Literatura é um perfeito terreno para o exercício das falsas autenticidades. Raros saem escarafunchando parágrafos de ficção movidos por inquietações particulares. A escolha de uma leitura sofre mediações do marketing sutil mas poderoso das editoras e da nossa necessidade de autoafirmação intelectual, para impressionar certos grupos. Ao fim, nós, leitores, somos apenas mais uma tribo reproduzindo comportamentos patéticos. Meu desencanto com a impossibilidade de sermos nós mesmos num mundo doente como este tem hiatos. É quando, por obra do acaso com traços divinos, dois livros em sequência estabelecem diálogos improváveis. A literatura, incapaz de contornar nossa miséria, enfim a alivia. Dá nexo, organiza o caos. Agora no recesso de fim de ano, li A Paixão Segundo GH, da Clarice. Ia dizer tardiamente, mas a própria autora se dizia “contente” com quem lesse o livro “de alma já formada”. Não cheguei lá ainda, mas, de fato, não me seria tão perturbador se tivesse feito essa leitura aos 20 e poucos anos. Em seguida, engatei Vida e Época de Michael K, do Coetzee.