O vinho naturalmente nos traz lembranças instintivas do frio, das terras gélidas da Europa, das roupas de lã, dos ambientes fechados. Essa verdade foi secular, retrato das origens de uma bebida que nasceu da fermentação da uva, fruta preconceituosa, selvagem e primordialmente restrita às regiões temperadas do planeta. A história foi artífice da coincidência e reservou a esses lugares os impérios que dominaram o mundo, pelo menos desde a Idade Média. E assim, surgiu, então, o clássico Mundo do Vinho, um grupo de alguns países de produção tradicional e de alta qualidade no continente europeu – França, Itália, Alemanha, e áreas de Portugal e Espanha, principalmente.O conceito de Novo Mundo do Vinho veio com a teimosia do homem em andar. Nessas andanças transcontinentais colonialistas, o vinho acompanhou o colonizador e, onde pôde, tentou-se produzir vinho no planeta. Temos então os vinhos da Califórnia, da Argentina, do Chile, da Austrália, da Nova Zelândia, do Brasil..., todos facilmente compreensíveis e aceitáveis aos olhos conservadores dos acostumados ao paradigma do frio e das roupas de lã. Ah!, mas o homem é muito mais teimoso que um mero paradigma. Vamos fazer vinho na África? Na África? O continente das zebras, dos leões e das girafas não se parece muito com a ideia ortodoxa que se tinha do vinho e pode mesmo assustar aos neófitos e desavisados. Quem acompanha mais de perto o mundo do vinho, sabe, porém, que a África do Sul tem produzido vinhos de altíssima qualidade, prêmio de uma história de perseverança e luta, à semelhança do seu próprio povo.Em meados do século 17, os holandeses da Companhia das Índias – agência do governo holandês que regulava a marinha mercantil e o comércio daquele país com o Oriente – se estabeleceram definitivamente na Cidade do Cabo, localização ideal para um entreposto onde os corajosos marinheiros pudessem se restaurar e reabastecer nas longas viagens em que se empreitavam. Ali nascia um país. Com ele, os primeiros vinhos, das plantações de van Riebeeck, primeiro governador-geral daquelas terras. Foi van der Stel, seu sucessor, entretanto, quem produziu, na sua fazenda Constantia, os primeiros exemplares sul-africanos de qualidade, vinhos de sobremesa finos, da uva muscat, até hoje mundialmente famosos. As guerras religiosas na Europa trouxeram os franceses protestantes fugitivos da perseguição católica, os huguenotes, e com eles a produção vinícola ganhou técnica e experiência. A história, expressa numa infeliz sucessão de eventos, fez com que os próximos séculos testemunhassem o declínio da indústria vinícola sul-africana: a crise da falta de carvalho (necessário para o envelhecimento apropriado), as guerras entre França e Inglaterra (provocando a intermitência do mercado), a temível praga filoxera que devastou os vinhedos e, por fim, a guerra entre ingleses e os boers.A salvação veio com o cooperativismo, essa salvaguarda atenuante da cruel exploração do capital. A criação da Ko-operatieve Wijnbouwers Vereniging (KWV), no início do século 20, ressuscitou a vinicultura do país e, não fosse o apartheid, há muito os vinhos sul-africanos estariam no topo do comércio enológico internacional. As uvas de qualidade inferior (ainda mantidas para a produção de brandy) e as castas brancas – em especial a muscat, para os vinhos de sobremesa – vêm sendo paulatinamente substituídas pelas tintas, com o propósito de elaborar vinhos de maior estrutura e complexidade. Dessas, a uva símbolo do país é a pinotage, cruzamento genético da sensível pinot noir e da resistente cinsault. A syrah tem se mostrado, ali, de grande potencial, a exemplo do que vem ocorrendo em outros países do Hemisfério Sul, como a Austrália e até o Brasil. As nossas conhecidas cabernet sauvignon e merlot, combinadas ou separadamente, apresentam-se em vinhos cada vez mais complexos, que têm encantado taças em todo o mundo.De um povo resiliente e perseguido, alvo da crueldade da história e dos homens, em um solo inóspito e de clima desfavorável, surgem grandes vinhos, bebida emblemática do ápice da civilização humana. A teimosia do homem, aqui expressa no cooperativismo, ilustra a nossa natural rejeição aos paradigmas, ditados pela natureza ou por nós mesmos, paradoxalmente, criados.