em 1971. A Igreja trabalhou para que ela não fosse anistiada, já que não havia crime a ser perdoado. "Ela foi um dos poucos presos políticos julgados por um Tribunal Militar, que a absolveu por unanimidade", ressalta Misael.Madre Maurina poderia ter pedido indenização ao governo brasileiro. Muitos ganharam uma reparação polpuda e pensões vitalícias. Ela nunca quis esse dinheiro. Trauma compartilhadoA prisão, tortura e o banimento do País de Madre Maurina atingiu em cheio sua numerosa família, composta por pais católicos que viram 4 de seus 11 filhos seguirem a vocação religiosa. "Aquilo teve reflexos terríveis, principalmente em papai e mamãe", lamenta Misael Neto, um dos irmãos da freira. Sua mulher, Alice Fontes Borges, se lembra que a matriarca Francelina Teodoro ficou doente ao receber a notícia. "Ela caiu numa espécie de depressão. Ficou muito abatida."Para a freira, uma das maiores dores de viver no exílio era a distância que tinha da família. Nessa época, quatro de seus irmãos, já casados e com filhos, moravam em Goiânia. Outros seis permaneciam em Minas. Mesmo com as dificuldades e os perigos que a época oferecia a todos, foi mantido meio de contato entre a religiosa no México e seus parentes no Brasil. "Eu escrevia todos os meses para ela dando notícia dos seus pais. Escrevia representando sua mãe, dona Francelina", informa Alice.Ela fala que Maurina adorava a correspondência e pedia que não parasse. Muitas vezes respondia as cartas. Esse contato mostrou, por outro lado, que a vigilância sobre a madre continuava atuante. "Ela reclamava que muitas das cartas chegavam abertas", informa Alice. "Os militares liam tudo antes", confirma Misael, que se esforçou para acompanhar o caso de perto."Eu fui a Ribeirão várias vezes saber notícias. Quando houve o anúncio da prisão, fui o primeiro a chegar lá. Nunca tive medo que sobrasse alguma coisa para mim. Eu sempre quis dar apoio à Maurina naquele momento." Misael lembra que comprou uma passagem de avião a prestação para vê-la no México. "Eu não tinha condições para fazer aquela viagem."PerdaNo retorno da freira ao País, ele e seus irmãos Francisco Borges, frei Manoel Borges, a freira beneditina Iracema Borges (cujo nome em sua ordem religiosa é Irmã Maria) e padre Vicente Plácido estavam no aeroporto esperando-a chegar. A imprensa também estava lá para registrar o regresso da única freira presa, torturada e exilada durante o regime militar brasileiro. O decreto de seu banimento perdeu validade com a Lei da Anistia e ela retornou em 1979.Ao voltar ao Brasil, no entanto, Madre Maurina não pôde rever toda a família. Seu pai, Antônio Borges, havia morrido quatro anos antes. "Papai era muito religioso. Quando ele soube, rezava o tempo todo, calado, no canto dele", lembra Francisco. "Para um homem no final da vida ver a filha freira ser presa, foi um golpe muito duro. Quando lhe contaram, ele disse apenas uma frase: "Deus sabe o que faz". Para ele, cadeia era lugar de bandido, não de uma filha sua, ainda mais sendo freira. Ele chorou e rezou muito", confirma frei Manoel.Misael diz que seu pai era caladão, reservado. Ao saber da prisão da filha, a primeira coisa que fez foi pegar um terço para rezar em seu quarto. "Tentamos poupar meus pais dos pormenores mais fortes, como a questão da tortura. Mas eles acabaram sabendo de muita coisa. Nós também fomos muito surpreendidos. Quando o vizinho de nossa casa em Conceição chegou correndo para falar que havia ouvido no rádio que Maurina tinha sido presa, a gente pensou que fosse algo menos grave, que fosse só uma prisão. A gente não sabia da tortura."Coube à Irmã Maria dizer o que havia ocorrido mais claramente. As ordens religiosas, naqueles anos de chumbo, já estavam informadas sobre o que poderia ocorrer com alguém que fosse pego pela ditadura. Havia um embate entre governo e Igreja por conta dessa questão. "Foi aí que a gente percebeu que a coisa era muito séria", destaca Misael.Quando a visitaram no exílio, em 1972, os irmãos Misael e Francisco encontraram a freira em uma situação bem mais favorável do que aquela dos meses de incerteza no Brasil. "Ela não tocava no assunto de sua prisão. Ficou muito feliz porque estava nos esperando e éramos as primeiras pessoas da família que ela via no exílio. Ficamos 14 dias no México", recorda Misael.DesabafoEm outro momento, em conversa com frei Manoel, Maurina fez um desabafo. "Ela contou o que aconteceu e chorou muito", recorda Manoel. "Ela falou dos choques nos dedos e contou que os torturadores diziam que a Igreja não estava ligando para sua situação, que não adiantava clamar por Deus. Ela respondia que não precisava chamar por Deus porque Ele já estava presente naquela sala de torturas e via tudo o que era feito ali. E que ele saberia cobrar por todas aquelas barbaridades."Segundo frei Manoel, Madre Maurina conseguia, no final da vida, tocar nessas lembranças com menos trauma, com maior tranquilidade. "Ela perdoou a todos." Os sofrimentos impingidos pela ação dos militares à religiosa e à sua família, sobretudo seus pais, não foram esquecidos por todos. "Para ser sincero, de coração, eu não perdoei não", admite Misael Neto."Não perdoei os militares pela injustiça que cometeram e não perdoei aquele grupo de esquerda por ter envolvido a Maurina em tudo isso." Ele explica que ficou ainda mais revoltado quando as Forças Armadas de Libertação Nacional sequestraram o cônsul japonês e pediram que libertassem Madre Maurina em troca da vida do diplomata. "Aquilo complicou tudo. Ela teria a chance de provar sua inocência aqui no Brasil, como aconteceu depois. Os dois lados usaram a Maurina num jogo de propaganda", avalia. Igreja denunciou tortura da freiraO envolvimento de setores da Igreja Católica na luta armada contra a ditadura sempre foi polêmico. Os casos mais notórios foram os dos frades dominicanos presos. Um deles, Frei Tito, sofreu torturas bárbaras. Outros, como Frei Betto, foram perseguidos e vigiados.A Igreja sempre teve horror ao comunismo, mas encampou campanhas contra torturas praticadas contra opositores do governo. A prisão de Madre Maurina foi emblemática. Ela não estava entre os suspeitos de subversão e as violências que sofreu mostraram que os critérios dos militares poderiam ser imprevisíveis.Alguns creditam ao episódio o engajamento de d. Paulo Evaristo Arns ? que visitou a freira na prisão e no exílio ? no combate às barbáries do regime. O frei dominicano Manoel Borges, irmão de Maurina, acha que o caso levou a posições mais firmes do clero. Frei Manoel conta que seu parentesco com a religiosa era conhecido. "No Pará, um militar me perguntou se eu era irmão de Maurina."Há quem acredite que a prisão de Madre Maurina se transformou em arma de propaganda para os dois lados. Sua prisão foi uma forma de criminalizar o clero, que incomodava com seus insistentes pedidos de fim da tortura. Já a inclusão do nome da religiosa na lista dos presos políticos a serem trocados pelo cônsul japonês sequestrado, à revelia da madre, poderia, de acordo com pesquisadores do período, ser uma manobra para enfatizar a violência do regime, colocando a abusiva prisão de Madre Maurina em evidência. "Ela salvou minha vida"Depois de toda sorte de violência e dor, a jovem Áurea Moretti, na flor da idade ? tinha 19 anos ? era jogada no chão da cela. Seu único conforto era o consolo que Madre Maurina, sua companheira de infortúnio ? não de ideologia ? lhe dava. "Foi por conta dela que eu consegui sobreviver", afirma a ex-militante do grupo armado FALN e que hoje coordena programas de saúde em Ribeirão Preto.A tortura marcou o primeiro encontro entre a comunista e a freira católica. "Ela me abraçava. Chorei muito no ombro dela e ela no meu", conta a enfermeira que, tantas vezes, teve suas feridas cuidadas por Madre Maurina. Áurea se recorda dos sofrimentos da religiosa, dos choques elétricos e humilhações. Seus tormentos físicos, ainda assim, foram menores do que os de mulheres que chegaram a ser estupradas, postas em paus-de-arara.Os tormentos da alma, porém, eram talvez mais agudos. "Nós éramos muito humilhadas, mas acho que era pior para ela, que era freira", avalia a ex-presa. Maurina e Áurea foram transferidas juntas para o presídio Tiradentes, hoje transformado em museu, em São Paulo. Lá, elas se separaram. A freira foi para a penitenciária de Tremembé. Áurea, para o Carandiru.Algum tempo depois, Áurea retornou a Tiradentes e na cela havia outras presas. Uma delas era uma moça de classe média, filha de imigrante, que havia caído na clandestinidade. Seu nome: Dilma Rousseff. Hoje, aquele pedacinho do inferno tem uma placa com os nomes das pessoas que por ali passaram. Lá estão gravados os de Madre Maurina e de Dilma. Elas não chegaram a conviver nesse período."Eles odiavam as mulheres", diz Áurea, sobre seus torturadores. "Rasgavam nossas roupas, jogavam água, nos davam choques." Depois da anistia, Áurea e Maurina tiveram alguns contatos. A religiosa ficou feliz quando soube que a enfermeira comunista havia se casado na Igreja Católica e batizado os dois filhos."Não é bem uma conversão", brinca. "Estou mais aberta à espiritualidade." Na prisão, Madre Maurina foi proibida de comungar e recebeu hóstias "contrabandeadas" de uma pessoa que ia ao presídio ministrar sacramentos às outras presas. "Ela não era comunista coisa nenhuma, não estava na luta armada. Eu era e disse isso num depoimento no processo dela", relata Áurea. Pela freira, ficou a eterna gratidão. "Havia dias que eu não queria mais viver. Ela salvou minha vida."