“Esse período de pandemia é, no geral, como se fosse um vazio para mim. Foi uma experiência de solidão, especialmente no início. Não lembro de muita coisa que aconteceu em detalhes, mas lembro de me sentir triste, com muita saudade dos meus colegas e da minha família, do ambiente da escola e de sair de casa”, conta a estudante Lara Rezende de Abreu, de 14 anos, sobre o período de maiores restrições e reclusão.O Brasil foi o país que ficou com as escolas fechadas por mais tempo durante a pandemia de Covid-19. Os impactos desse período para os adolescentes foram significativos em diversos âmbitos e jogou luz sobre um debate que já era urgente: a saúde mental desses indivíduos. “A adolescência já é por si só um período conflituoso, de mudanças muito grandes tanto fisicamente, com as alterações hormonais, como na parte psíquica e emocional”, comenta a psicóloga e psicanalista Larissa Câmara, especialista em problemas do desenvolvimento da criança e do adolescente e idealizadora do projeto PsiQUÊ?.Ela aponta que nessa fase (na faixa dos 12 a 18 anos) é quando o indivíduo conquista uma certa independência e um pouco mais de liberdade, fora da tutoria dos pais. “A criança é muito identificada com os pais e quando começa a conviver em grupos sociais, observando comportamentos diferentes dos habituais da casa, começa a ponderar: será que penso como meus pais mesmo ou será que não? E isso é necessário e deve ser estimulado, por ser um período de mudanças, incertezas e questões relacionadas à autoestima”, diz. E o que aconteceu na pandemia: etapas importantes foram perdidas com o isolamento, especialmente essa saída de casa para o social, com o acréscimo da hiperdigitalização.A mãe de Lara, a engenheira civil e professora universitária Lilian Ribeiro de Rezende, de 47 anos, comenta que a família tem uma filosofia de vida de não ser muito ligada ao ambiente virtual. “Ela tinha a vivência, claro. Usava o computador para fazer as atividades da escola e o tablet para alguns joguinhos, mas esse uso sempre foi muito controlado, limitado aos fins de semana”, diz. A filha também não tinha o perfil de gostar de celular ou videogame, segundo ela. “Ela gosta muito de livros e prefere ler no papel do que em telas”, conta. A paixão da garota rendeu até a publicação do seu primeiro livro, lançado em 2021.Até então, Lara nem tinha celular. Com o início das restrições sanitárias da pandemia, no entanto, todas as atividades da garota migraram para o ambiente on-line. “Não teve como. Até atividade física a gente fazia com professor on-line. As aulas de música também migraram, além da escola”, diz Lilian. Por consequência, o tempo de tela da filha aumentou drasticamente e algumas estratégias foram adotadas para amenizar a situação. “Virou regra que a Lara é quem tinha que descer com a nossa cachorrinha para dar uma andada, aliviada e desestressada, já que não podia fazer muita coisa na rua”, conta.A garota lembra que teve muita dificuldade de se adaptar a esse período mas, apesar dos momentos angustiantes, ela observa que muitos amigos e conhecidos sofreram ainda mais do que ela nesse período. “Tenho amigos que acabaram criando uma dependência do celular, um vício quase. Teve toda a questão das perdas na família também. E aí teve gente que desenvolveu ansiedade, transtornos alimentares, depressão e que estão até hoje lutando contra isso”, comenta.As redes de apoio virtuais, como os grupos de colegas para trocar informações foram de grande ajuda, segundo a mãe. “Foi um período de muitas perdas, inclusive no processo de aprendizagem. Agora vai um tempo para a gente resgatar isso”, diz. Assim que as aulas voltaram ao formato presencial, Lara estava de volta à escola. “Sempre a orientamos sobre os cuidados com a máscara e higienização, então ela voltou muito consciente e confiamos nela”, diz.Adolescência e expectativasA sensação de não ser compreendido. Provavelmente você já ouviu esse desabafo de algum adolescente. No entanto, a falta de compreensão e os estigmas que acompanham essa fase da vida são, de fato, uma realidade. “Vejo hoje como os adolescentes são cobrados pelos pais para que eles tenham sucesso, como se eles fossem extensões dos pais. É como se dissessem: ‘o sucesso do meu filho é o meu sucesso, e o fracasso é o meu fracasso também’”, aponta a psicóloga e psicanalista, Luciane Gifford Carneiro. “E é fracasso entre aspas, porque fracassar é algo muito relativo; cada um tem uma forma de viver a vida que é diferente do outro e aceitar essas diferenças é fundamental para um bom desenvolvimento psíquico”, diz.Perceber as individualidades de cada um, no entanto, está longe da maneira que se lida com o outro nos dias de hoje, ela observa. “Hoje, o que tende-se a fazer é sempre colocar as pessoas numa fôrma, como se todos tivessem que ser iguais. E o igual, aqui, é na questão da produção, de fazer coisas. Vemos crianças e adolescentes que são mini executivos, não têm tempo nem para brincar mais”, comenta.Essa “correria” tem não só adoecido pessoas, como impedido que um enxergue o outro. “A gente adoece quando não levamos em conta o que temos de mais genuíno. Então, muitas vezes, somos invadidos por expectativas que acreditamos ter que corresponder e a subjetividade de cada um, considerando cada ritmo, cada jeito de ser, é massacrada. Isso equivale à morte psíquica”, diz. “E aí, na correria, se esquece de olhar para a pessoa que está ao nosso lado, dentro de casa. Pessoa essa que está triste, angustiada”.A questão é que esses fatores foram aparecendo com mais força com a pandemia, mas já estavam todos presentes na sociedade. “Nesse período, começamos a escutar tudo isso com uma espécie de alto falante. Muita depressão, síndrome do pânico, traços obsessivos aumentaram principalmente pela questão da higiene e limpeza”, aponta ela, que destaca a adolescência como uma das faixas etárias que mais sofreu com esse período. “Foi muito impactante para eles. Vejo no consultório os pais perdidos, porque os filhos eram crianças quando começou a pandemia e saíram já adolescentes e esse é o momento de estar fora, da rua, da identidade dos grupos e isso foi perdido durante quase dois anos”, observa Luciane.“Uma criança de 10 anos pulou o movimento da conquista de liberdade e das saídas de casa, por volta dos 11 anos, e pulou para os 13 na pandemia. Enquanto isso, um que tinha 14 anos no início saiu do ensino fundamental e já foi para o ensino médio direto. Para um adolescente, cada ano faz muita diferença”, aponta a psicóloga e psicanalista Larissa Câmara. “Foram puladas etapas importantes, gerando dificuldades de adaptação e imaturidade em relação ao que é exigido na faixa etária atual. Os adolescentes ficaram numa situação delicada do ponto de vista emocional e da saúde mental, porque tudo que eles não precisavam era desse recolhimento”, observa.Leia também:- “A proibição não funciona”, diz especialista sobre adolescentes e o uso de eletrônicos- Atividades artísticas são aliadas da saúde mental das crianças- Qual a receita para criar bem os filhos?