Os 20 anos da concessão do título de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade à cidade de Goiás, com as celebrações em torno da data, motivaram que duas iniciativas para dar à antiga Vila Boa novos espaços para valorizar sua memória e sua arte ganhassem impulso. Nesse momento, há ações efetivas para transformar os projetos do Museu da Memória de Goyaz e do Museu Histórico Frei Nazareno Confaloni em realidade, dando novas opções de conhecimento, lazer e arte para quem visita o lugar que já foi capital do Estado. Ambos propõem fazer resgates importantes e superar silenciamentos históricos.No caso do Museu da Memória de Goyaz, o esforço é pela valorização das ricas heranças africanas que a cidade mantém, mas que quase nunca ganharam maior ênfase. “Vivemos em uma cidade cuja ancestralidade afro-brasileira merece destaque e reparação”, afirma o diretor da instituição, o pesquisador e cineasta Lázaro Ribeiro. Ele está à frente de uma campanha que busca encontrar um espaço físico e viabilizar financeiramente a implantação do local. Shows com artistas goianos, como Maria Eugênia e Luiz Chaffin, e eventos culturais relacionados à cultura africana têm sido realizados neste mês com essa finalidade.Por enquanto, o museu está funcionando virtualmente. No início de abril, os promotores da iniciativa lançaram oficialmente o projeto, com a exibição do documentário Goyaz, Patrimônio em Memórias, do próprio Lázaro Ribeiro, que traz depoimentos de artistas e da atriz Elisa Lucinda declamando poemas. No site também estão disponíveis áudios de entrevistas com moradores, gravações de canções advindas da cultura oral e coleções de fotografias antigas. Esse acervo pode ser acessado em museudamemoriadegoyaz.net. Já na logomarca do novo espaço, há a menção a uma personagem famosa em Goiás.“Fazemos memória e justiça ao povo preto a partir da nossa identidade visual, trazendo como símbolo a figura de uma mulher preta, pobre, que carregava na cabeça a água que matou a sede de muitas famílias tradicionais da cidade. Era Maria do Rosário Gonçalves, popularmente conhecida como Maria Macaca, apelido que reforçava o racismo”, explica Lázaro. “Também apoiamos com registros fotográficos a montagem do dossiê que reconheceu o Setor Alto Santana como quilombo urbano e continuaremos a registrar as memórias dos remanescentes quilombolas que vivem e sobrevivem nesse território.”A ideia da criação do museu nasceu quando foi instalado o ponto de cultura Imagem e Memória, em 2008. “Nossa proposta foi registrar as manifestações, saberes e fazeres do vilaboense e depois devolver esse acervo para a cidade”, afirma Lázaro. Isso passou a ser concretizado de forma mais efetiva no ano passado. “A primeira exposição física/virtual que fizemos foi Patrimônio e o Tempo: Outras Narrativas, trazendo a memória de pessoas simples em seus ofícios: carregadeiras d’água, lavadeiras, lenheiros, além do Congo de Vila Boa. Numa imagem simbólica, seus integrantes estão junto do governador Mauro Borges.”As ruas da cidade também presenciaram parte dessa programação de lançamento. “Convidamos o Afoxé Omo Odé, dirigido pelo mestre Luizinho e pela mestra Maria do Socorro, que têm uma relação estreita com a cidade e seu movimento negro. Saímos da porta da casa da artista plástica Goiandira do Couto, que sempre lutou em prol da memória do vilaboense, sem distinção, e tem sua memória cada dia mais apagada. Percorremos a Rua da Abadia, fizemos uma parada na Igreja do Rosário dos Pretos e atravessamos a Ponte da Lapa, passando pelo coreto e fazendo uma roda em frente ao Palácio Conde dos Arcos.”Esse trajeto não foi aleatório. “Foi um ato de descer o morro e professar nossa cultura em espaços de poder sempre negados e proibidos ao povo preto”, sublinha Lázaro. “A programação vai até o dia 27 de maio. Teremos ainda congo, orquestra de violeiros, capoeira, uma diversidade cultural que carrega a ancestralidade afro que merece ser vista, respeitada e registrada”, anuncia o diretor, que explica o método de trabalho do projeto. “Iniciamos registros dos nossos mestres do saber, como benzedeiras, raizeiros, paneleiras e diversos ofícios. A proposta é ir até a casa de cada um e fazer entrevistas.”Esse rico material é todo gravado em vídeo e digitalizado, além de haver o registro das práticas de cada uma dessas pessoas. “A nossa proposta é ter um catálogo dos saberes e fazeres de todo o município de Goiás”, resume. “Goiás é um museu a céu aberto e cada família possui seu acervo particular, nem que seja uma foto, um documento. Estamos fazendo esse levantamento. Além de receber doações de originais, propomos fazer a guarda em formato digital. Eu sempre recebi materiais para contar a história de alguém, mas após o lançamento, em 1º de abril, muita gente tem nos procurado.”O maior desafio, agora, é encontrar um espaço físico, para que quem vá a Goiás possa visitar esses pequenos tesouros. “Há muitos anos falávamos em nossos eventos que conseguiríamos um espaço, o que ainda não se viabilizou. Seguimos na nossa busca por apoio para conseguir esse espaço. Começaram a surgir possibilidades, mas nada de concreto. Mas estamos confiantes porque é um projeto que prevê um espaço para falar de quem preserva e mantém essa cidade, nossa gente partilhando com o mundo as nossas memórias, que é o propósito de uma cidade Patrimônio Mundial”, conclui Lázaro.Um museu para frei Nazareno ConfaloniNa Igreja do Rosário dos Pretos, ponto importante para as memórias da população de origem africana da cidade de Goiás, há uma série de afrescos e outras obras que, por seu valor, também vão merecer um novo museu, louvando a arte de quem os pintou. Hoje convento dominicano, o espaço guarda um acervo inestimável de Frei Nazareno Confaloni, italiano que veio para o Brasil e tornou-se um nome fundamental das artes em Goiás, trazendo técnicas e estilos que fizeram escola. Aliás, ele veio parar aqui exatamente para pintar os painéis da via sacra dentro da então recentemente reconstruída Igreja do Rosário.O produtor PX Silveira, que esteve à frente da programação do Instituto Biapó durante as comemorações dos 20 anos da conquista do título de Patrimônio da Humanidade pela cidade de Goiás, também é quem tem encabeçado a iniciativa de criação do Museu Histórico Frei Nazareno Confaloni. “Nós já concluímos várias reformas físicas no local. Recuperamos parte do telhado, reformamos os banheiros e ampliamos uma sala para receber o grande painel de Confaloni, que foi vandalizado quando estava na sede da Celg. Ele tem 9 metros de largura. Adaptamos o espaço com pé direito maior”, detalha.Outras obras de infraestrutura, como a implantação da sinalização de todo o complexo e a criação de outras partes do museu, estão paradas porque houve um pedido da ordem dominicana, que acaba de passar por uma eleição interna. “Foi escolhido um novo prior provincial da ordem no Brasil, frei André Tavares. Ele veio a Goiânia e nos reunimos. Ele pediu que os trabalhos fossem temporariamente suspensos até que haja a indicação dos postos dos freis em seus diversos conventos pelo Brasil, inclusive em Goiás”, explica PX. Assim que o sinal verde for dado, a implantação do museu pode ocorrer rapidamente.Vários desafios nesse sentido já foram superados. Um deles é a reunião de obras relevantes de Frei Confaloni para expor aos visitantes quando o museu estiver aberto ao público. Além do imenso painel chamado Energia Elétrica: A Origem, a Invenção e o Usufruto, que tem 9m de largura por 3m de altura, poderão ser vistos os 15 afrescos localizados na nave da Igreja do Rosário e três painéis que ficam na Capela Dom Cândido Penso, que fica na parte interna do santuário. O patrimônio da instituição será formado ainda por 15 obras em papel na técnica de desenho, abordando temas religiosos.O museu conta com o auxílio de pessoas que detêm trabalhos de Confaloni. O artista plástico Amaury Menezes, por exemplo, doou os desenhos em papel. Os proprietários do edifício onde ficava a Secretaria Estadual da Educação também doaram o painel feito pelo frei e que estava instalado no imóvel. Já duas esculturas de sua autoria foram cedidas pela família de Confaloni na Itália. Por sua vez, a PUC Goiás, detentora de dezenas de trabalhos de Frei Confaloni, acertou o empréstimo de 50 delas para exposições no local, que também contará com um espaço com pertences pessoais do artista, doados por seus familiares.A ideia é que o espaço tenha exposições permanentes e temporárias e um de seus objetivos é dar tratamento museológico adequado a um patrimônio cultural da maior relevância e que precisa de cuidados especiais. Vale lembrar que obras importantes do artista plástico já foram danificadas em Goiânia. Confaloni, que nasceu em 1917 na Toscana, chegou a Goiás em 1950, a convite de d. Cândido Penso, bispo de Goiás. Ele influenciou gerações de artistas no Estado e deixou numerosos trabalhos em diferentes suportes. Morreu em 1977, aos 60 anos de idade, com problemas pulmonares.Leia também- Multidão acompanha Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás- Cidade de Goiás voltará a ter Cavalhadas após 70 anos de interrupção-Imagem (Image_1.2439180)