Alfredo da Rocha Viana (1897- 1973), um dos maiores músicos do País, conhecido como Pixinguinha, não tinha caráter. Levando-se em conta os cânones do choro, era isso o que diziam os críticos de plantão, nas primeiras décadas do século 20. Na época, falava-se que um choro contendo só duas partes era um ?choro sem caráter? ? quando o convencional pregava que o ideal fossem três. Mais tarde, os detratores do compositor teriam de se curvar. Em 1937, os consagrados Francisco Alves e Carlos Galhardo recusaram gravar o tal do choro sem caráter de Pixinguinha. Com letra de João de Barro, o Braguinha, coube a Orlando Silva, o Cantor das Multidões, gravá-lo, com o título de Carinhoso, e eternizá-lo como o tema mais famoso do cancioneiro nacional. No lado B, de quebra, ainda tinha a não menos conhecida valsa Rosa.A faceta de compositor de Pixinguinha é venerada há tempos, não sendo novidade para mais ninguém. O que chama atenção, recentemente, é que a atuação do músico como arranjador vem sendo cada vez mais reconhecida. O último exemplo disso é o livro Pixinguinha na Pauta, organizado pelo Instituto Moreira Salles (IMS), com lançamento marcado para quinta-feira, no Rio. A obra, em princípio, atende diretamente aos músicos e iniciados, mas não deixa de ser um exemplo de preservação do patrimônio cultural do País. O material, inédito até hoje, reúne 36 arranjos feitos por Pixinguinha para o programa O Pessoal da Velha Guarda, veiculado na Rádio Tupi de 1947 a 1952.Capitaneado pelo cantor e radialista Almirante, o programa durava cerca de 30 minutos e traçava um verdadeiro retrato do que se produzia musicalmente de bom no fim do século 19 e da primeira metade do 20, com temas de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Jacob do Bandolim e do próprio Pixinguinha, entre eles, dois inéditos. ?Essas partituras são aliadas da história. Elas podem ser disseminadas. As gravações desse programa do Almirante não eram comerciais. O Pixinguinha deixou muitas coisas escritas. O acervo dele tem cerca de 320 arranjos, é um tesouro?, conta Bia Paes Leme, professora da Escola Portátil de Música, do Rio, organizadora do projeto e coordenadora de música do IMS.Com um trabalho de pesquisa louvável, envolvendo uma equipe de 12 revisores debruçados em cima das grades feitas para orquestra, pode-se dizer que o suprassumo disso tudo vai muito além dos temas recuperados dos compositores consagrados e citados anteriormente. O interessante mesmo é ver reveladas, praticamente pela primeira vez, composições de nomes quase anônimos na enciclopédia da música brasileira. As polcas-tangos A Mulher do Bode, de Cardoso de Meneses Filho, e Ai! Ai!, de Valério Vieira, o maxixe Bebê, de Paulino Sacramento, a valsa Buenos Dias, de Aurélio Cavalcanti, as polcas Da Urca ao Pão de Açúcar, de Amadeu Taborda, Fecha Carrança, de Aristóteles de Magalhães Pery, I Moretti, de Cesare Bonafous, Odalisca, de Flisberto Marques, e Morro da Favela, de Passos, Bornéu e Bernabé.?Essas partituras revelam quatro elementos fundamentais que ele conseguiu unir: sua formação de banda; a atuação em cafés-concerto e pequenas orquestras, um lado mais camerístico; a vivência de chorão com os regionais; e o convívio nos morros aflorando a parte rítmica, a percussão. Sem contar que elas mostram toda a evolução do Pixinguinha em relação aos arranjos que ele já fazia para as marchas consagradas nos carnavais dos anos 1930?, explica o violonista Paulo Aragão, um dos revisores e coordenadores do projeto.E ainda há muito a ser revirado no baú de tesouros de Pixinguinha. Além dos 36 arranjos, publicados agora, o IMS pretende lançar até o ano que vem outros 108. Antes disso, em breve essas primeiras partituras devem ter o áudio das gravações disponível no site do instituto para que o público possa ouvir o que ainda só está no papel.?Para mim, este trabalho é uma realização. Em 2001, fiz meu mestrado sobre os arranjos do Pixinguinha. Naquela época, tive acesso a algumas partituras, mas não estavam catalogadas e organizadas como hoje. Ter participado do projeto é como se um ciclo se fechasse para mim sobre a obra do Pixinguinha. Esse material é primordial para a formação futura de músicos de todo o Brasil?, diz Aragão. ?Temos a intenção de usar esses arranjos em palestras e audições dirigidas para que o público possa entender melhor. Isso vai ajudar a formatar a escola brasileira de arranjo?, completa Bia Paes Leme.Acervo de Jacob do Bandolim está aberto ao público no MIS do RioAlém de Pixinguinha, com sua preocupação de escrever suas criações e as dos outros para que pudessem ser aproveitadas por futuras gerações, quem também tinha o mesmo zelo era Jacob Pick Bittencourt (1918-1969), o Jacob do Bandolim. O compositor e bandolinista tinha uma obsessão quase que megalomaníaca em documentar seus momentos, fossem eles artísticos ou pessoais.Em relação às canetadas no papel, mais de 41 anos depois da morte de Jacob, pela primeira vez, em parceria do Instituto Jacob do Bandolim e da editora Irmãos Vitale, será lançado um caderno contendo as 130 composições que integram a obra completa do artista. O livro, que deve ser lançado ainda este semestre, teve direção-geral de Pedro Aragão, direção musical de Marcílio Marques, direção artística e pesquisa de repertório de Sergio Prata, consultoria musical de Déo Rian e Bruno Rian e harmonias de Mauricio Carrilho, Luiz Otávio Braga e Paulo Aragão, também envolvido no projeto de Pixinguinha.Na parte sonora, outra riqueza, um trabalho também comandado pelo Instituto Jacob do Bandolim. O projeto, iniciado em 2002 e concluído recentemente, digitalizou 200 rolos de fitas magnéticas, que resultaram em 400 horas de gravação e 350 CDs, que ficarão à disposição do público no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio.Entre as joias, raridades como a gravação completa da final da copa de 1958 entre Brasil e Suécia, o show em que Jacob teve seu primeiro enfarte, no Teatro Casa Grande, em 1967, ensaios do disco que Jacob pretendia lançar pouco antes de morrer, em 1969, e programas musicais nas rádios Nacional, Tupi, Mauá e Mayrink Veiga.