O corre-corre dos carros e os prédios que foram erguidos em seu entorno podem até desfocar a paisagem da portentosa casa modernista vizinha da Praça Cívica. Quando foi erguida, em 1962, a residência destacava-se de longe na Rua 82, no Setor Sul de Goiânia. O imóvel pode não ser a primeira construção residencial em estilo modernista surgida em Goiânia, mas é uma das poucas que ainda estão de pé com moradores cativos que lhe dão vida e resistência.Famosa casa do escritor e folclorista Bariani Ortencio, a residência ilustra um período de efervescência da arquitetura modernista em Goiânia. Projeto assinado pelo arquiteto goiano Eurico Calixto de Godoi, a construção resiste ao tempo dentro de um grupo seleto de habitações que sofreram nenhuma ou poucas modificações em seus projetos originais. Apesar do pulso e ideais do movimento art déco fundamentais para os primeiros traçados e edifícios públicos da então nova capital de Goiás, o modernismo marca a chegada de uma nova era de modernidade na cidade.“As plantas, modelos estéticos de fachada, material construtivo e até mesmo estrutura das residências modernistas apresentavam novos conceitos baseados na ‘nova era’ de modernização vivida naquele momento. Significando, assim, uma completa inovação do modo de morar”, aponta a pesquisadora Renata Lima Barros, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Goiás. Em suas pesquisas, a estudiosa investiga as casas históricas erguidas na região central da cidade.A morada de Bariani Ortencio reflete muito bem os princípios da arquitetura modernista presente nas residências de Goiânia. O projeto assume a horizontalidade característica na obra de Eurico Godoi, com implantação longitudinal com volumetria prismática em forma de “L” em dois pavimentos. O escritor não foi o primeiro morador da residência. A casa pertencia a Eurípedes Ferreira, dono de uma imobiliária em Goiânia, e sua esposa, que possuía uma confecção localizada dentro da própria residência. Bariani chegou no local cinco anos após ela ser construída.“Antes de vir para essa casa, morava em uma residência menor, na Rua 1, com minha esposa e mais seis filhos. Precisava de um lugar maior. Lembro da primeira vez que pisei aqui e fiquei impressionado com a espacialidade do lugar. Hoje a casa ficou ainda maior, já que moram apenas eu e minha filha”, rememora Bariani. Ao longo dos anos, o escritor fez poucas alterações no projeto original, com destaque para o pavimento térreo, onde existe hoje uma grande varanda.Aos 97 anos e imerso na casa sem poder sair por conta do isolamento social, Bariani fez de sua morada uma espécie de museu pessoal. Painéis com fotos de personalidades da política, cultura e esporte estão colados na parede. A biblioteca se transformou em Instituto Cultural e Educacional. O escritor também aluga o jardim e área da piscina para eventos sociais. “Manter e preservar a história da cidade é a garantia da nossa identidade, de quem somos e do lugar onde habitamos. Essa casa faz parte de algo maior.”Preservação Enquanto Brasília, capital do modernismo brasileiro, começava a dar os primeiros passos rumo a sua construção, Goiânia já apresentava arquitetura modernista em residências no início dos anos 1950. “As casas modernistas caracterizam-se pelo uso da forma pura, ausência de ornamento, fechamentos em vidro, o uso de pé direito duplo, planta livre com terraços e pátios, grandes escadas de acesso e a valorização de materiais como o concreto e o ferro”, explica a pesquisafora Renata Lima.As particularidades das residências modernistas podem ser vistas na casa de Abdala Abrão, localizada na Av. 84, próxima à Praca Cívica. Antiga sede do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por quase dez anos, a residência foi projetada pelo arquiteto e artista gráfico David Libeskind, o mesmo que assina o projeto do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, em São Paulo. Com a transferência do Iphan no final de 2019 para o prédio histórico art déco da antiga Procuradoria-Geral da Fazenda, o imóvel agora está aberto para locação.No outro lado do Centro, na Av. Paranaíba, o arquiteto David Libeskind também assina a casa modernista da família Lousa, ainda hoje muito bem preservada. A residência foi construída em 1955, mesmo ano de nascimento de Ana Maria, que ainda hoje habita a construção histórica. Ao longo dos anos, a goiana viu o Centro transformar-se e diversas casas da Rua 9 sendo demolidas. Brincar no alpendre e ter contato com a rua é algo que se perdeu com o passar das décadas. “A vizinhança, o mercado, os imóveis. Tudo mudou muito. Mas nós entendemos que a preservação da casa também faz parte da nossa memória”, destaca.Mémorias ao vento Curiosos que passam pela Rua Dona Gercina Borges podem até se perguntar como a volumosa casa modernista na esquina da Alameda dos Buritis chegou ao estado de degradação que atualmente se encontra. Em ruínas, a residência ilustra o período de ascensão do movimento modernista em Goiânia. Em 2018, a habitação sofreu um incêndio e atualmente serve de abrigo para pessoas em situação de rua. O mesmo acontece com a residência localizada na Av. 84, no Setor Sul, antiga sede da Secretaria Municipal de Cultura.“É sempre importante pensar na cidade como um local de memória, pois seus espaços são dotados de sentimentos e seu desaparecimento inclui apagar também fatos, seja de maneira intencional ou não”, explica a pesquisadora Renata Lima Barros, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFG. Em suas pesquisas e mapeamento das casas históricas de Goiânia, a profissional conta que o maior desafio dos estudos foca no desaparecimento das construções. “Em um dia fotografamos uma residência, após semanas, quando retornamos ao local, algumas já estavam completamente modificadas, abandonadas ou até mesmo demolidas”, diz.Outras casas modernistas de Goiânia, a exemplo da antiga residência de Benedito Umbelino de Souza, projetada pelo arquiteto Luís Osório Leão em 1961 e localizada na Alameda Botafogo, ganham outras funções. O local passou por uma reforma em 2018 e serve de casa de apoio da Prefeitura de Santa Helena de Goiás. “As residências históricas foram um dos primeiros elementos edificados capital, elas guardam em si uma memória da cidade de Goiânia. Sendo assim, sua demolição implica o consequente desaparecimento das memórias construídas ali, significando uma grande perda para a sociedade”, argumenta Renata.Jovens arquitetosOs primeiros edifícios modernistas de Goiania apresentam uma linguagem nova e diferenciada da produção local, destacando-se na paisagem da época. Além de Eurico Godoi, essa arquitetura foi introduzida na cidade com a vinda de jovens arquitetos formados no Rio de Janeiro e São Paulo, como Elder Rocha Lima, Domingos Roiz, Ariel Costa Campos, Raul Filó, Luiz Osório Leão e Silas Varizo. Além dos jovens arquiteto goianos, destaca-se a atuação de arquitetos de importância nacional, como David Libeskind.Inventário e tombamentoUm grupo de 339 casas das décadas de 1930 a 1970 foi reunido no Inventário de Arquitetura Residencial Unifamiliar em Goiânia. O trabalho feito pela Universidade Federal de Goiás, em cooperação técnica com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e com apoio do Ministério Público de Goiás, fez o levantamento de residências históricas de interesse de preservação no Centro e nos Setores Sul, Aeroporto, Oeste, Marista, Bueno e Universitário.Os resultados do inventário servem de pesquisa e contribuem na organização, entendimento e na identificação de habitações que ilustram a memória da cidade. Foi a partir de suas linguagens arquitetônicas, com elementos formadores e outras particularidades, que três principais grupos foram analisados com maior atenção: casas-tipo, casas-ecléticas e casas-modernas. Desde quando o inventário foi divulgado, em 2017, diversas residências históricas acabaram sendo demolidas.Quase seis anos após o Ministério Público ter entrado com uma ação civil pública pedindo a preservação dos bens históricos da capital, a Prefeitura de Goiânia, em dezembro de 2019, começou a notificar os proprietários dos imóveis para o possível tombamento. A partir da notificação, esses imóveis não poderiam sofrer alteração física ou serem demolidos até que fossem analisados por uma Comissão Especial de Cadastro dos Bens Móveis e Imóveis de Interesse Histórico e Cultural, vinculada à Secretaria Municipal de Cultura (Secult Goiânia).Em março, a vereadora Sabrina Garcez (sem partido) apreentou um decreto legislativo que susta os efeitos do conselho. De acordo com a Secult em nota ao POPULAR, a comissão segue desenvolvendo o trabalho de levantamento da atual situação dos bens tombados e de interesse histórico. “A Secult vem desenvolvendo um projeto de sistema municipal de cadastro e medidas de proteção destes bens”, informa.-Imagem (Image_1.2114326)-Imagem (Image_1.2114327)