No dia 22 de março, na Livraria Leitura, do Goiânia Shopping, a jornalista e filósofa Rosângela Chaves lança o livro O Dia de Glória Chegou: Revolução, Opinião e Liberdade em Tocqueville e Arendt, o mais profundo estudo já realizado no Brasil comparando as obras da pensadora alemã e do filósofo francês. O livro inaugura a Coleção Anpof, parceria com a Associação Nacional dos Pesquisadores em Filosofia, com a Editora Almedina, de Portugal, o mais importante selo dedicado às Ciências Humanas do país europeu, que vai distribuir a obra em todas as nações de língua portuguesa. Ex-editora do caderno Magazine, do POPULAR, Rosângela, que também é professora universitária, fez seu mestrado e doutorado em Filosofia na UFG estudando, justamente, o legado de Hannah Arendt, autora fundamental para a compreensão de vários fenômenos políticos do século passado e também deste. O Dia de Glória Chegou é resultado de sua tese de doutorado, composta, ainda, com pesquisas feitas na Europa. Seu mestrado também se transformou em livro, chamado A Capacidade de Julgar, um Diálogo com Hannah Arendt, publicado pelo selo goiano Cânone Editorial e pela Editora da PUC Goiás. O livro foi inscrito num edital nacional aberto pela Anpof, visando publicar uma dissertação, uma tese e uma produção inédita de um professor vinculado a pós-graduações brasileiras. A associação fez uma pré-seleção dos textos inscritos e um novo filtro foi realizado pelo conselho editorial do selo português. “Acho legal por ter sido meu trabalho o escolhido porque sou fora do eixo Rio-São Paulo”, afirma Rosângela, que também participa do Dicionário Hannah Arendt, obra coletiva de vários estudiosos da autora no País. Nesta entrevista, ela fala de seu trabalho e do espaço que as mulheres têm conquistado na área. VEJA TAMBÉM• Pensadoras ganham cada vez mais espaço na Filosofia• Conheça filósofas de ontem e de hojeGostaria que você falasse um pouco dessa obra, em que trata das ideias de Hannah Arendt e Tocqueville, pertencentes a épocas diferentes, mas que dialogam em muitos aspectos.O livro é resultado da minha tese de doutorado, um processo de cinco anos de pesquisa, desde quando entrei no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFG, em 2014, até minha defesa, em 2018. Nesse período, fiz um estágio-sanduíche na Universidade de Coimbra, em Portugal, mas também pesquisei na Universidade de Lisboa e passei uma temporada na Bibliothèque Nationale, em Paris, onde também fiz pesquisas no Centro de Estudos Raymond Aron, o Cespra, que tem um Acervo Tocqueville, onde tive acesso a muito material sobre o autor. Já havia textos menores, alguns trabalhos tratando das aproximações entre Hannah Arendt e Tocqueville. Meu trabalho tem uma originalidade por conta de sua profundidade e amplitude, trabalhando como os dois autores interpretam as revoluções francesa e americana. A partir desse conceito de revolução, trabalho os conceitos de opinião pública, liberdade, igualdade, felicidade em sua dimensão do espaço público, fraternidade e os caminhos institucionais que vão apontar para fomentar a cidadania.Tocqueville é um autor que Hannah Arendt citava muito e de quem ela gostava. Ele aparece na obra dela em breves citações, para reforçar algum raciocínio, dificilmente para discordar dele. Ela não dedica a ele abordagens como o faz para Maquiavel, Montesquieu e Rousseau, a quem ela critica. Mas é impressionante a afinidade com as ideias de Tocqueville. Quando você pega as obras dela sobre a revolução e o livro Democracia na América, do Tocqueville, há muitas semelhanças na forma de interpretar as revoluções pelo viés da liberdade, mais do que pelo aspecto econômico. Pensar as revoluções no sentido de criar um corpo político para pensar a liberdade de exercer a cidadania. Eles vão se distanciar de uma tradição mais liberal, à qual eles costumam ser filiados, na minha visão, de forma equivocada. Na tradição liberal, a liberdade é pensada como algo separada da política, como sinônimo das liberdades individuais, na vida privada. Arendt e Tocqueville vão pensar a liberdade como ação política. Daí vou derivando outras formas de participação.Você estuda Hannah Arendt, que é a filósofa mais influente e importante do século 20. Como você percebe o espaço das mulheres na Filosofia hoje?Hannah Arendt, entre homens e mulheres, é uma das teóricas políticas mais importantes do século 20. E a influência dela só cresceu no decorrer do tempo, desde quando ela começou a publicar, até quando passou a ter mais espaço no final do século 20. Nessas duas primeiras décadas do século 21, com o fortalecimento da extrema-direita em todo o mundo, com a gente voltando a falar de nazismo, muita gente retornou à obra de Hannah Arendt, que é uma referência para pensar esses regimes autoritários. Mas, de fato, a Filosofia, nos cursos da área, nos encontros, nas seleções de mestrado e doutorado, ainda percebemos que a participação feminina é minoritária. Mas essa presença feminina tem aumentado bastante. De fato, parece que a Filosofia é um campo só masculino, mas não porque as mulheres não produziam ou publicavam, mas porque ficavam em segundo plano. Hoje há um esforço para recuperar isso, desde a inglesa Mary Wollstonecraft, que pensou a questão das sufragistas, da participação política da mulher. Hoje temos um trabalho para dar maior visibilidade a esses nomes, mas há muito a ser feito. A referência dos cursos de Filosofia, o cânone filosófico é majoritariamente masculino. Mas nesse movimento feminista, há uma série de coletivos que têm tentado resgatar a obra de pensadoras brasileiras, como a de Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, brasileiras e negras. Falam da questão da mulher e da mulher negra. Há também as pensadoras latinas, que têm sido destacadas na academia. Embora a Hannah Arendt nunca tenha se identificado com o movimento feminista, ela já chegou a ser criticada por não ter se dedicado à questão da mulher. Mesmo que ela não tenha pensado essa questão, acredito que seus instrumentos, suas categorias filosóficas, a forma como pensa a participação na política fornecem bases muito interessantes para pensar a questão feminina, sobre a emancipação das mulheres. Uma crítica que eu faço a ela é a forma como, às vezes, ela se referiu ao movimento feminista, de maneira um pouco jocosa. Nas correspondências dela, há referências a Simone de Beauvoir, por exemplo, mas nenhum pensador é perfeito.Você citou Simone de Beauvoir e todas as vezes que leio suas obras ou os trabalhos de Hannah Arendt, parece-me que há em ambas um olhar muito arguto sobre as pessoas. Isso parece evidente no livro Eichmann em Jerusalém, quando Arendt lança um olhar inédito sobre um criminoso nazista, vendo ali as torpezas e fragilidades de um homem. O mesmo parece ocorrer no Segundo Sexo, livro de Beauvoir, sobre a figura do homem opressor.Nunca tinha pensado nesses termos, é interessante o que você traz. No caso da Hannah Arendt, até por sua história pessoal, ela tentava olhar para a realidade com uma visão totalmente despida de qualquer tradição. Justamente para jogar esse olhar novo para a realidade, ela não estava presa às categorias políticas, que na sua opinião não davam conta, eram insuficientes para explicar o mundo. Como explicar a questão do homicídio diante do genocídio? Era preciso pensar em novas categorias. A categoria de ditadura serve para explicar os fenômenos do fascismo e do nazismo? É claro que, quando faz isso, Hannah Arendt é a história dela, a de uma mulher. Por isso acho que é interessante sua questão porque quando olha para o Adolf Eichmann, ela tenta ver nele uma pessoa e não um monstro. Se você transforma alguém em um monstro, você o desresponsabiliza. Um monstro é um monstro. Eichmann poderia ser seu vizinho e vemos isso hoje no Brasil. Ela tinha uma expressão de que gosto muito: tentar pensar sem corrimão. Ao fazer isso, é ela olhando com sua experiência. Ela dizia: sou feminini generis, ou seja, quem está falando aqui é uma mulher. Com o olhar dela de mulher, com a experiência de uma mulher judia que foi perseguida e ficou 18 anos como pária, apátrida. Tudo isso ela carrega. Pensando na Simone de Beauvoir, ela faz toda uma interpretação, em O Segundo Sexo, da literatura, com esse olhar feminino. É uma mulher lendo e uma mulher lendo faz toda a diferença. Um conceito muito importante na Hannah Arendt é a pluralidade. Nós somos iguais porque somos humanos, mas ao mesmo tempo somos singulares, irrepetíveis. Cada um olha o mundo a partir de sua perspectiva, de sua singularidade, de sua história. À medida que você insere mais pessoas, mais interpretações do mundo, mais visões não só das mulheres, mas dos indígenas, dos negros, das pessoas que estão fora do cânone do pensamento ocidental, masculino e branco, você traz mais possibilidades de entender o mundo. Ele fica mais colorido, plural, mais interessante.Quais filósofas deveríamos ler mais?É algo que estou começando a fazer agora. A questão feminina, até agora, não foi também uma questão para mim. Meus interlocutores, na minha trajetória acadêmica, acabaram sendo também mais homens que mulheres. Claro que, ao estudar Hannah Arendt, eu lidei com intérpretes da filósofa, como Margaret Canova ou Seyla Benhabib. Aqui também há várias estudiosas. A minha orientadora, Helena Esser dos Reis, foi uma das pioneiras ao trazer Tocqueville para o Brasil. Uma leitura recente que fiz foi o livro O Pensamento Feminino Brasileiro, organizado pela Heloísa Buarque de Holanda, que trouxe vários artigos de mulheres, não só da Filosofia, mas de outras áreas. Outra autora muito importante é a Judith Butler. Eu também colocaria (na lista de leitura) a bel hooks, a Hélène Cixous, a Simone de Beauvoir, que tem o interesse sempre renovado. Dias atrás li um texto muito interessante sobre Nísia Floresta, que foi uma pioneira no Brasil, traduzindo a Mary Wollstonecraft aqui. E há, por fim, Madame de Staël, que é alguém muito interessante, uma mulher do final do século 18, teórica da filosofia política e que influenciou autores como Benjamin Constant e o próprio Tocqueville. É uma autora que merece ser muito estudada. O Napoleão Bonaparte tinha ódio dela, foi perseguida por ele. Ela era espionada dia e noite por Napoleão. Ela não era nenhuma democrata e o modelo que ela pensava para a França na época não era uma República, mas uma monarquia constitucional, nos moldes ingleses. Ela organizou a resistência a Napoleão. Foi uma autora muito importante tanto na Filosofia quanto na literatura, onde ela traz personagens femininas. Estou trabalhando num texto agora num diálogo entre Hannah Arendt e a Mary McCarthy, grande escritora dos EUA.