Da imperatriz Leopoldina à cantora Marília Mendonça, a história das mulheres no Brasil é construída, segundo a historiadora Mary del Priore, por sobreviventes e guerreiras. É sobre a construção da violência contra elas que a autora vai falar durante conferência no projeto Diálogos Contemporâneos, na segunda-feira, às 19 horas, no Teatro Goiânia. A entrada é franca e os ingressos serão distribuídos uma hora antes do início da palestra. Com 52 livros publicados e 20 prêmios, entre os quais três Jabutis, Mary del Priore é uma das maiores historiadoras e escritoras em atividade do País. Em 2020, ela lançou o livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, obra considerada essencial para se entender o porquê de, até hoje, discutir e, principalmente, lutar pela igualdade de direitos para as mulheres que continuam sendo agredidas, desqualificadas, perseguidas e mortas no País. “Tantas vezes apresentadas como vítimas, essas mulheres também foram guerreiras e vencedoras”, disse, em entrevista ao POPULAR. Para ela, é importante procurar no passado as raízes do poder dos homens sobre as mulheres e, sobretudo, aprender com elas como se fizeram ser ouvidas.A senhora vem a Goiânia falar sobre a construção da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Por que há uma certa naturalização dessa violência?A resposta mais simples seria dizer que vivemos numa sociedade violenta. Mas não basta. É preciso entender que herdamos três formas de patriarcalismos que ajudam a naturalizar a violência: o ocidental cristão, que via na mulher uma herdeira de Eva responsável pela expulsão do paraíso. O africano, que se apoiava na poligamia, na condenação da esterilidade e em operações genitais para controlar a sexualidade feminina. E no das nações originárias, onde a divisão de papéis era muito forte: mulheres na taba, cuidando das crianças, dos velhos e da alimentação. Homens, na guerra e na caça. Se desfazer desse passado e dos papéis de submissão, foi um longo processo ao qual, é importante dizer, as mulheres resistiram. Vamos conversar sobre isso. Como nasceu a ideia do livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000 e o que mais te surpreendeu no processo de pesquisa?Resolvi mostrar que as brasileiras têm de onde tirar elementos para se empoderar. Penso que o vitimismo nos enfraquece. Ao olhar o passado, aprendemos que milhares de mulheres, de todas as condições, todas as idades e todas as cores souberam descortinar brechas, reinventar-se e apostar na criatividade para seguir em frente. Tantas vezes apresentadas como vítimas, foram guerreiras e vencedoras. O livro mostra diversos momentos em que suas vozes nos dizem: “Eu existo”, “eu faço”, “eu quero”. De que forma, a história oficial do Brasil omitiu a condição da mulher ao longo da nossa trajetória?Não foi uma omissão deliberada. Afinal, eram homens que escreviam e seus interesses eram outros: política, diplomacia e economia. A maneira de fazer história mudou. Novos assuntos como família, sexualidade, privacidade e infância entraram na pauta dos historiadores. Nos anos 1980, junto com tal guinada, surgiu a segunda onda do movimento feminista que não só produziu historiadoras excepcionais, mas as levou a falar sobre a condição de vida, as conquistas e perdas das mulheres. Desde então, há milhares de historiadoras realizando pesquisas excepcionais e nos ajudando a enxergar a vida de nossas antepassadas. A senhora escreve que em todo canto mulheres vivem em alerta, prestam atenção ao que vestir, a como falar, como responder, sorrir ou andar. Atitudes que revelam o temor constante de se tornar vítima de uma sociedade machista. Por que ser mulher no Brasil ainda hoje é algo tão exaustivo?O patriarcado não será abolido por decreto. Mas a sua desintegração está ligada à escolarização das mulheres e a sua entrada no mercado de trabalho; à contracepção que lhes deu liberdade sexual; à força dos movimentos sociais e as reivindicações LGBTQIA+, tudo amparado por um mundo “em redes” no qual as estruturas verticais não funcionam mais. Penso que essas mudanças afetam mulheres, mas afetam homens também. E os convidam a construir novas identidades masculinas, onde a paternidade, o companheirismo, a divisão de tarefas domésticas estão se tornando moda. Em alguns pontos mais evoluídos do País, o “machão” está com os dias contados. <Há muita resistência na intervenção da violência contra a mulher por ser considerada “problema de família e de casal”. De que forma políticas públicas podem mudar essa cultura e promover a proteção das mulheres?No passado, quem interferia era a vizinhança, a comunidade. Nos documentos antigos, não faltam casos de mulheres que contaram com o apoio dessas redes para se defender de companheiros violentos e até reagir. Hoje, o Judiciário está fazendo um esforço notável para proteger as mulheres: leis, delegacias apropriadas com escuta adequada, prisão para infratores. A sociedade conta também com a mídia e as redes sociais para denunciar os malfeitos. É fundamental que haja uma luta contra o preconceito e o sexismo por meio da educação, da família e das escolas. Mas, também que haja punição legal para os transgressores. Em tempos de extrema polarização política, o movimento feminista acabou sendo associado à esquerda no Brasil. Por que essa visão é equivocada e prejudica a pauta de todas as mulheres?A terceira onda do movimento feminista é uma vasta constelação com demandas muito diversificadas. Há quem queira lutar contra a desigualdade e o capitalismo, o racismo, a homofobia; há quem aposte no modelo Beyoncé – “as mulheres podem mudar o mundo com seus corpos” –, há as ecologistas e daí por diante. Não há uma pauta única e o tema dos identitarismos acaba desfazendo essa possibilidade. Estamos longe de um milagre como o que aconteceu durante a Constituinte de 1988, quando mulheres de partidos diferentes e até mesmo opostos, levaram ao então presidente Tancredo Neves uma pauta comum, mas ampla, beneficiando todas as mulheres. E não grupos. Seria preciso que todas as feministas, antes de lutar por suas causas específicas, tivessem uma única bandeira. Uma bandeira coletiva: educação para todas as mulheres. Só isso pode realmente mudar nossa condição nesse País. Na sua opinião, quais foram os principais reflexos da pandemia da Covid-19 na questão da violência de gênero no País?Ela aumentou no Brasil e no mundo. Mas, aqui, o confinamento trouxe o gosto amargo do desemprego, da inflação galopante e da pobreza. No passado, um homem sem trabalho, sem poder alimentar a família, chegava a se matar. A perda dos papéis originais, de provedor, de pai de família e dono da casa, alimenta a violência. O feminicídio é a face mais visível da violência contra a mulher e, geralmente, ocorre depois de uma série de eventos anteriores. Quais são os outros tipos de violência mais comuns que atingem as mulheres?A violência psicológica. Para ficar num exemplo histórico, a que a imperatriz Leopoldina sofreu no casamento com d. Pedro I. Sofrer calada por conta de adultérios; ser xingada ou diminuída perante os familiares; ser privada de alimento ou de vestuário, enfim... Tudo colabora para o sofrimento feminino. Mas é bom não esquecer um tipo de violência psicológica que as mulheres sofrem, mas calam: a imposta por outra mulher. Em geral, a chefe do serviço, a patroa, a colega... A senhora defende que a violência contra a mulher é um fenômeno transcultural, presente em todas as culturas ao longo dos séculos. Como lutar de forma efetiva contra algo tão arraigado em nossa sociedade?Se não chamarmos os homens para essa conversa, convidando-os a falar sobre como o patriarcado lhes afeta, vai ser difícil. Lembro que o patriarcado é terrível com eles também, pois exige que sejam permanentemente viris, bem-sucedidos, com dinheiro no bolso, ereções intermináveis, boa saúde e boa forma, enfim, não é fácil! Enquanto houver mães que repitam para os filhos que “homem não chora” ou “bom cabrito não berra”, elas estarão incentivando a desigualdade e condenando os filhos ao sofrimento que o patriarcado impõe. Os índices de violência contra a mulher em Goiás estampam manchetes com destaque nacional negativo. A senhora acredita que há lugares no Brasil onde ser mulher é mais perigoso?Regiões pobres, onde falta emprego e oportunidade de estudo, onde as políticas públicas insistam em ignorar a desigualdade, onde as elites não querem enxergar a pobreza, aí não faltará violência. Mas Goiás acaba de nos dar o exemplo de uma mulher guerreira desde a juventude, dona de seu nariz e destino, brilhante cantora e compositora, mãe amorosa, infelizmente levada muito cedo. Marília Mendonça é o exemplo mais belo da sobrevivente e da guerreira. Vamos nos inspirar nela.