Sob o sol que faz arder o sertão nordestino, uma disputa entre um coronel e um cangaceiro mancha a terra de sangue. Tiros voam de um lado para o outro, embora sejam apenas uma amostra mais óbvia de uma violência que toma diversas formas. Armas são o menor dos problemas da protagonista de Guerreiros do Sol, castigada pela miséria, a injustiça e as palavras disparadas pelos homens ao redor, num sertão em que a figura do “cabra macho”, montado no cavalo e com revólver na cintura, é incontestável.Terceira novela original do Globoplay, a trama de 45 episódios estreia nesta quarta (11) construindo uma ponte entre as violências do presente e aquelas do sertão nordestino entre os anos 1920 e 1930, época em que Lampião e seu bando reinavam.Ao seu lado, Maria Bonita também aterrorizava os sertanejos, num relacionamento com traços de abuso, segundo muitos pesquisadores, embora romantizado. Tornaram-se figuras míticas, um Bonnie e Clyde brasileiro, e agora inspiram o casal protagonista de Guerreiros do Sol, Rosa e Josué papéis de Isadora Cruz e Thomás Aquino.“O cangaço é um movimento muito ímpar, que só aconteceu naquele lugar, naquela época. Vimos ali a possibilidade de fazer um melodrama”, dizem George Moura e Sérgio Goldenberg, autores da novela, que já assinaram séries como Onde Nascem os Fortes e Amores Roubados.“É para entreter as pessoas, mas também para dizer que aquele Brasil arcaico, palco de uma guerra, dialoga muito fortemente com o nosso presente. Guerreiros do Sol é uma tentativa de olhar para o passado para compreendermos as contradições de hoje. Por isso descrevemos a novela como uma história de amor ambientada numa guerra, a guerra de formação do Brasil moderno”, afirma Moura.Guerreiros do Sol acompanha um amor que floresce em meio à aridez do sertão nordestino, com suas desigualdades. Vizinha de um rico e poderoso latifundiário, a mocinha Rosa decide se casar com ele, ciente de que a vida não lhe reserva grandes coisas, apesar de estar apaixonada por Josué, igualmente pobre. Eles deixam escapar uma dança num forró, porém, e o ciúme impele o coronel encarnado por José de Abreu a travar uma guerra contra Josué. Ameaças se transformam em morte e, para vingar uma desgraça pessoal, o mocinho e seus irmãos se tornam cangaceiros.Não é um spoiler dizer que a protagonista e narradora logo vai pegar em armas também, em busca de suas próprias vinganças. Assim, Rosa vai se aproximando de Maria Bonita, uma mulher forte num mundo violentamente misógino.Guerreiros do Sol tomou emprestado o nome e a pesquisa do livro de Frederico Pernambucano de Mello, historiador que serviu de consultor da novela. Moura e Goldenberg, porém, caminharam rumo à ficção, justamente porque “cada opinião dada entre os especialistas do cangaço acende uma centelha”, dizem, em referência às versões díspares do movimento e da relação entre Lampião e Maria Bonita.“Rosa tem uma visão crítica sobre o cangaço e a sua participação naquilo, mas ela e Josué, apaixonados, foram impelidos a se tornarem cangaceiros, para sobreviver mesmo”, diz Moura. “Eu não entrei no cangaço por maldade minha, mas pela maldade dos outros”, sintetiza bem o mocinho, num dos episódios, pegando emprestada a fala atribuída a Lampião, perseguido na juventude pelos coronéis e as forças policiais corruptas do interior de Pernambuco.Já Rosa foi, claro, pensada à imagem de Maria Bonita. Mas foi a cangaceira Dadá, Isadora conta, quem mais a inspirou. Única mulher a empunhar um fuzil no bando de Lampião, ela foi casada com Corisco, o segundo no comando, e ganhou a alcunha de Suçuarana do Cangaço. Apesar do sadismo do marido, Dadá com frequência intervia para poupar a vida de inocentes.“A Rosa traz um novo olhar sobre uma história muito masculina, muito violenta”, diz a paraibana, que quer desafiar o arquétipo da mocinha de novela. “Existe nela uma sensibilidade para os problemas da época. Queremos mostrar os dois lados da moeda, a dicotomia do cangaço, porque até hoje há quem ame e quem odeie. Como a política, que tem polarizado e dividido tanto a sociedade.”Não é apenas no bando de Lampião que as mulheres do folhetim encontram sua voz, porém. Alinne Moraes e Nathalia Dill são outras que encarnam figuras à frente de seu tempo, provocando debates sobre educação e sufrágio. “Voto feminino para quê?”, reclama o personagem de Daniel de Oliveira, filho do coronel, ao ler o jornal. “Mulheres são cidadãs, tanto quanto você”, responde a dona de casa culta e gentil vivida por Alinne.Dupla masculina, Moura e Goldenberg contaram com um time de colaboradoras mulheres, formado por Cláudia Tajes, Mariana Mesquita, Ana Flávia Marques e Dione Carlos, além de Marcos Barbosa. A direção geral é de Rogério Gomes, da última versão de Pantanal.Por ser uma novela pensada para o streaming mais tarde, deve estrear na TV aberta. A violência da história, aqui, é gráfica, com balas furando a carne e fazendo jorrar sangue. Também há menos pudor em relação ao sexo, com seios e nádegas dando mais crueza ao sertão.Numa cena, Rosa se masturba deitada na rede, com seus gemidos entrecortados pelo forró da noite anterior, quando dançou colada a Josué. “Tá passando mal?”, pergunta sua irmã, encarnada por Alice Carvalho, atriz que vive uma ascensão meteórica após Cangaço Novo e O Agente Secreto.Para os autores, Guerreiros do Sol continua sendo essencialmente uma novela, principalmente por causa de sua veia melodramática e apesar de já estar inteiramente gravada, ter menos núcleos de personagens, ser uma produção de gênero e ter apenas 45 capítulos. Para o espectador, Guerreiros do Sol talvez esteja mais próxima de uma grande produção de faroeste hollywoodiana, ou dos filmes de Glauber Rocha, do que das picuinhas de Odete Roitman e Maria de Fátima, de Vale Tudo. Existe aí um paralelo interessante. Na história, a resiliência feminina é confrontada pelo patriarcalismo. No mundo real, o gênero de ação, comumente associado aos homens, toma de assalto o melodrama da novela. Assim, o Globoplay espera abocanhar uma fatia ampla do público.