Triste visionário. É assim que a historiadora Lilia Moritz Schwarcz define o escritor e jornalista Lima Barreto, cujo centenário de morte é lembrado neste mês de novembro de 2022. Autora da mais recente biografia sobre esse vulto literário que nunca ganhou a importância que sempre mereceu, ela salienta as experiências vividas por um homem que sofreu tantas agruras e com elas construiu uma obra que aborda, de maneira pungente e atemporal, misérias que não resolvemos neste um século desde sua partida. E a mais patente delas é o racismo, estruturalmente arraigado na sociedade brasileira.Neste domingo, Dia da Consciência Negra, é uma excelente oportunidade, portanto, para recordar que Lima Barreto deveria ser uma leitura obrigatória, não só em escolas e círculos letrados, mas nos debates que buscam identificar encruzilhadas políticas e sociais nas quais ainda estamos perdidos, propondo soluções e revisitando um passado cujo eco no presente é notório. “Lima Barreto é um autor que pode ser usado transversalmente, que escreveu romances, crônicas, contos, diários, cartas. É um universo literário múltiplo que ele apresenta”, pondera Lilia, em um vídeo gravado para o lançamento de seu livro.Homem negro que foi ampla e abertamente discriminado na sociedade intelectual carioca em que atuou, vítima da depressão e do alcoolismo, Lima Barreto, mesmo em contextos tão adversos, conseguiu deixar como legado uma das obras mais criativas e instigantes da literatura brasileira no século 20. Em um processo que demonstra a qualidade de seus escritos, suas produções conseguem a façanha de parecerem cada vez mais atuais à medida que o tempo passa. Daí vem o visionarismo a que se refere sua biógrafa no título do livro que demandou uma década de pesquisas e leituras contemporâneas de seus textos.“Fiz novas perguntas ao Lima. As perguntas de nossa geração. O Brasil tem se batido por direitos civis, que achávamos que estavam assegurados, mas não estavam não”, explica Lilia no mesmo vídeo, fazendo questão de citar a outra grande biografia escrita sobre Lima Barreto, de autoria de Francisco de Assis Barbosa, publicada em 1952. Era um outro Brasil, portanto, cujos intérpretes pareciam crer, em larga medida, que realmente existia por aqui uma espécie de “democracia racial” simplesmente porque houve um maior nível de miscigenação da população. Ledo engano, ao qual Lima Barreto jamais sucumbiu.A capa da nova biografia, feita pelo artista plástico goiano Dalton Paula, dá a dimensão dessa outra leitura nacional que Lima Barreto já nos entregava nas duas primeiras décadas do século passado. Segundo Lilia, revelar uma iconografia mais fiel às denúncias, aos protestos, à existência árdua do autor, foi um desafio. “Em muitas fotos, Lima não se reconhecia, porque havia um processo de branqueamento, algo comum naquela época. Nas imagens que o mostram no Manicômio Nacional, onde foi internado duas vezes, vemos um Lima sequestrado”, ela explica, na entrevista publicada no site da editora Cia. das Letras.A solução foi mostrar um Lima Barreto que teve influência na imprensa da então capital da jovem República, em jornais de grande circulação no Rio de Janeiro, mas que nunca abriu mão de sua identidade para alcançar isso. Uma postura altiva e independente, que causava incômodos em muitos de seus pares, que o viam como um estranho no meio. A cor escura de sua pele era, certamente, o maior foco dos ataques e desprezos que sofreu, o que resultou em outros problemas que tal perseguição sistemática causou. As oportunidades que recebeu na vida, ele as aproveitou, mas nem isso foi suficiente para livrá-lo do racismo.Filho de ex-escravos, Lima perdeu a mãe ainda muito jovem. Seu pai foi um famoso tipógrafo da época e que se viu sem mercado de trabalho logo após a Proclamação da República – afinal, era um notório monarquista, protegido pelo Visconde de Ouro Preto, que garantiu educação esmerada ao seu filho. João Henriques terminou por desenvolver problemas mentais, o que prenuncia um destino pelo qual o filho Lima também passaria no futuro. Nascido em 1881, Lima tinha 7 anos quando assistiu, ao lado do pai, no Paço Imperial, a princesa Isabel ser ovacionada logo após a assinatura da Lei Áurea, em 1888.Leia também:- Juiz nomeia outro no lugar de cotista e causa protesto na UFG- Ieda Leal defende a criação do Ministério da Igualdade Racial para combater o racismo no Brasil- Para além do lugar de falaA festa histórica, porém, nunca turvou seu olhar para a realidade dos negros no Brasil, algo muito longe de uma celebração. “Liberdade era uma palavra que eu desconfiava e não confiava”, escreveu ele em um de seus diários. Essa mesma postura está patente não só em suas crônicas, muitas delas de caráter aguerrido, sem se curvar a condescendências artificiais ou bajulações de qualquer espécie, e também em sua obra ficcional. Esta, aliás, tem uma ligação profunda com sua própria vida. Muitos de seus romances e contos revelam correspondência entre as atribulações de seus personagens e os percalços do escritor.Seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em 1907, tem no protagonista uma projeção do autor. A trajetória desse personagem se inicia com uma mãe que fora escravizada, com os estigmas relacionados à cor de sua pele, chegando às duras provas do jovem que “se descobre negro”, com toda a carga de preconceitos que o racismo generalizado lhe impunha. Esse mesmo homem negro terá, depois, o desafio de lidar com os conchavos e boicotes de um meio profissional impiedoso, o da imprensa, algo que Lima Barreto também conheceu de perto, o que lhe valeu muitos ressentimentos.Lima Barreto, aliás, desempenha um papel importante para o registro e a crítica de como o jornalismo se comportava durante as primeiras décadas da República, em retratos muitas vezes implacáveis de seus colegas de redação. Claro que isso provocou reações, sobretudo quando se pensa que o autor dos petardos era um homem negro, geralmente alguém que as classes dominantes desejavam – ou exigiam – ver numa posição subalterna, jamais como uma voz ativa a contestá-las. Isso fez Lima Barreto ser malquisto por muita gente, mas ele preferiu suportar essas represálias a abrir mão daquilo que acreditava.O preço que pagou foi alto, sem dúvida. Ele encontrou no álcool um pouco de conforto e se viciou. Ainda jovem, já apresentava um aspecto desgastado por conta da bebida. Isso também acionou outros gatilhos. Lima Barreto temia ter o mesmo fim do pai, considerado louco. E assim foi tratado quando teve os primeiros sintomas inquietantes. Talvez a medicina moderna não o tratasse como um “alienado” como ocorreu em 18 de agosto de 1914, quando deu entrada pela primeira vez no Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. Ali dentro, sua depressão ganhou novos e mais graves contornos.Dessa experiência terrível, que se repetiria entre 1919 e 1920, surgiram muitos textos. Um deles, o romance inacabado O Cemitério dos Vivos. O mais impressionante deles é Diário do Hospício, só publicado pela primeira vez em 2010. Como aponta sua biógrafa, Lilia Schwarcz, nesses momentos o autor já não discernia bem realidade e invenção. Na obra de ficção, assina como Lima Barreto; nos diários pessoais, algumas vezes diz ser Vicente Mascarenhas, o personagem de seu romance. Uma confusão causada pelo alcoolismo e pelo tratamento dado a ele. O autor morreu em 1º de novembro de 1922, sem se recuperar.Temas centrais de uma obra versátilAlém de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o tema do racismo é abordado em muitos outros momentos na vida do literato e jornalista de Lima Barreto. E isso até o fim, como atesta seu derradeiro livro publicado em vida, Clara dos Anjos, a história de uma mulher negra que ele transformou em seu alter-ego feminino. Movida pela esperança, Clara acalenta diversos projetos, mas todos eles vão sendo dinamitados por sua dupla condição de discriminada: ser do sexo feminino e ter a pele escura. É um verdadeiro libelo sobre como a discriminação social e racial tolhe as oportunidades das pessoas do subúrbio.Lima tinha essa leitura muito efetiva de como a sociedade se dividia. Ele não se deixava seduzir por discursos vazios, preferindo fiar-se na realidade do que via e vivia. O escritor pautou sua carreira nas letras e, principalmente, no jornalismo, por essas questões que, de tão ignoradas, tornam-se invisíveis à maioria. Suas crônicas e artigos abordavam os indivíduos pobres e seus dramas, revelavam os crimes que sofriam, a força da lei que era exercida com mais volúpia sobre quem não podia se defender devidamente, denunciavam situações de injustiças, de perseguições, de ausência de humanidade.Ao mesmo tempo, Lima era dono de uma ironia cortante, que mirava as altas rodas, os homens e mulheres que pareciam se achar acima de tudo e de todos. Muitos de seus contos e romances vão nessa direção. O mais notório deles é O Triste Fim de Policarpo Quaresma, no qual ele faz uma homenagem ao visionário que foi seu pai, elencando todas as incompreensões que sofreu. Lima Barreto aproveita, porém, para também ridicularizar os novos poderosos da República – nem o temido Floriano Peixoto, presidente que ficou conhecido como Marechal de Ferro dada a violência de seu governo, é poupado.Policarpo Quaresma poderia até ser considerado uma espécie de alucinado, mas isso só acontecia porque a sociedade não estava preparada para aceitar uma pessoa tão pura de propósitos. Quem seria o louco, portanto? Em sua obsessão em acabar com as formigas, Policarpo mal disfarça a alegoria que faz entre saúvas e políticos oportunistas, corruptos e autoritários: “Ou acabamos com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”, bradava. É também um alerta sobre o que definia como “patriotadas”, gente que diz “amar a nação”, mas apenas a prejudica. Um Brasil da República Velha que mantém enorme atualidade.Os políticos também são o alvo de outro de seus livros, Numa e a Ninfa. Um advogado entra para a vida pública e se notabiliza por fazer discursos de grande impacto. As pessoas não desconfiam, porém, que quem os escreve é Edgarda, sua esposa. Certa vez, ele resolve improvisar e o resultado é um desastre. Para tentar reverter a situação, o marido pede à mulher o melhor discurso que ela já escreveu. Um acaso, porém, revela a Numa que a esposa é infiel e que o amante é o verdadeiro autor dos discursos. O político prefere manter tudo como está, desde que continue a ter os textos que marcam sua ascensão.Hipocrisia e indignidade que se revelam sob um desenho que beira o cômico. Essa fórmula é amplamente explorada por Lima, como em O Homem que Sabia Javanês, a história de uma fraude, uma vez que o funcionário público que afirma conhecer o exótico idioma se vale dessa mentira para poder galgar postos de expressão na carreira diplomática. A falta de ética do personagem é também uma afronta aos dotes intelectuais daqueles se deixam enganar por um embusteiro, revelando que altas personalidades, tão vaidosas, são, muitas vezes, mais tacanhas do que aqueles que os enganam com seus golpes.A Nova Califórnia traz o personagem Raimundo Flamel, nome que remete a antigos mestres da alquimia, que chega a uma pequena cidade, chamada Tubiacanga, onde haverá uma descoberta que vai atiçar a cobiça de todos: ouro. Entre os personagens, Lima Barreto espalha referências nada elogiosas a alguns de seus desafetos, realçando a vaidade que intelectuais e homens com cargos de poder apresentavam. O intelectual, o falso militar, o empresário, tipos que são colocados numa espécie de saco de gatos onde a lei do mais forte se impõe e todos tramam contra todos às escondidas, buscando interesses venais.Se você está achando esses enredos familiares, talvez se recorde de uma novela de sucesso da Rede Globo, chamada Fera Ferida. O autor Aguinaldo Silva compila muitas das narrativas de Lima Barreto para elaborar essa produção da teledramaturgia, mantendo nomes de personagens (a exemplo do alquimista Flamel), intrigas e até a mesma cidade onde tudo se passa, Tubiacanga. Mais uma prova da perenidade da obra de quem foi uma voz possante contra os desmandos da República recém-proclamada, deste autor que não acreditava na instituição do casamento e que denunciou o racismo sem meias palavras.Vítima de racismo até o fimEm 1917, Lima Barreto escreveu uma carta ao intelectual, jurista e político Rui Barbosa apresentando sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. O Águia de Haia – apelido que Barbosa ganhou por seu desempenho no tribunal internacional sediado na cidade holandesa de Haia, onde atuou – foi seco, sem direito a contestações. O pleito do autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma sequer seria analisado porque ele não teria cumprido os trâmites formais para a candidatura. Será mesmo? Lima Barreto tentou, nos cinco anos que lhe restavam de vida, ingressar na ABL mais duas vezes. Foi rejeitado sempre.Essa decisão repetida de negar ao escritor a chance de portar o fardão de imortal pode ter muitas explicações. Mesmo tendo sido fundada por Machado de Assis, um autor negro, mas que teve sua figura “embranquecida” no decorrer do tempo, suspeita-se de que haveria um elemento racista nas recusas. Há outro, talvez mais forte, de cunho moral e social. A ABL seguia uma premissa do próprio Machado de que a instituição deveria manter “boas companhias” e que seus membros precisavam se portar com “absoluta respeitabilidade pessoal”. Os escritores não pareciam ver isso em Lima Barreto, alcoólatra e “louco”.Se o próprio Lima Barreto denunciava o racismo permeado em toda a sociedade, não seria diferente nos meios literários ou jornalísticos. O processo de abolição da escravatura contou com negros de imensa importância, como Luiz Gama e José do Patrocínio, mas eles permaneceram exceções à regra. Era muito raro um negro nas universidades, em altos postos da administração pública, em profissões liberais de status. E a literatura de um país tão marcadamente negro como o Brasil ostenta essa disparidade. Ainda que nosso maior escritor seja negro, os autores pretos foram e continuam sendo minoria em nosso cânone.Pode-se lembrar de nomes como o poeta catarinense Cruz e Sousa, grande representante de nosso simbolismo, ou de Carolina Maria de Jesus, ex-empregada doméstica que trouxe a realidade dura das favelas para nossas livrarias com seu Quarto de Despejo. Os negros e as negras do Brasil, porém, estiveram muito mais presentes em nossas letras apenas nos enredos de autores brancos, vistos, muitas vezes, sob as lentes de estereótipos. É assim em O Mulato, de Aluísio de Azevedo, ou em O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. As agruras vividas por Lima Barreto são mais um atestado do quão racista fomos e ainda somos.Leia também:- São Paulo ganha mural em homenagem à black music para celebrar Dia da Consciência Negra- É preciso falar sobre racismo, sempre!- Preconceito de gênero e racial