Uma invenção. Assim pode ser chamado o sobrenome do único autor em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Saramago não era e nunca foi sobrenome da família de José, a criança que veio ao mundo em 16 de novembro de 1922 (mas só foi registrada dois dias depois), na aldeia de Ribatejo, Azinhaga, povoado às margens do Rio Almonda, cerca de 100 km a nordeste de Lisboa. Quem lhe deu este nome, que viria a ser conhecido mundialmente, foi um anônimo funcionário do registro civil, que lhe adicionou a alcunha com que o pai da criança (que também se chamava José) era conhecido por amigos e vizinhos.“Saramago é uma planta herbácea espontânea cujas folhas, naqueles tempos, em época de carência, serviam para alimentar a cozinha dos pobres”, escreveu o autor em uma breve autobiografia que pode ser lida logo à entrada da sede da Fundação José Saramago, que fica na Rua dos Bacalhoeiros, perto do Terreiro do Paço, de frente ao largo agora batizado com o nome do autor português mais proeminente desde Fernando Pessoa. Um lugar que esteve bem movimentado durante este ano de 2022, com diversos eventos, como peças de teatro, saraus, palestras e colóquios, marcando o centenário do autor.No dia 16, haverá uma leitura coletiva, na sede da fundação em Lisboa e na sua última residência, na ilha espanhola de Lanzarote, dentro do projeto Leituras Centenárias. Esse gesto vai ser repetido por milhares de alunos de escolas de Portugal e Espanha, que lerão em voz alta trechos de uma autobiografia escrita por Saramago sobre sua infância. Na filial da fundação em Azinhaga, sua terra natal, será plantada a centésima árvore em sua homenagem, na ação 100 Oliveiras para Saramago. À noite, no Teatro São Carlos, em Lisboa, será encenada a ópera Blimunda, inspirada no livro Memorial do Convento.Antes, porém, nesta segunda-feira (14), será entregue, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, mais um Prêmio Literário José Saramago, prestigiada honraria em língua portuguesa. Essas celebrações vêm sendo organizadas pela Fundação José Saramago, cuja sede, em Lisboa, fica na Casa dos Bicos, imóvel histórico que resistiu ao terremoto de 1755 e guarda ruínas romanas. Na frente do edifício, há uma oliveira, trazida da região de Azinhaga e replantada ali. Sob sua sombra, repousam as cinzas do escritor, morto em 18 de junho de 2010. Ao lado, a mensagem: “Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia”.Se o que um dia foi o homem repousa sob a terra, o que este mesmo homem produziu, porém, nunca mais pereceu. Saramago é dono de uma obra que carrega as características de um ficcionista que não só conquista milhões de leitores ao redor do mundo, nos mais variados idiomas, mas transforma-se em referência inescapável e um tradutor de seu tempo e do passado. Ele costumava alternar obras que situava numa contemporaneidade sobre a qual lançava um olhar profundamente crítico e livros que revisitavam fatos históricos, dando-lhes outras leituras, lançando provocações às narrativas estabelecidas.Além disso, Saramago era um mestre no manejo da ironia, de um sarcasmo fino e cortante, fruto de uma inteligência aguda, cultivada por uma abertura a receber informações e entabular diálogos com pessoas dos mais diferentes pensamentos, das ideologias mais distintas. Um mural com registros fotográficos de sua vida, exposto na sede da fundação, é um exemplo desse ecletismo. Ali ele aparece abraçado com autores que se distanciaram uns dos outros, como o socialista Gabriel García Márquez e o liberal Mario Vargas Llosa, compartilhando momentos com escritores de diferentes gerações e procedências.O Brasil sempre ocupou um lugar especial nessa trajetória, seja pela língua comum, seja pela admiração genuína que Saramago tinha pelo país e por brasileiros de quem se tornou amigo próximo. Um deles foi Jorge Amado. Dentro da fundação, há um espaço batizado com o nome do escritor baiano, único a receber essa deferência. São muitas as fotos que mostram Saramago ao lado do amigo e de sua esposa, Zélia Gattai, na notória Casa do Rio Vermelho, em Salvador, que também hoje é um museu. Em outros registros, Saramago está com Caetano Veloso, com Chico Buarque, com Nélida Piñon, com Lygia Fagundes Telles.Foi também um diretor brasileiro, Fernando Meirelles, quem transpôs para o cinema uma de suas obras mais conhecidas, Ensaio sobre a Cegueira. Um vídeo mostra o cineasta fazendo uma sessão especial para apresentar, em primeira mão, o filme a Saramago. A expectativa era grande e o escritor, muito atento a tudo, permaneceu em silêncio durante toda a exibição, aumentando a aflição da equipe. “Será que ele odiou?”, perguntava-se Meirelles. Após o desfecho, as luzes da sala acesas flagram Saramago emocionado. “Estou tão feliz de ver esse filme como estava quando acabei de escrever o livro”, comparou.O menino que recebeu um sobrenome inventado talvez não pudesse mesmo se desviar do destino de inventar tantos mundos, explorar uma imaginação fértil que conseguiu unir, em muitos momentos, relatos históricos e a mais inspirada criação literária. Do rei português Afonso Henriques, que retomou Lisboa para os católicos no século 12, aos heterônimos de Fernando Pessoa que ganharam vida e transformaram o poeta num fantasma, Saramago não teve amarras para sua ficção. Nem a morte escapou de seu olhar às vezes sarcástico, sempre profundo, jamais previsível. Há muito o que celebrar – e ler – nesse centenário.Imaginação ilimitadaUm belo dia, a morte decide que vai fazer greve. Isso mesmo! A mulher da foicinha, chateada por ser tão vilipendiada, temida, mal afamada, resolve que não irá mais matar uma viva alma. Vamos ver como a humanidade se arranja com isso? A partir de perguntas desconcertantes, José Saramago criava enredos que primavam pela originalidade, pelo poder de fecundar situações inusitadas, mas que revelavam a alma humana em toda a sua transparência, demolindo hipocrisias, dessacralizando temas, destruindo tabus e fazendo com que seu leitor pensasse sobre as possibilidades que seus livros abriam.É assim em As Intermitências da Morte. Choramos nossos entes queridos, lamentamos a partida de pessoas fundamentais em nossas vidas, nos solidarizamos com os óbitos que atingem amigos e parentes, mas a imortalidade seria, talvez, algo ainda pior. Saramago nos lança em um mundo onde ninguém morre, mas que ninguém deixa de envelhecer e declinar, física e mentalmente. As pessoas não param de nascer e os idosos, já com uma idade muito avançada, precisam compartilhar espaço em casas cada vez mais cheias, em asilos cada vez mais lotados, em um mundo que não sabe o que fazer com eles.Com extrema ironia, Saramago começa a listar outra série de inconveniências, como a economia que se abala tendo que sustentar uma quantidade imensa de pessoas que não podem mais trabalhar. Alguns setores, como o de saúde, praticamente desaparecem, uma vez que ninguém vai mais vai a hospitais ou toma remédios, pois a morte deixou de ser uma ameaça. Falta alimento para todos e mesmo terrivelmente desnutridos, as pessoas não morrem. O caos se instala, enfim. E a Morte assiste a tudo satisfeita, gozando a vitória de que há muita gente sentindo sua falta, talvez até rezando por seu retorno.Sim, o tema pode ser incômodo, mas Saramago investia em narrativas que também buscassem essa sensação. É assim com Ensaio Sobre a Cegueira, quando uma misteriosa epidemia retira a visão de quase todo mundo e as pessoas passam a enxergar apenas um branco intenso, puro como um copo de leite. Mas uma mulher, por motivos também desconhecidos, não é afetada. Numa sociedade que se desestabiliza e entra em desespero diante da falta de visão, ela começa a testemunhar as atrocidades que tantas pessoas cometem por julgarem não estar sendo vistas por ninguém. E o horror vem à tona.Outro ponto forte da obra de Saramago é promover interações entre tempos diferentes. Em A História do Cerco de Lisboa, por exemplo, ele toma uma personagem do século 20 para nos guiar pelas vielas do antigo bairro da Alfama, em Lisboa, nos arredores da Igreja da Sé (ali ao lado nasceu Santo Antônio, por exemplo), nos transportando para oito séculos atrás, quando a cidade era dominada pelos chamados mouros e o lugar era uma mesquita. Os preparativos do rei Dom Afonso Henriques para retomar a cidade, assim como seus acordos com cavaleiros cruzados, são contados, num tour pela história de Portugal.Algo parecido ocorre em outras obras, como Memorial do Convento, em que Saramago narra a construção do fabuloso prédio do Convento de Mafra, ao mesmo tempo em que acompanha as peripécias de um padre inventor que desejava voar e a paixão dos personagens Blimunda e Baltazar, enquanto a Inquisição promove perseguições. Já em A Viagem do Elefante, o escritor explora o fato verídico que foi o envio de um elefante asiático pelo rei português D. João III como presente ao seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria. Essa jornada inacreditável é mostrada em seus absurdos e invenções.Apesar dessa produção que mescla realidade e ficção, Saramago não pode ser lido como um autor de romances históricos. Ele preferia tomar o que há de fantástico na realidade para recriá-la a seu modo, sem compromisso algum com versões. Isso lhe dá total liberdade para, por exemplo, imaginar um país em que a maioria das pessoas, numa eleição, vota em branco. Em Ensaio Sobre a Lucidez, o autor debate a consciência política e a violência que ela desencadeia por outra perspectiva. O ângulo inusitado é uma de suas marcas, seja para enredos fantásticos, seja para abordar o povo, como em Levantados do Chão.Os temas centrais de Saramago flertam com uma literatura que poderíamos até aproximar do realismo mágico, com fantasmas e acontecimentos sobrenaturais, mas é preciso ir além dessa camada mais aparente. Na verdade, o escritor testa os limites da humanidade e suas eventuais respostas em alegorias, colocando seus leitores diante de situações complexas, que não permitem alienações ou isenções. Em Jangada de Pedra, a Península Ibérica inteira se desprende da Europa e passa a vagar pelo Atlântico, com destino incerto. Nessa situação dramática, verdades e mentiras começam a se confundir no jogo político.Já a questão da identidade – ou da falta dela – é abordada por Saramago no fenomenal O Ano da Morte de Ricardo Reis, em que um heterônimo de Fernando Pessoa ganha vida própria, mas passa a ser assombrado pelo fantasma do próprio poeta, que além de anunciar seu fim – “afinal, fui eu que o criei” –, também contesta suas atitudes. Pessoa insere-se na narrativa como um ser mais imaginário do que aquele que ele próprio inventou para assinar parte de suas poesias. Um jogo metanarrativo extremamente bem conduzido por Saramago, que assim estabelece uma trama em várias esferas simultâneas.Já em O Homem Duplicado, o escritor elabora um trabalho que tem antecedentes. O arquétipo do duplo ou do sósia já havia aparecido em obras de Dostoiévski e Machado de Assis, por exemplo, mas em Saramago, seu personagem, Tertuliano Máximo Afonso, insere na trama um elemento de inveja pela vida duplicada que, na verdade, ele não goza. Em Todos os Nomes, o autor nos apresenta um arquivista que vive às voltas com milhares de fichas de pessoas que já morreram, mas continuam despertando sua curiosidade. É um enredo que dialoga com Kafka em certos momentos, com Melville em outros.Dono de uma erudição espantosa, Saramago também trabalhou temas bíblicos, como no polêmico O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em que imagina um Cristo humanizado, com dúvidas, desejos e fragilidades. O livro foi boicotado pela Igreja Católica e chegou a sofrer censura do governo português, que se recusou a inscrevê-lo num prêmio europeu, o que foi determinante para que Saramago se mudasse para a Ilha de Lanzarote, nas Canárias, Espanha, onde passaria seus últimos 20 anos de vida e escreveria seus derradeiros livros, como os 5 volumes de Cadernos de Lanzarote, além de Caim e Alabardas, entre outros.Enredo de uma vidaFilho de um lavrador que lutou na França durante a Primeira Guerra Mundial, bom aluno, aprendiz de serralheiro mecânico e que só comprou seu primeiro livro literário aos 19 anos de idade, José Saramago teve uma trajetória cheia de possibilidades que poderiam ter mudado os rumos de sua vida. Ele passou por algumas profissões antes de se firmar como escritor profissional, indo de uma oficina de reparos de carros e do serviço público, até ser um repórter competente em vários jornais portugueses. Em 1944, casou-se pela primeira vez, com Ilda Reis, que posteriormente ganhou notoriedade como artista plástica. Com ela, o autor teve sua única filha, Violante, nascida em 1947.Naquele mesmo ano, ele fez sua primeira tentativa de ser escritor, publicando um pequeno romance de forma independente, que ele gostaria de ter batizado de A Viúva, mas que acabou recebendo o nome de Terra do Pecado. Sua estreia na literatura poderia ter sido ainda mais sólida se tivesse dado continuidade com a publicação de Claraboia, livro que escreveu também no final dos anos 1940, mas que só veio a público em 2011, já como uma obra póstuma. Apesar de ser um frequentador de bibliotecas no horário noturno, Saramago só retornou ao mundo editorial quando foi trabalhar numa empresa do ramo, nos anos 1950.Primeiro como tradutor – Saramago passou para o português obras de autores como Tolstoi, Baudelaire e Maupassant –, e só depois como autor, após publicar, em 1966, a obra Poemas Possíveis, o escritor foi construindo, pouco a pouco, uma carreira literária, apesar das dificuldades. Afinal, ele era um adepto do comunismo e do socialismo num período em que Portugal estava sob a ditadura fascista de António Salazar, que perseguia tudo e todos que fossem de esquerda. Nessa fase, ele investiu mais em crônicas, como nos volumes Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante. Mas veio a Revolução dos Cravos e…A queda do salazarismo em 1974 foi um divisor de águas para o autor, mas Saramago teria outro revés, com o golpe militar de 1975, que o fez perder o emprego no jornal Diário de Notícias, um dos maiores de Portugal, onde era diretor-adjunto. Os anos posteriores, porém, marcariam o sucesso de sua obra ficcional. Nas três décadas seguintes, Saramago publicaria suas obras mais marcantes e firmaria seu nome no cenário literário internacional. Um prestígio que lhe valeu os principais prêmios em língua portuguesa, como o Camões, em 1995, e a maior honraria internacional da área, o Nobel, que ganhou em 1998.De algumas convicções, Saramago nunca arredou pé, apesar de admitir que passou por mudanças no decorrer da vida. Ainda que não fosse mais um militante, ele permaneceu um homem com pensamentos de esquerda, uma voz que se levantava contra o fascismo. Em 1997, integrou o projeto Terra, ao lado de Chico Buarque e do fotógrafo Sebastião Salgado, em prol do Movimento dos Sem-Terra. E apesar de ser considerado um autor com “fé nas palavras”, Saramago permaneceu ateu, ainda que tivesse atração pelos assuntos sagrados. Não era crença, mas curiosidade. Talvez a crença ferrenha na própria curiosidade.Mais afastado dos debates públicos nos últimos anos de vida, encontrou nas Ilhas Canárias um refúgio em que podia contemplar o horizonte, ouvir o uivo do vento e lidar com a aridez da velhice. Em 1986, encontrou a mulher que lhe acompanharia até o fim. A jornalista espanhola Pilar Del Rio o conheceu numa entrevista sobre o livro Memorial do Convento. Em 1988, eles se casaram e renovaram os votos em 2007. Ela continua a ser uma fiel escudeira de sua obra e foi corresponsável pela produção volumosa de Saramago a partir dos anos 1990. O escritor morreu aos 87 anos, de falência múltipla de órgãos, em 2010.-Imagem (1.2559619)