“Finalmente entrei no dormitório e ali estive não sei quanto tempo sem levantar a cabeça. Eu não podia ou não queria ver. Em dois pequenos leitos ajuntados estava o maestro com sua formosa cabeça somente alterada pela palidez. A morte violenta não deixou violência alguma. Dormia sem seu eterno sorriso, mas com uma doçura muito grande e uma serenidade maior ainda. Parece que ele morreu antes, ela terá testemunhado o seu fim, retinha sua cabeça com o braço direito, o rosto inteiro enfiado no dele. (...) Traços inalterados, iguais. Nada neste mundo poderá dissolver essa imagem.”O parágrafo anterior foi escrito por uma ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura. Naquele trágico 22 de fevereiro de 1842, em uma casa de imensa varanda construída em um dos morros da cidade de Petrópolis, na Serra Fluminense, a poeta chilena Gabriela Mistral entrou no quarto da residência para se deparar com uma cena chocante. No cômodo apertado, jaziam os corpos do escritor austríaco Stefan Zweig e de sua segunda esposa, Lotte. Eles haviam cometido suicídio após um longo périplo por várias partes do mundo depois que Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha e lançou uma perseguição implacável contra eles.Mistral servia como cônsul chilena no Brasil naquela época e foi uma das amigas de Zweig, que nas décadas anteriores havia sido um dos autores mais vendidos e lidos de todo o mundo, nos mais diferentes idiomas, inclusive em português. Certamente, o escritor era um dos nomes mais conhecidos da cultura europeia de seu tempo e havia mantido articulações com personagens notórios de sua época. Amigo próximo de Sigmund Freud, rival velado de Thomas Mann, confidente de Joseph Roth, parceiro de Richard Strauss, íntimo de Romain Rolland, ele transitava pelas altas esferas, até que o nazismo trouxe a barbárie.Oito décadas após sua morte, ocasionada por uma depressão aprofundada pelo exílio e o pânico diante da perspectiva da vitória de Hitler na Segunda Guerra Mundial, Zweig talvez se espantasse em ver a onda neonazista que aflora no País que ele escolheu para se refugiar na última parte de sua vida. A opção pelo Brasil deveu-se exatamente porque ele acreditava que aqui o odioso regime da suástica não chegaria, uma vez que ele já havia sido obrigado a deixar sua Áustria e sofrido o trauma de perder a referência da Alemanha, ver a França sucumbir e optar por escapar de uma Inglaterra ameaçada de invasão.Quando veio para cá, depois de passar por terras brasileiras em outras oportunidades como uma verdadeira celebridade, sendo recebido por autoridades e desempenhando o papel de grande estrela dos eventos literários dos quais participava, ele não entrou no mérito de ser usado como arma de propaganda. Na primeira vez que veio ao Brasil, em 1936, a caminho de Buenos Aires para o Congresso do PEN Clube, que reuniu escritores de todo o mundo, ele foi recebido por Getúlio Vargas, notório simpatizante do regime fascista do italiano Benito Mussolini, antes que a Segunda Guerra explodisse. Na época, Hitler já perseguia judeus.Naquele momento, o judeu Stefan Zweig sentia a sombra se aproximar. Morando em uma mansão na bela cidade de Salzburgo, a porta de entrada da Áustria para quem vem da Alemanha, ele deixava claro na correspondência com amigos e com sua primeira esposa, a fidelíssima e pacientíssima Friederike, de quem se divorciou em 1938 – também uma escritora de talento –, que precisava urdir um plano B para sua sobrevivência. Os amigos germânicos iam para o exílio para não pararem em prisões nazistas e seus livros eram queimados em praça pública em Berlim. Hitler e seu ministro da propaganda, Josef Goebbels, o detestavam. Ele corria perigo.Quando a Áustria foi anexada pelos nazistas, em 1938, a fuga deixou de ser uma opção para se tornar uma necessidade. Amigo do popular político alemão Walther Rathenau, ministro da República de Weimar, assassinado em 1922 por extremistas de direita, ele percebeu que aquele crime poderia prenunciar tempos sombrios. O golpe que matou o chanceler austríaco Engelbert Dollfuss, em 1934, confirmou as suspeitas, mas isso não fez de Zweig um militante efetivo contra os regimes fascistas. Na Primeira Guerra Mundial, ele pregou o pacifismo, articulando frentes contra o conflito. O fracasso não lhe ensinou.Na Segunda Guerra Mundial, o escritor acreditou que poderia manter a mesma postura. Foi engolido pelos fatos, pelas perseguições e pelas tragédias em torno de si. De modo acelerado, viu, como costumava dizer, seu mundo desaparecer. Amigos que preferiam se matar a se entregar, pessoas queridas fugindo pelo mundo. Muitos foram para os EUA, onde ele teve chance de se estabelecer, tanto em Nova York, quanto na indústria do cinema em Hollywood, como roteirista. Acabou no lugar que batizou de Paraíso, que era o Brasil. Um País que o recebeu e onde conheceu seu final. O nazismo fazia mais uma vítima. Uma vida dentro de outrasUm dos maiores biógrafos do século 20 merecia uma biografia à altura. Stefan Zweig foi um dos autores que mais se dedicaram ao gênero, deixando como legado diversos volumes em que escrutina a vida de grandes personalidades, de Balzac a Dostoiévski, do navegador Fernão de Magalhães ao profeta Jeremias, da rainha francesa Maria Antonieta à monarca inglesa Mary Stuart. Quarenta anos depois de sua morte trágica em Petrópolis, Zweig ganhou aquela que é sua mais completa biografia, Morte no Paraíso, elaborada pelo jornalista Alberto Dines, após quase uma década de pesquisas no Brasil e no exterior.Até a última edição desta obra, relançada em 2012, Dines, que marcou seu nome em vários momentos da imprensa nacional e morreu em 2018, foi adicionando informações a que tinha acesso a respeito do escritor que marcou sua vida. Ele costumava dizer que “não existe biografia definitiva” e que esse gênero é, por natureza, “uma obra aberta”. Neste caso, ela se abriu em uma visita que Stefan Zweig fez à Escola Israelita-Brasileira Scholem Aleichem, no Rio de Janeiro, ainda em 1940, na segunda vinda do austríaco ao País. Lá estudava um menino de 8 anos, que posou com sua turma ao lado da celebridade.Aquele menino era Alberto Dines e seu pai, Israel, figura proeminente da comunidade judaica carioca, foi a Petrópolis em 1942 e acompanhou o enterro de Zweig e de sua esposa Lotte no cemitério da cidade. Eles foram depositados num túmulo bem próximo de sepulturas de membros da família imperial brasileira, que tinha um ramo dos Habsburgo, o clã do antigo Império Austro-Húngaro, que o escritor viu ruir na Primeira Guerra. A ida à escola foi a única vez que Dines e Zweig estiveram juntos pessoalmente, mas em espírito parecia haver um vínculo inquebrantável, daqueles que ligam biógrafo e biografado.Foi sempre em busca deste vínculo que o trabalho de Zweig se pautou. Nos numerosos livros que publicou, o escritor tinha essa espécie de obsessão. Ao escolher contar uma vida, ele se impunha um desafio, que para muitos poderia ser aterrador. Ele mergulhava em pesquisas profundas e tentava, de todas as formas, ingressar na personalidade de seu eleito, o que quase nunca era uma missão fácil. Situações que chegavam a gerar certo constrangimento. Quando escreveu o perfil biográfico de Sigmund Freud, um amigo muito próximo, recebeu do pai da Psicanálise uma resposta dúbia, com certo tom de reprovação.A arte da palavra não lhe era um empecilho. Zweig tinha a fama de escrever bem e de forma rápida. Desde que lançou, em 1901, seu livro de estreia, o menos inspirado volume de poesias Cordas de Prata, ele fez da literatura a sua vida. Publicou mais de 50 títulos em diversos gêneros, de romances a memórias, de ensaios a libretos de ópera. Dono de grande erudição e de uma carga de leitura invejável, enfrentou gigantes em seus projetos biográficos. Em Três Mestres, biografou de uma vez só Balzac, Dostoiévski e Dickens. Em A Batalha Com o Demônio, novo trio de peso: Hölderlin, Kleist e Nietzsche.O tríptico era uma preferência e ele repetiu o modelo ao trazer perfis biográficos de Tolstói, Casanova e Stendhal em Três Poetas de Sua Vida. Repetiu a dose em A Cura Através do Espírito, reunindo Freud, Mary Baker Eddy e Mesmer. Além disso, dedicou um livro para tratar da obra do amigo fraterno Romain Rolland, autor francês agraciado com um Nobel de Literatura e de quem se afastaria no final da vida. Também é autor de um trabalho ousado sobre Erasmo de Roterdã e teve fôlego para retratar um embate entre duas personalidades históricas em Castello Contra Calvino: Uma Consciência Contra a Violência.Seu livro mais famoso na terra onde terminou sua vida, porém, é o controverso Brasil, Um País do Futuro, no qual apresenta suas impressões de nossa terra. O resultado agradou a alguns e desagradou a outros. Os que gostaram viram no texto uma prova de afeto à nação. Os que criticaram o acusaram de amontoar estereótipos. O trabalho lhe valeu ainda uma acusação da qual ele se ressentiu bastante: a de ter recebido vantagens do governo Vargas para escrever o livro, numa espécie de troca de favores, já que ele conseguiu obter o visto de residência no Brasil em tempo recorde. Zweig sempre negou essa versão.Essa suspeita, porém, rendeu dissabores ao escritor. Muitos jornalistas não perdoaram a celebridade literária que decidiu fazer do Brasil sua morada. Houve oportunismos por parte de várias pessoas que se aproximaram dele – e de sua fama – para conseguir vantagens. Zweig não era um ingênuo, mas, como conta Alberto Dines em sua biografia, tinha certa dificuldade em se desvencilhar daqueles parasitas, o que o deixava isolado e abatido. Isso foi se intensificando, criando uma atmosfera em que o autor já não via o gigante tropical para o qual ele decidiu vir com medo do alcance da guerra com os mesmos olhos.Mas a guerra bateu à sua porta. Muito se especulou sobre o gatilho que o fez se decidir pelo suicídio. Em sua carta de despedida, ele deixa claro que as vitórias nazistas até então lhe deixaram sem chão. “Em parte alguma eu poderia reconstruir a minha vida agora que o mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído”, escreveu. Ainda assim, lançou uma palavra de esperança. “Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes”, concluiu. Nunca foi confirmado qual foi o veneno que o casal ingeriu.Sobre o que não resta dúvida foi a comoção que aquela morte causou. Poucos dias antes, a opinião pública brasileira, ainda reticente com a entrada do Brasil na Segunda Guerra, sobretudo por saber que na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas havia simpatizantes de Hitler, voltou-se totalmente contra as forças do Eixo quando navios brasileiros começaram a ser torpedeados no Oceano Atlântico. As notícias dos ataques teriam impactado Zweig, concretizando o pânico de se confrontar com as garras nazistas, motivo que o fez fugir da Áustria, da França e da Inglaterra. Aqui, acabou fugindo do mundo. Uma obra revigoradaO Mundo de Ontem – ou O Mundo que Eu Vi, a depender da edição – é um dos livros que Stefan Zweig deixou inédito. A obra póstuma resume o estado de espírito em que ele estava quando decidiu pôr fim à própria vida, mas também é o relato de uma testemunha ocular de seu tempo, com interlocutores que fariam inveja a qualquer historiador. Uma obra que ganhou grande repercussão logo após a morte do escritor, mas que, como outros títulos de sua autoria, caíram em certo ostracismo. A biografia escrita por Alberto Dines reavivou, nos anos 1980, esse interesse por seus livros. Agora, é possível ler Zweig com facilidade.No final do ano passado, a editora Nova Fronteira, em parceria com a Amazon, publicou uma edição especial da biografia que Zweig escreveu sobre o autor russo Dostoiévski. Um pouco antes, em 2020, o selo lançou um box em três volumes, com as biografias de Sigmund Freud, Liév Tolstói e Friedrich Nietzsche, originalmente publicadas em títulos distintos. Ainda em 2018, o mesmo selo, em uma coleção comemorativa batizada de Clássicos de Ouro, trouxe ao mercado uma coletânea com os títulos Amok, A Governanta, Pequena Novela de Verão, A Ruazinha ao Luar e História Narrada ao Crepúsculo. Na década passada, seus trabalhos voltaram ao catálogo de maneira mais organizada. A Editora Zahar trouxe novas edições da autobiografia O Mundo de Ontem, da biografia de Maria Antonieta e de boa parte de sua produção em ficção, como os enredos de Medo, Carta de Uma Desconhecida e 24 Horas na Vida de Uma Mulher – reunidas no volume Três Novelas Femininas – e Segredo Ardente, Confusão de Sentimentos e a elogiada Xadrez, espécie de alegoria do tabuleiro geopolítico que levou o mundo à conflagração da Segunda Guerra Mundial – compiladas em Novelas Insólitas.Pelo selo também estão disponíveis outros títulos, como Joseph Fouché, A Cura Pelo Espírito e O Mundo Insone. Fora da Nova Fronteira e da Zahar, sua obra está dispersa. Brasil, Um País do Futuro, só foi publicado em 2006 pela L&PM. Já a biografia de Maria Stuart foi relançada pela José Olympio, com tradução de Lya Luft. Ela assina ainda uma tradução de 24 Horas na Vida de Uma Mulher, pela L&PM. Outra de suas obras póstumas, o ensaio biográfico Montaigne, que ficou inacabado, foi publicada pela editora Mundaréu. No ano passado, a editora Fósforo trouxe uma edição separada de O Livro do Xadrez.