Como um homem que se autointitulava médium conseguiu praticar crimes por mais 40 anos, impunemente, protagonizando assim o maior escândalo sexual do Brasil? A resposta para esta pergunta está nas 240 páginas do livro João de Deus – O Abuso da Fé, que chega às livrarias de todo o País nesta quinta-feira (14/10). Apesar do muito que já foi dito em jornais, revistas, programas televisivos ou séries, a obra escrita pela jornalista Cristina Fibe, lançada pela Globo Livros, é permeada por informações inéditas, muitas vezes na voz das próprias vítimas. Seu maior feito, no entanto, é estabelecer de forma muito clara a rede de proteção ao redor do homem apontado como estuprador e abusador por mais de 300 mulheres. “A rede de proteção no entorno de João de Deus foi fundamental para que os crimes se perpetuassem por tantos anos”, diz Fibe em entrevista ao POPULAR.Para explicar essa relação, a jornalista, com autorização judicial, se debruçou sobre mais de mil páginas de inquéritos, depoimentos, laudos e sentenças. Também ouviu centenas de pessoas, entre vítimas, familiares e autoridades. É o caso do ex-governador de Goiás Marconi Perillo, da juíza Rosângela Rodrigues Santos, que atuou por 15 anos na comarca de Abadiânia, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso. Uma trama forte, mas necessária para juntar pontas soltas e conectar histórias que incluem, inclusive, homicídios ocorridos na Casa Dom Inácio de Loyola. Confira os principais trechos da entrevista. Muito já foi dito sobre o caso João de Deus. O que o seu livro traz de revelador?As reportagens que o denunciaram — a primeira delas feita por mim e pela repórter Helena Borges, no jornal O Globo, e publicada em dezembro de 2018 — focaram nos relatos de abusos cometidos por João Teixeira de Faria. As séries foram pelo mesmo caminho. No livro, procuro ir além, investigando a biografia do ex-líder espiritual e a própria escolha dele por Abadiânia, onde estabeleceu seu centro espiritual, no fim dos anos 1970. Isso é importante para entender por que razão boa parte dos moradores da cidade sabia dos crimes sexuais, mas não os denunciava. Abadiânia era dependente economicamente de João Teixeira, que levou para lá massas de turistas e trabalhadores. Qual a importância da rede de proteção a João de Deus para a manutenção dos crimes?A rede de proteção no entorno de João de Deus foi fundamental para que os crimes se perpetuassem por tantos anos. Como eu conto no livro, não foram poucas as vítimas que tentaram buscar justiça, que tentaram pará-lo. Em vão. Elas foram caladas, desacreditadas, revitimizadas. Muitas ficaram doentes e sofrem as consequências desse trauma até hoje. Além dos estupros, outros crimes foram denunciados e nunca devidamente investigados e punidos.Em biografias oficiais, antes de as acusações virem à tona pela imprensa, João Teixeira se orgulhava de dizer que sempre contou com a proteção de políticos, policiais, promotores e até juízes. A gravidade disso ficamos sabendo depois. Como foi seu primeiro contato com as denúncias contra o médium?Foi por meio do post que uma mulher holandesa, a Zahira, publicou no Facebook, com o relato em inglês da violência que sofreu na Casa de Dom Inácio. Esse depoimento foi compartilhado por um grupo feminista chamado Gangue Rosa, e pelos comentários feitos no post eu desconfiei que não se tratasse de um caso isolado. Era setembro de 2018, e eu trabalhava como editora adjunta de Sociedade, seção do jornal O Globo que cobria, entre outras coisas, violência contra a mulher. Pautei uma repórter investigativa e sensível, Helena Borges, para entrevistar Zahira e apurar se havia outros casos semelhantes. Havia, e não só um. Em dezembro, publicamos a matéria, junto ao Conversa com Bial, que fez um programa dedicado ao assunto. Pouco mais de uma semana depois, João de Deus foi preso. Quantos depoimentos você coletou? Foram centenas de depoimentos, parte deles em “off”, quando a fonte pede para não ser identificada. Algumas autoridades se recusaram a dar entrevista para o livro, e outras, ao contrário, viram na obra uma oportunidade de registrar a sua visão dos fatos. Foi o caso do ex-governador Marconi Perillo, da juíza Rosângela Rodrigues Santos e do ministro do STF Luís Roberto Barroso, para dar alguns exemplos. Também tive acesso a promotores e promotoras envolvidos na força-tarefa investigativa, instalada logo depois das denúncias publicadas na imprensa, e também a membros da Polícia Civil. Como foi a entrevista com Marconi Perillo?O ex-governador de Goiás (por quatro mandatos) era um amigo próximo de João Teixeira, que homenageou a mãe do político batizando a Casa da Sopa, em Abadiânia, com o nome dela. Perillo esteve algumas vezes com João Teixeira publicamente, antes de as denúncias virem à tona. Mas não havia ainda dado uma entrevista sobre o caso depois da prisão do amigo. Segundo me disse, foi surpreendido pelas acusações na imprensa, e nunca havia sido avisado, por nenhum órgão de inteligência nem pela Polícia Civil, que João Teixeira já enfrentara acusações de abuso sexual. Perillo lembrou ainda que as relações do ex-líder iam muito além da esfera estadual: “João de Deus teve um relacionamento com vários ex-presidentes que têm os serviços de informação — a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e a Polícia Federal — muito mais avançados, muito mais experientes e com muito mais tecnologia. Ele também recebeu e se relacionou com vários ministros, ex-ministros das Cortes Superiores, pessoas do Legislativo… Não é o governo do estado apenas, ou o governador que não soube. Pelo que sei, ninguém, de toda essa plêiade de instituições, foi informado minimamente desse tipo de coisa”. Qual a sua maior dificuldade no processo de apuração?A maior dificuldade foi o medo das pessoas que conhecem a fundo o modus operandi de João Teixeira de Faria. Muita gente não quis falar o que sabia. Outras tentavam me “distrair” com informações improcedentes ou de menor importância. Precisei dedicar algum tempo a unir pontas soltas e coletar documentos que mostrassem que o caso ia além dos abusos cometidos contra mulheres. Tratava-se de uma complexa rede de silenciamento. O que mais te chamou a atenção durante o trabalho?Me surpreendeu o fato de moradores comentarem muito naturalmente que por ali já se sabia dos crimes sexuais há anos. Um homem deu um depoimento para o livro afirmando que, quando chegava um ônibus de fiéis na Casa de Dom Inácio, ele e os amigos faziam apostas de quantas — e quais — o então líder espiritual iria violentar. Por que acha que esses crimes não vieram à tona antes?A maior dificuldade foi o medo das pessoas que conhecem a fundo o modus operandi de João Teixeira de Faria. Muita gente não quis falar o que sabia. Outras tentavam me “distrair” com informações improcedentes ou de menor importância. Precisei dedicar algum tempo a unir pontas soltas e coletar documentos que mostrassem que o caso ia além dos abusos cometidos contra mulheres. Tratava-se de uma complexa rede de silenciamento. E as matérias do POPULAR foram muito importantes no meu caminho de rastrear o que era válido e o que estava tentando me distrair. Investigou a infância dele? Sim, embora os registros daquela época sejam bem limitados. Visitei a região de Goiás onde ele nasceu e foi criado, conversei com amigos de infância e procurei comparar os relatos deles com as versões presentes em biografias oficiais e com entrevistas que o João deu, principalmente no início da fama, nos anos 1980. Muitas datas e versões não batem — o que não consegui comprovar deixei registrado no livro como sendo inconsistente. No livro você relata a tentativa de intimidação por parte de um policial militar em Abadiânia. Pensou em desistir?Nunca pensei em desistir. Falei com autoridades e me protegi, seguindo os cuidados que me foram recomendados. Sabe como João está agora?Os advogados de defesa alegam que sua saúde inspira cuidados — esse é um dos principais argumentos para os repetidos pedidos de prisão domiciliar, que acabou sendo concedida —, e o Ministério Público garante que ele goza de boa saúde.-Imagem (1.2335802)