Nem só de baixa umidade, queimadas e sol quente vive a temporada mais seca do ano em Goiás. É no momento de maior desespero que os ipês deixam todas as suas folhas caírem e pintam a paisagem com flores de cores exuberantes. É sempre assim: no final de agosto Goiânia se torna um verdadeiro jardim urbano. Nas praças, parques, calçadas e esquinas, as árvores amenizam a sequidão e dão diferentes tons ao cotidiano.

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Seja no Centro, como os tradicionais ipês da Av. Anhanguera, até os bairros periféricos da capital, as árvores se tornam pontos de referência para aquele clique fotográfico ou, simplesmente, para apreciar e admirar. “Existem diversas espécies de ipês, algumas nativas do Cerrado e outras não. O espetáculo da floração ocorre por conta do estresse hídrico, é uma medida desesperada de sobrevivência”, explica o professor Aristônio Magalhães, do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Goiás (UFG).

As espécies parecem que conversam entre si: primeiro os rosas, que florescem do dia para a noite, ainda agraciados com os resquícios da pequena temporada do frio do mês junino. Depois os amarelos, que decoram bosques e parques. Por fim os brancos, possíveis de se ver de longe, que finalizam o período de estiagem e abrem margens para as tempestades do fim do ano.

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“As árvores investem toda sua energia para o movimento e, depois que as flores terminam de cair, mais uma vez o ciclo botânico volta a girar. É próprio dos ipês darem flores uma vez ao ano”, destaca Aristônio. Quando o inverno acaba, a umidade aumenta e as primeiras chuvas amenizam o calor, as árvores voltam a ganhar as folhas em tons verdes.

O ipê é símbolo de resistência e está registrado no imaginário coletivo, além de contribuir para o reconhecimento de um território, como o do cerratense. “A árvore, especialmente pela beleza e efemeridade de sua florada, é um marcador da paisagem urbana e do território, por conseguinte, um marcador de identidade”, explica a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap) - Núcleo Goiás. 
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Parques de Goiânia, como o Lago das Rosas, ganham ainda mais destaque nessa época do ano (Wildes Barbosa / O Popular)

Segundo a instituição, o uso do ipê na arborização urbana é especial por tratar dos afetos, dos sentimentos com os lugares com os quais se mantém relações. Muito além da floração sazonal, a associação reitera a necessidade de reconhecimento socioambiental e paisagístico das árvores. “Os ipês cumprem diversos papéis muito caros para a sociedade e que nem sempre são perceptíveis ou valorizados, como, por exemplo, aqueles relacionados aos serviços ecossistêmicos”, completa a Abap.

<h2>Arte amarela</h2>

Não poderia ser diferente: nas artes de Goiás, diversos profissionais usam a magia dos ipês-amarelos para se inspirarem na hora de criar seus trabalhos individuais. É o caso, por exemplo, de Waldomiro de Deus, Amaury Menezes, Omar Souto e Antônio Poteiro. No caso da artesã Waldira Maria, de 68 anos, os ipês se tornam esculturas em TNT que ficam floridas o ano todo.

“Lembro de quando eu era criança e brincava de fazer bonecas debaixo de um grande ipê-amarelo que tinha na minha casa. Olhava para ele e sonhava com aventuras infinitas”, comenta Waldira, que nasceu em Minas Gerais, mas viveu toda a sua vida em Goiás. A artista já expôs seus ipês artesanais em diversas feiras do País e expôs em galerias de Goiânia. “Não existe algo mais lindo na natureza que a flor. É ela que dá sentido à vida”, completa.

As árvores não aparecem apenas nos trabalhos de artes visuais. Na literatura, autores e autoras concedem ao ipê o título de ouro vivo, como o poema Ipê Florido, de Cora Coralina: “Altaneiro e flamíneo, ereto e majestoso, altaneia na campina verde e distante, embelezando a paisagem deserta com seu fulgor de ouro vivo, o Ipê Florido. Nos dias de sonho e o revejo ainda hoje nas horas de realidade, e és mesmo para mim, porque minha alma não envelhece recendo sempre a teia encantada da ilusão”.

Já o conterrâneo de Cora, Hugo de Carvalho Ramos, escreveu uma carta para sua irmã publicada na recente coletânea da Editora Ercolano sobre como as árvores decoravam as paisagens de suas viagens. “Viajei em magníficos chapadões ao luar, pela manhã, e em dias encobertos, varridos os amplos horizontes pela frígida brisa destas alturas, através campinas e sucessivos vergeis de ipê e quaresma (amarela e roxo duma beleza indizível)”, poetizou.

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Na Avenida Anhanguera, ipês-amarelos dão um colorido especial à via pública (Wildes Barbosa / O Popular)

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Temporada de seca traz as belezas do ipê-amarelo e inspira artistas

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Paisagem

Rua 13, Setor Marista, bairro nobre de Goiânia. O ano é 2011. Um homem começa a descer a via a pé, a partir da Avenida T-9. É um meio de tarde tranquilo, a movimentação de carros é pequena e os ruídos são poucos. Agraciado com uma sensação de frescor do vento que bate em seu rosto, ele nota o asfalto à frente quase completamente sombreado em vários pontos. Resolve contar as árvores até a Avenida D. São muitas. Ao todo, perto de 100 nos quase 700 metros do trajeto: 46 unidades do lado direito e 47 do lado esquerdo, dos mais variados tamanhos, em diversas espécies.

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Rua 13, Setor Marista. Agora já é 2024. Treze anos depois, o homem é o mesmo, assim como o percurso. Mas não a paisagem. Desta vez, o que lhe chama a atenção é o trânsito intenso, os carros procurando vaga para estacionar, o barulho de betoneiras e martelos. A sensação é de abafamento. A sombra no asfalto agora vem dos altos prédios, recém-inaugurados ou em construção. De novo, ele conta as árvores: são desta vez 52 na calçada da direita, enquanto 34 estão no caminho de quem segue pela esquerda. Daquele longínquo 2011, muitas desapareceram; da contagem, boa parte está apenas no início de vida, algumas são pouco mais que mudas e há também jovens palmeiras.

Alguns dos bairros mais centrais de Goiânia, principais alvos do crescimento vertical da cidade, passam por essa alteração da composição da flora de seus passeios públicos. Ruas e avenidas que, até alguns anos atrás, eram caracterizadas por muito verde e sombreamento, agora ostentam uma paisagem árida, quase hostil. Uma das razões é que, para erguer suas torres, a grande maioria dos empreendimentos imobiliários opta por solicitar a retirada das árvores que ficam no passeio público.

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Nada que seja ilegal ou irregular. De acordo com o Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU), em vigor desde janeiro, o construtor ou a empresa responsável por uma obra que quiser solicitar a remoção de árvores das calçadas do imóvel deve pedir uma vistoria do órgão de gestão ambiental – no caso, a Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma) – para analisar a situação. O perito pode autorizar o corte em quatro situações: problemas de fitossanidade (árvore doente); obstrução total do passeio público; danos estruturais a edificações ou a rede hidrossanitária do próprio imóvel ou dos imóveis vizinhos; interferência em obras de interesse social.

Todas essas condições acima estão discriminadas no inciso I do parágrafo 2º do Artigo 32 do PDAU. Mas o que realmente torna o corte de árvores praticamente livre é o inciso II: os “demais casos previstos em lei”. Aqui entra, além de outros documentos, o Plano Diretor de Goiânia (PDG), aprovado em 2022, e que determina que “as calçadas deverão ser projetadas, construídas, reformadas e adaptadas em conformidade aos parâmetros da acessibilidade universal”. Na prática, isso significa que as árvores do passeio público podem ser substituídas para se adequarem ao novo projeto para aquele espaço.

Chefe de gabinete da Amma, a bióloga Wanessa de Castro ressalta que o próprio canteiro de obras pode causar, como dano colateral, a condenação dos espécimes da calçada. “Durante as escavações para fazer a fundação, geralmente as raízes das árvores são afetadas em sua estrutura e isso acaba levando a um laudo para sua extirpação”, explica. “Temos de ressaltar que muitas dessas unidades arbóreas estão em fase final do ciclo vital, que já é naturalmente mais curto por estarem em área urbana e sofrerem com podas recorrentes.”

Por fim, outro motivo para a retirada de árvores é a adequação do passeio às normas de acessibilidade no calçamento, como o piso tátil. “Nesse caso, muitas vezes, são árvores grandes nas quais seria preciso fazer a poda de suas raízes, o que não é indicado. Então, é preferível fazer a substituição com espécies adequadas, de acordo com o que prevê o próprio PDAU”, explica Wanessa.

<h2>Justificativas</h2>

O presidente da Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente (Arca), Gerson Neto, acredita que há “uma série de razões” que servem como justificativa para fazer a retirada de árvores, ainda que sadias, quando se trata de um empreendimento imobiliário. “Por exemplo, suas copas geralmente acabam se tornando um obstáculo físico às obras de diversas formas, seja para os guindastes subirem material de construção, seja interferindo no processo de carga e descarga”, argumenta Neto.

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<h3>Paisagem&nbsp;de torres desafia olhar humano</h3>

Praticamente nascida e criada no Setor Aeroporto, a professora e arquiteta Maria Ester de Souza tem acompanhado com proximidade – e também inconformismo – as mudanças na paisagem de Goiânia. As alterações nas leis urbanísticas levaram a consequências que agora atingem também o bairro em que cresceu e vive, onde se vê erguerem altas torres, como antes só era comum em regiões como a do Setor Bueno e do Jardim Goiás.&nbsp;

Ela apresenta um conceito de sua área de atuação, que foi trabalhado pelo urbanista Kevin Lynch – autor de A Imagem da Cidade (The Image of City, 1960), envolvendo a paisagem e a escala humana, para explicar por que a mudança da paisagem de um bairro pode incomodar tanto. “Ver a paisagem em escala humana faz toda a diferença. Nós conseguimos avistar por inteiro, em uma distância menor, algo entre seis e oito pavimentos. Além disso, o pescoço vira tanto que não se sabe onde está”, diz Maria Ester.

Observando o predomínio de estruturas com três dezenas de andares ou mais onde antes só havia casas e um ou outro edifício maior, a docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) lamenta. “A escala humana é acolhedora, faz a vista alcançar a edificação inteira. Se há um ou outro elemento isolado, a pessoa ainda consegue se situar. Porém, com o acúmulo dessas torres, isso se perde. A paisagem vira ‘qualquer uma’. Assim, quem anda hoje pelo Marista não reconhece mais nem o bairro nem a si mesmo.”

<h3>Fachada ativa</h3>

A falta de árvores pode ser temporária e, em algum tempo, a paisagem novamente recompor seu verde. Mas mesmo quem vê edifícios altos como necessários para cidades mais compactas, admite que é preciso ter sua base – o térreo e os primeiros andares – humanizada. É o que se chama de fachada ativa, o que pode ser obtido com áreas comerciais no térreo, integração de elementos (iluminação, praças, calçadas mais amplas) etc. Maria Ester não vê isso sendo aplicado em Goiânia, ao menos como uma compensação pela perda do perfil arquitetônico anterior. “O que temos são paredões de garagem, uma perda enorme na qualidade da paisagem”, salienta.&nbsp;

Presidente da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Goiás (Ademi), Felipe Melazzo diz que as fachadas ativas vão ser vistas com cada vez mais frequência, mas que é preciso entender que isso não é para qualquer via. “Na T-37, uma rua muito comercial, há um condomínio de flats com fachada ativa. Mas, por exemplo, um prédio residencial na Rua 19, no Setor Oeste, não há viabilidade para isso, porque não passa gente suficiente para fazer uso de algum serviço no térreo”, compara. “Então, a fachada ativa é uma possibilidade técnica, mas é o mercado quem dita o que será feito, não o empreendedor.

<h3>Cortes e podas de espécies saudáveis causam polêmica</h3>

Os passeios fictícios pela Rua 13 que abriram esta reportagem, na verdade, foram realizados pelo veículo do serviço Google Street View, o primeiro em setembro de 2011 e o segundo entre maio e junho de 2024. Não só na rua, mas por todo o Setor Marista – bairro de classe média alta que ficou caracterizado pelos sobrados e casarões. Até o início da segunda década do século, por lá havia pouco mais do que essa herança arquitetônica da Goiânia dos anos 60 e 70, quando a cidade dava os primeiros passos para virar metrópole. Hoje, o que predomina na paisagem são mais espigões de alto padrão do que unidades habitacionais típicas.

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Árvores frondosas sofrem poda radical na Rua 1.133, Setor Marista (Wesley Costa / O Popular)

Foi no Marista que, na quarta-feira (20), a reportagem do POPULAR flagrou o corte de árvores frondosas em frente a um terreno na esquina das ruas 1.131 e 1.133. A casa do imóvel está em fase de demolição e será mais um lugar a receber nova construção – no caso, uma galeria, segundo informações obtidas pelos trabalhadores no local. O repórter fotográfico questionou se as árvores estavam condenadas e a resposta foi negativa. A questão é que elas “atrapalhariam a fachada”.

Procurada, a Amma declarou que não está previsto o corte das seis árvores – cinco cássias e um oitizeiro – e que a Comurg será notificada “quanto à poda drástica”. Sobre casos semelhantes, o presidente do Sindicato dos Condomínios e Imobiliárias do Estado de Goiás (SecoviGoiás), Antônio Carlos da Costa, diz que é preciso levar em consideração o que haverá como resultado ao final do processo. “Tirar árvores de grande porte é sempre uma decisão complicada e é preciso pensar não no que se vê no imediato, mas como estará aquela paisagem, em termos de urbanismo, depois de uns cinco anos”, diz, lembrando que toda obra concluída precisa ter um projeto de arborização vistoriado e aprovado para ser liberada. “O que temos observado, em muitos casos é que depois há uma densidade de verde até maior do que anteriormente.”

Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Gerson Neto diz que não é qualquer substituição que repõe as árvores antigas. “Uma palmeira mal pode ser considerada para esse objetivo. Ela tem muito mais uma função de ajardinamento.” Para o ambientalista, a espécie presta poucos serviços ambientais. “Não ajuda quase nada em redução do calor, umidificação do ar, produção de sombra ou sequestro de carbono”, cita. Wanessa de Castro, bióloga da Amma, discorda: “É verdade que muitos paisagistas colocam palmeiras em seus projetos. Mas elas têm seu papel ecológico na cidade, principalmente para a fauna. Por exemplo, elas costumam abrigar ninhos de aves, como as araras-canindés”, explica.&nbsp;

<h3>Soluções&nbsp;</h3>

Instado a falar sobre saídas para qualidade da paisagem, Antônio Carlos da Costa, do SecoviGoiás, sugere que se invista em infovias, os canais subterrâneos para fiação que não seja de rede elétrica. “Isso com certeza aliviaria em muito a paisagem da cidade e pouparia agressões desnecessárias a árvores”, justifica.

Felipe Melazzo, da Ademi, vê as mudanças radicais na paisagem urbana como uma resposta à demanda. “A gente pensa, de forma natural, que é o mercado (imobiliário) quem muda o bairro. E de fato é, porque ele é quem está construindo. Mas não é ele quem impõe, mas sim o consumo, a necessidade do consumidor”, raciocina. “Não é o empreendedor quem lança o produto para pressionar o consumidor, é ao contrário: é uma linha tênue, mas o empreendedor percebe a necessidade do consumidor e lança o produto."

Trocam-se árvores por prédios: grandes torres tomam lugar do verde em Goiânia

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Urbanismo

Uma árvore simbólica, que faz parte da história da cidade e da memória afetiva de seus habitantes, condenada pelo fogo criminoso, mas que já sofria com as ações do tempo e as sequelas da vida vegetal na metrópole. Esse é um resumo da gameleira da Avenida Araguaia, no Centro de Goiânia, que vive seus últimos dias. Além do incêndio que selou seu destino, podas na base que afetaram suas raízes e insetos parasitas em seu cerne, já definhavam a gigante Ficus elastica, seu nome científico. 

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“O fato de a planta ter folhas verdes e parecer saudável não significa que não esteja doente e, às vezes, até morrendo”, diz o biólogo e analista de obras e urbanismo da Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) Leandro Georges. Foi ele o responsável pelo laudo que decretou o corte da gameleira, que deverá ocorrer nas próximas semanas, em forma de força-tarefa e com algum grau de transtorno. Por seu porte avantajado e a localização em via de grande fluxo, o risco de tentar prolongar sua sobrevida é muito alto. 

<div class="p-readmore-box"><a href="https://opopular.com.br/cidades/gameleira-sera-cortada-mas-deve-deixar-filhotes-1.3187272" target="_blank">Gameleira será cortada, mas deve deixar 'filhotes'</a> 
<a href="https://opopular.com.br/cidades/policia-civil-vai-investigar-incendio-que-atingiu-gameleira-da-avenida-araguaia-1.3182625" target="_blank">Polícia Civil vai investigar incêndio que atingiu gameleira da Avenida Araguaia</a> 
<a href="https://opopular.com.br/cidades/sem-mais-arvores-calor-extremo-deve-avancar-1.3171925" target="_blank">Sem mais árvores, calor extremo deve avançar</a></div>

Como a conhecida árvore da Araguaia – que, embora pareça centenária, tem “só” cerca de 60 anos –, outras, de várias espécies, chegam ao fim do ciclo vital e precisam ser retiradas. É um processo natural numa cidade que chega esta semana aos 91 anos – relativamente nova, mas com desafios para os quais precisará estar protegida por uma arborização adequada. 

“Árvores são seres vivos e têm seu limite. A questão é que, se no meio natural vivem 80 anos, na cidade sua existência é abreviada até pela metade”, explica Leandro. São vários os reveses que minam as plantas nas cidades – as pragas, a poluição, a trepidação por causa do trânsito e o vandalismo, entre outros. 

Em Goiânia, o instrumento que guia as políticas para essa área é o Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU), que se tornou lei em janeiro, o que faz com que agora, por exemplo, o corte irregular ou a não substituição na porta da casa cause notificação, autuação e multa ao cidadão infrator. “A árvore na cidade não é só uma árvore, é também um equipamento urbano – assim como um poste, uma placa de trânsito, um bueiro. Porém, ela ainda é uma árvore e, como ser vivo, deve ser tratado de maneira diferente, porque o poste ou a placa podem ser removidos; a árvore, não”, diz a agrônoma Fabíola Adaianne Oliveira, também dos quadros da Amma e há 2 anos e 8 meses como assessora técnica da Superintendência de Gestão Ambiental e Licenciamento da agência. 

Em março, Goiânia obteve o título de Cidade Árvore do Mundo, reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) pela preservação. Nos anos 90, virou a “capital ecologicamente correta”. A fama de arborizada não existe à toa: a questão era parte essencial de Goiânia já no projeto de Attilio Corrêa Lima, depois seguido em grande parte por Armando de Godoy – a ideia da cidade-jardim, com atenção especial a parques. Em capítulo no livro Cinco cidades que nasceram arborizadas, da Editora UFMS, Fernanda Fontes Mendonça e Rodrigo Carlos Batista de Sousa resgatam trechos do relatório de Attilio em 1935, ao se desligar do projeto. No texto, intitulado “Goiânia de Attilio e Godoy: uma cidade planejada e arborizada”, a dupla destaca uma frase do urbanista que diz muito sobre a relação entre a cidade e o verde: “Goiânia nasceu harmoniosa na relação entre áreas construídas (propostas) e áreas verdes a serem conservadas.”

Mistura de exóticas com nativas

Na Goiânia planejada e erguida no meio do Cerrado, à vegetação nativa se misturaram desde o lançamento da pedra fundamental espécies exóticas encomendadas pelos próprios urbanistas, mas também por viajantes, visitantes e pesquisadores. Foi assim que a cidade que começava teve suas ruas, praças, jardins e quintais adornados com flamboyants, mungubas, espatódeas, palmeiras-imperiais e gameleiras, vindas de outros biomas brasileiros ou mesmo de outros países.

“É preciso dizer também que não havia, naquele contexto histórico, nenhuma valorização da vegetação do Cerrado”, diz Rodrigo Carlos Batista de Sousa, engenheiro florestal e também doutorando em Ciências Ambientais pela Universidade Federal de Goiás (UFG). “Naquela época, claro, não havia os estudos de que dispomos hoje sobre a riqueza do ecossistema, sua biodiversidade e todas essas questões.”&nbsp;

Na escolha, algo muito levado em consideração, além da estética para o paisagismo, foi o sombreamento que as árvores poderiam fornecer, como concordam Rodrigo Carlos e Leandro Georges. “A ciência mostra como as árvores auxiliam na regulação da temperatura e da umidade”, diz o engenheiro florestal. “As espécies do Cerrado têm crescimento mais lento, ao contrário das que foram trazidas para cá”, completa o analista da Amma.

O foco na cidade verde se mostrou presente em bairros planejados em períodos diferentes e que estão hoje no topo da lista, segundo a própria Amma, dos mais arborizados da capital: é o caso do Setor Sul, do projeto original de Goiânia; do Jaó, concebido na década de 50; e do Goiânia 2, iniciado nos anos 80. Todos são caracterizados por ter grandes áreas verdes, com bosques e parques.&nbsp;

O Setor Central, porém, com o passar dos anos, deixou seu planejamento urbanístico em segundo plano, o que veio com a mudança de função do próprio bairro, que deixou de ser híbrido (habitacional e comercial), para se vocacionar de forma hegemônica ao comércio. Isso refletiu na paisagem, que perdeu muitas unidades arbóreas, especialmente por conta da adequação das salas e lojas para a atividade. Hoje, o Centro é um dos locais menos arborizados de Goiânia, ao lado de Campinas – com problemas peculiares, já que é uma localidade anterior à capital – e do distante Jardins do Cerrado, na divisa com Trindade e cujo parcelamento foi em uma área de pastagem, sem vegetação.&nbsp;

Para Júlio Pastore, professor da Universidade de Brasília (UnB), Goiânia tem um bom índice de arborização, pode ser considerada uma cidade-parque, mas ainda peca com a periferia em relação a áreas verdes. “Uma cidade bem arborizada começa com decisões de infraestrutura que vão para além da arborização. É preciso espaço nas calçadas, infraestrutura de fiação e iluminação, de modo que o plantio de árvores não cause problemas”, diz.&nbsp;

“São problemas originados por opções do poder público e que costumam ocorrer na periferia, onde loteamentos são feitos com economia de espaço e recursos”, continua Pastore, que também é agrônomo pela UFG e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). “A população (da periferia) costuma ficar com a impressão de que não vai ‘caber’ árvore e que ela pode aumentar a escuridão, a delinquência e a sujeira. Isso porque o município não investe em mostrar quão importante é ter árvore por perto.”

Rodrigo Carlos acrescenta que o Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU) precisa ser cumprido para a cidade como um todo e que “atualmente existem vários projetos inteligentes de arborização urbana” que podem ser adaptados para cada local da cidade, com espécies adaptadas para o local, que não causem conflito. “É bom sempre lembrar que tem gente que gosta de árvores, mas também têm os que as detestam. Mas a lei está aí e precisa ser cumprida”, finaliza.

Desde março deste ano, Goiânia é uma das 34 cidades brasileiras certificadas pela Arbor Day Foundation, uma organização não governamental ligada ao programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Alimentação e Agricultura (FAO). O atestado dá o direito à capital de usar o título Cidade Árvore do Mundo, um selo de qualidade ambiental. Para tanto, a cidade teve de preencher critérios, como a quantidade de árvores em relação aos habitantes (ou área do município) e a legislação municipal sobre arborização.

A engenheira agrônoma Fabíola Adaianne Oliveira, servidora de carreira da Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma), tem grande responsabilidade na obtenção do título. Foi ela quem coordenou o preenchimento da documentação que levou Goiânia a conquistá-lo. “É uma certificação por meio da qual podemos encontrar empresas parceiras, atraídas pelo marketing verde, que queiram se ligar ao título com trabalhos em conjunto com o município”, explica, ressaltando que, por ser uma certificação obtida há pouco mais de seis meses, não houve tempo hábil para configurar &nbsp; muitas adesões.

Os projetos desenvolvidos na cidade e que multiplicam o plantio de mudas também serviu para o reconhecimento. A Amma tem três programas que servem para vários tipos de ações: o Arboriza Gyn, que visa a recomposição de áreas de preservação permanente com uma quantidade maciça de unidades arbóreas; o Disque-Árvore, pelo qual o cidadão pede o plantio de uma muda na calçada e a agência executa a solicitação; e o Rearboriza, que, depois de estudos, revitaliza o verde em passeios públicos de vias desarborizadas, como é o caso do Centro e de Campinas.

A superintendente da Amma não acredita que a mudança de governo para o próximo ano possa causar impacto significativo nos programas. “Talvez se diminua sua importância perante a política, mas não vai diminuir perante a sociedade. O goianiense gosta de árvore. E, como grande parte das árvores está nos parques, não tem como o novo prefeito deixar de ter esse cuidado com a questão ambiental.”

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Desafios da arborização urbana em Goiânia. Na foto, biólogo e analista da Amma Leandro Georges, no Parque da Criança, na Rua 72 esquina com a Rua 71, no Setor Jardim Goiás, junto a um conjunto de leucenas, árvores exóticas invasoras (Wildes Barbosa / O Popular)

Leucena, a invasora

Se você já foi à já tradicional Feira do Cerrado ou ao Parque da Criança, nas imediações do Estádio Serra Dourada, já deve ter topado com um minibosque que torna o clima mais ameno por ali. A questão é que grande parte desse sombreamento é feito por leucenas, árvores exóticas invasoras que são consideradas uma praga urbana pelos órgãos ambientais. “Leucena é um grande problema, porque se espalha como capim e acaba por matar as espécies nativas, que crescem mais lentamente”, diz o biólogo e analista de obras e urbanismo da Amma Leandro Georges. No manejo recente feito nas margens do Córrego Botafogo, a espécie invasora foi o principal alvo. “Ela se espalha muito rapidamente e já está presente praticamente em todas as proximidades de cursos d’água da cidade, além de outros locais.”

No caso das leucenas da Feira do Cerrado, por se tratar de uma área do governo estadual, a Amma não pode agir. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (Seel) emitiu uma nota alegando que o espaço tem cessão de uso à Associação Cultural Feira do Cerrado, e que, dessa forma, “cabe à instituição a manutenção da área”. Também ressaltou que “é de conhecimento da Seel a presença das leucenas, contudo, a equipe de infraestrutura da pasta não identificou até o momento a necessidade de uma intervenção específica” e que nunca houve contato da Amma sobre esse tema. “A Secretaria de Estado de Esporte e Lazer se coloca à disposição dos órgãos competentes para discutir as soluções que sejam benéficas à população”, finaliza o texto.

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Arborização de Goiânia enfrenta mudança de ciclo

Meio ambiente

Apenas seis analistas ambientais da Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) são encarregados de realizar o monitoramento de árvores em Goiânia. Com a falta de pessoal, a reportagem apurou junto a um servidor do órgão que o serviço não atinge a quantidade de espécies necessárias, tornando a realização de vistorias nos logradouros públicos, predominantemente, dependente da solicitação de moradores.

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Recentemente, a capital passou pela perda de mais uma árvore considera histórica: uma gameleira, localizada na Avenida Araguaia com a Avenida Contorno, no Setor Central. A espécie, que está no local desde a fundação da cidade, pegou fogo na madrugada do último dia 2. Conforme o titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema), Luziano de Carvalho, tudo indica que a queima foi criminosa, por pessoas em situação de rua que viviam no local.

A pesquisadora Geórgia Sant’Ana, doutora em Ciências Ambientais pela Universidade Federal de Goiás (UFG), pontuou que “não se tem o que é necessário para que as árvores de Goiânia sejam preservadas”. A afirmação compõe uma análise sobre a falta de investimento e planejamento da administração pública municipal para que haja um diagnóstico preciso sobre a flora goianiense. O ônus, segundo ela, ultrapassa até os muros do órgão na busca pela conscientização da população.

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De acordo com Geórgia, não há um grupo de pessoas que faça um planejamento sobre o manejo da flora no órgão, pontuando, por exemplo, a quantidade de espécies centenárias que compõem a ambientação dos bairros de Goiânia. O detalhe, que é colocado por ela como algo primordial para o avanço da pauta na capital, é algo que “auxiliaria muito na prevenção da saúde das árvores, das quedas e, até mesmo, queimadas não criminosas”.

De fato, ao ser consultada, a Amma afirmou que não possuí a informação sobre a quantidade de árvores em Goiânia. Bem como também não possuí o quantitativo por espécies nem mesmo de algumas mais exóticas, como as gameleiras. De acordo com o órgão, a situação se dá em decorrência da imprecisão em mensurar esse número, que pode sofrer alterações diariamente, dada a liberdade da população em fazer o plantio de espécies em casa.

Mesmo com o quantitativo desproporcional às necessidades, os servidores ainda mantêm uma tratativa para garantir a permanência das árvores na capital. Conforme acompanhou o POPULAR nesta quarta-feira (9), a atividade deles vai desde a análise do ambiente em que a espécie está inserida, até questões estruturais e de ciclo reprodutor. Todos esses fatores, de acordo com uma servidora, são importantes para compor o relatório técnico da agência para contribuir para limpeza e preservação das árvores em logradouro público.

A analista informou, ainda, que não há processos de monitoramento em atraso. Apesar de estarem disponíveis em parte do dia para fazer o serviço, outro servidor explica que nas demais horas da semana eles trabalham com elaboração e encaminhamento dos processos. A depender do resultado, os documentos são encaminhados a outros órgãos competentes para tratar, ou não, das solicitações com podas, retiradas e limpezas.

<h2>Monitoramento </h2>

Para fugir das ações pontuais, Geórgia Sant’Ana explica que é necessário investir não somente em pessoal, mas também em tecnologia. Com isso, além das visitas, os servidores poderiam contar também com o monitoramento em tempo real por meio de câmeras fiscais ou drones. A reflexão sobre o assunto, de acordo com ela, só seria possível se o poder público mudasse o olhar de “deixar as coisas acontecerem naturalmente e ficasse mais atento”.

Com esses recursos, bem como a produção de um planejamento com base nos diagnósticos pontuados pela pesquisadora, a cidade teria menos prejuízos do que tem hoje. Uma vez que, além do monitoramento contínuo, até mesmo em casos de crimes, seria possível pensar a variedade de espécies em um local buscando evitar as queimadas e quedas. “Sem isso, continuaremos com um ambiente ainda mais problemático”, complementa.

A engenheira florestal Camilla Brito complementa a ideia de Geórgia afirmando que o monitoramento deveria ser realizado com frequência, “garantindo a segurança da população devido ao risco de quedas (de árvores), por exemplo”. De acordo com ela, para o auxílio desses diagnósticos as árvores devem ser identificadas, codificadas e avaliadas periodicamente com observações sobre seu estado atual, garantindo que as árvores não gerem riscos. Caso contrário, elas podem ser substituídas por espécies mais adequadas.

<h2>Gameleiras </h2>

De acordo com a Amma, será feita a retirada integral da gameleira da Avenida Araguaia, por causa da impossibilidade de recuperação do espécime após o incêndio da semana passada. Apesar de o incêndio ser considerado criminoso, Camilla diz que a maioria delas encontram-se em locais inadequados, “por falta de planejamento prévio”. Ainda, de acordo com ela, isso seria um dos transtornos que vêm trazendo a pauta sobre sua retirada.

Decisões como essa, de acordo com a engenheira, devem ser tomadas por profissionais habilitados, levando em conta aspectos técnicos. A pesquisadora Geórgia lembra que a retirada não só dessas árvores, como de outras, atrapalha o processo de evapotranspiração, fazendo com que a umidade do ar seja prejudicada e, mais baixa, prejudicando a qualidade de vida e a saúde. (João Gabriel Palhares é estagiário do GJC em convênio com a UFG)

Amma tem seis analistas para monitorar árvores em Goiânia

Fiscalização

Numa noite de dezembro de 2022, Gerson Neto recebeu uma mensagem no celular. Especialista em planejamento urbano, mas conhecido como ativista do meio ambiente, estava sendo informado por um amigo da queda de uma pequena árvore no Residencial Alice Barbosa, região norte de Goiânia. A intenção era tentar salvá-la. No outro dia, lá estava o presidente da Associação para Conservação e Recuperação do Ambiente (Arca) para a missão de colocar de pé a arvorezinha, um franzino exemplar de oiti. Quatro estacas serviram de suporte. “Vamos ver se ela aguenta”, disse.

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Nesta semana, mais de ano e meio depois, Neto voltou lá para conferir o resultado de seu trabalho. “Ela está linda”, exclamou, ao lado da filha Clara, que o acompanhava. Enquanto comemorava o feito singelo, a menos de um quilômetro dali, em área contígua à da Universidade Federal de Goiás (UFG), agonizava uma mata em área particular. Antes viçosa, a pequena reserva se tornou apenas ruínas do que tinha sido, depois de agredida pelo fogo por anos seguidos.

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O contraste serve, por extensão, como analogia ao que ocorre nestes dias em que o Brasil inteiro está em chamas: a cada importante atitude comprometida com o meio ambiente e as próximas gerações, parece existir uma infinitude de ações comprometedoras desse mesmo futuro. Assim por aqui como no resto do mundo, os recordes negativos do clima são quebrados e 2024 já caminha para ser o de temperatura mais alta da história da civilização, superando o ano passado. Em tempo: dos últimos 15 meses, desde junho de 2023, apenas julho deste ano não quebrou o recorde de mais quente da história em relação ao mesmo período.

Goiânia também bate suas marcas nada agradáveis: a capital vive uma de suas maiores estiagens, com temperaturas máximas beirando os 40 graus Celsius (°C) e com a umidade do ar arrastando-se por dias com sua mínima abaixo de 10%.

O trabalho de revegetação – ou plantar árvores de forma sistemática – é uma das principais medidas recomendadas para amenizar o aquecimento específico nas áreas urbanas, chamado de ilhas de calor (veja quadro). Em relação a esse fenômeno, um dado alarmante: a temperatura dentro do município de Goiânia pode variar em até 10°C, de acordo com pesquisa realizada pelo professor Diego Tarley Ferreira Nascimento, do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da UFG.

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Professor Diego Nascimento: “Árvores são arma contra o calor” (Wildes Barbosa / O Popular)

No estudo realizado por ele e sua equipe, foi medida simultaneamente a temperatura da cidade em vários pontos. A aferição no Setor Campinas, no centro da malha urbana, foi dez pontos mais alta do que a obtida às margens do reservatório do Ribeirão João Leite. Pode parecer algo bizarro, mas isso se explica. “No ambiente urbano, qualquer variável faz muita diferença no que chamamos de microclima, tudo se torna altamente dinâmico. Por exemplo, às vezes o trabalho da meteorologia se torna complicado por causa de uma queimada, que pode trazer alterações em curto prazo”, explica Diego Nascimento. No caso de sua pesquisa, a diferença se explica, em grande parte, pela falta de arborização de um lado (Campinas) em relação a uma vegetação abundante (região do Parque Altamiro de Moura Pacheco), no outro.

“Nesse sentido, a cidade vai ‘ganhando’ temperatura à medida que recebe também mais pavimentação, mais emissões de poluentes, mais concreto e, do outro lado, vai perdendo área nativa, cobertura vegetal e recursos hídricos”, complementa o professor do Iesa. A soma disso traduz-se em ganho de radiação solar e aumento do efeito estufa, o que impacta de formas diferentes em cada região da cidade.

Segundo o MapBiomas, as áreas urbanizadas no Brasil representavam 674 mil hectares em 1985. Já em 2021, esse número chegou a 2,03 milhões de hectares em 2021. Ou seja, os aglomerados urbanos triplicaram de extensão no intervalo. Se a emissão de gases colabora para um efeito macro no aumento da temperatura global, a troca da vegetação natural por cimento e asfalto também dá sua contribuição ao calorão das cidades. Por isso, Diego Nascimento é taxativo ao fazer um adendo à informação sobre sua pesquisa: “Esse estudo foi feito em 2010. Desde então, pode-se dar como algo confirmado que essa diferença (entre mínima e máxima) tenha aumentado em Goiânia.”

<h2>Mesmo barco, mas em ‘classes’ diferentes</h2>

Uma frase-metáfora que frequentemente é evocada quando surge o assunto mudanças climáticas em uma discussão é que “estamos todos no mesmo barco”. A alusão coloca a Terra como uma grande nau em que sua população inteira estaria submetida aos mesmos desígnios diante do que viria pela frente. “Não é de todo errada essa imagem. Talvez estejamos todos no mesmo barco – ainda que seja o Titanic. A questão é que algumas poucas viajam no camarote, enquanto a maioria está na casa das máquinas. No contexto das mudanças climáticas, as pessoas das várias classes sociais sofrem de forma diferenciada.”

O comentário do parágrafo anterior é do professor e pesquisador Diego Nascimento, do Iesa/UFG. Como um dos cientistas mais envolvidos em Goiás com a questão climática – e atuação direta também em outras áreas afins, como cartografia, geoprocessamento, sensoriamento remoto e geografia física – ele considera a dimensão social como algo a não ser esquecido quando se trata do “novo normal” do clima. “Seja em Goiânia ou em qualquer lugar do mundo, são os mais pobres aqueles que vão sofrer mais”, sentencia.

A metáfora da embarcação voltou a ser muito utilizada no Brasil a partir de uma repercussão recente de um estudo da agência espacial dos Estados Unidos, a Nasa, publicado ainda em 2020, sobre um cenário do planeta projetado para cerca de 50 anos. A pesquisa teve à frente da equipe o cientista Colin Raymond e saiu na Science Advances, considerada uma das revistas de ciência mais respeitadas do mundo. Raymond e seus colegas não citaram o País no texto, mas, em uma entrevista em que o comentou falou, com muita prudência, que algumas partes do território brasileiro – entre várias outras do mundo – poderiam ficar inabitáveis por causa do calor extremo provocado pelas mudanças climáticas.&nbsp;

Diego Nascimento considera que a pesquisa da Nasa é realmente bem embasada e ressalta que foi endossada pela comunidade científica – caso contrário, não seria publicada –, mas não pode ser lida de uma forma superficial. “Quando se faz um estudo na escala global, é preciso levar em consideração que isso não nos permite fazer uma análise para uma cidade específica.” A tendência, com todas as novas tecnologias, é de que os dados se tornem mais precisos.

Goiás tem uma pesquisadora na linha de frente dos estudos das mudanças climáticas. É a professora Raquel Santiago, da Faculdade de Nutrição (Fanut) da UFG. Ela integra o projeto Lancet Countdown for Climate Changes, uma colaboração internacional e multidisciplinar puxada pela revista científica The Lancet e que reúne 114 cientistas e profissionais de saúde do mundo inteiro, de 52 instituições e agências da Organização das Nações Unidas (ONU). Desde 2021, ela participa da elaboração de relatórios da América do Sul, da América Latina e do Brasil, e esteve na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), ocorrida no fim do ano passado em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Até o momento, a avaliação é de que a corrida do tempo para evitar a piora do cenário está sendo perdida. “De nove fronteiras que não deveríamos ultrapassar, seis já ocorreram. Ano após ano, as metas estabelecidas não são atingidas”, relata. “É sabido que haverá até 2050 mais eventos extremos do que houve nos últimos séculos. Goiânia e Goiás não estão fora disso”, diz a pesquisadora.

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Professora e pesquisadora Raquel Santiago, da Fanut/UFG: participação na COP28 (Arquivo pessoal)

Profissional da área, ela aplaude que, pela primeira vez nas cúpulas, tenha havido um dia dedicado à saúde das pessoas. “Precisamos ter sistemas de saúde mais resilientes e avançar no processo de mitigação”, avalia. Sua preocupação se justifica por uma questão: os eventos extremos podem envolver mais mortes por conta de seus efeitos do que pela catástrofe em si. Uma pesquisa nos Estados Unidos mostrou que as mortes em consequência do forte calor foram mais amplas do que as baixas provocadas por tufões, tornados e enchentes, ainda que essas catástrofes sejam visualmente mais traumáticas.

Bulbo úmido

O estudo da Nasa aponta para uma medida que deve ser cada vez mais lembrada de agora em diante: diante do calor extremo, é preciso estar de olho na temperatura de bulbo úmido. Ela também pode ser aferida com o uso de um termômetro comum, mas que esteja com o bulbo (nos modelos tradicionais, a parte inferior, que é sensível ao ambiente) umedecido. Bastante utilizada na agropecuária, para monitorar a saúde do rebanho diante do calor, essa medida basicamente consiste em mostrar a menor temperatura com a qual possa ocorrer a evaporação da água. Se essa menor temperatura foi igual ou superior a 35°C, o corpo humano entra em colapso (veja quadro).

A mistura explosiva é temperatura alta com umidade alta. Nesse sentido, em termos de lugares do Brasil onde o calor seria mais letal em um futuro, Manaus e Rio de Janeiro seriam cidades mais propensas a serem inabitáveis do que Goiânia, por exemplo. Um exemplo um tanto tenebroso de como o ar mais seco pode ser relativamente positivo.

Mas Raquel Santiago alerta que não apenas o calor extremo é potencialmente danoso em períodos como o atual. “Quem vive em Goiânia está submetido nesta época a uma névoa permanente. Ainda que não veja, essas partículas suspensas são responsáveis por grande parte dos problemas respiratórios e pela lotação de ambulatórios e hospitais”, diz. E novamente, a arborização (ou a falta dela) influi no quadro. “As plantas conseguem captar essas impurezas e dar mais qualidade ao ar”, diz.

Apesar de Goiânia ser uma das cidades mais arborizadas do País, a pesquisadora da UFG considera que há uma “má distribuição” do verde pela área urbana. E, novamente, as populações mais carentes se mostram desfavorecidas. “São poucas as áreas verdes na maior parte da periferia da capital.”

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<h2>Medellín apostou no verde para reduzir calor</h2>

Se uma das soluções para preparar Goiânia para um futuro climático menos inóspito passa pela valorização do verde, uma sugestão de roteiro a ser seguido vem de uma cidade colombiana. “Medellín é um exemplo muito oportuno. Lá, após a implantação de corredores verdes, conseguiram reduzir em dois graus a temperatura média da cidade”, relata o professor Diego Tarley Ferreira Nascimento, do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da UFG.

Ele considera essa medida “uma das principais soluções baseadas na natureza que podem promover a adaptação climática”. “Uma revegetação planejada, com corredores verdes em locais estratégicos, vai contribuir tanto para a amenização da temperatura como para a melhoria da infiltração da água da chuva e da qualidade do ar, em termos de poluição e umidade”, explica, acrescentando que são aplicadas no processo “tecnologias que já existem”, sendo algumas “de baixo custo”.

O professor do Iesa avalia que, no sentido de preparar Goiânia para se tornar mais resiliente aos eventos extremos, o Plano Diretor de Drenagem Urbana (PDDU-GYN), que está sob os cuidados da UFG e deve ser entregue à Prefeitura ainda este ano, é algo “de vanguarda” em relação a outras cidades. “Poucos políticos e gestores têm tido boas propostas para a questão ambiental”, avalia. “Meio ambiente precisa se juntar às áreas de saúde, segurança e educação entre as prioridades de todo município”, conclui.

Sua colega da Faculdade de Nutrição (Fanut) da UFG, Raquel Santiago, faz coro. “No Brasil, temos políticas públicas para tudo, inclusive para a sustentabilidade, mas que não são devidamente implementadas. É preciso fazer com que esses trabalhos, cuja maioria foi construída de forma coletiva, saiam do papel. Não é simples, mas é preciso. Para isso, tem de ter vontade política e disposição do setor econômico também.”

Projeto Rearboriza

Responsável pelas áreas verdes de Goiânia, bem como pela produção de mudas para plantio nos logradouros públicos, a Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) aguarda o início das chuvas para continuar uma agenda que foi iniciada no ano passado: o projeto Rearboriza, que visa aumentar o número de árvores em áreas de baixa cobertura vegetal da cidade, como é o caso do Setor Campinas e do Centro. Segundo a bióloga Wanessa de Castro, esse programa, que já foi experimentado até agora nas Avenidas Araguaia e Tocantins (Centro) e Rua Quintino Bocaiúva (Campinas), deve ser estendido.

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Projeto da Amma, o Rearboriza começa a deixar mais verde a Rua Quintino Bocaiúva, em Campinas (Diomício Gomes / O Popular)

“São espécies indicadas para locais de comércio e calçadas estreitas e que, nesse primeiro momento, foram bem aceitas por quem frequenta essas áreas. Todas são plantadas após um parecer técnico sobre as espécies adequadas, para não ter conflito com muro, calçada nem fiação”, explica a técnica da Amma. Um instrumento que deve ajudar no trabalho é o Plano Diretor de Arborização Urbana, aprovado em janeiro. “Não tinha legislação para que a pessoa fizesse um replantio. Agora, temos meios mais eficientes para autuar quem não repõe a árvore retirada”, diz Wanessa.

O presidente da Associação para Recuperação e Conservação do Ambiente (Arca), Gerson Neto, avalia que é preciso uma mudança radical no rumo das políticas públicas. “É preciso também plantar árvores de grande porte. Não vamos mudar o microclima da cidade apenas com vegetação de pequeno porte”, acentua. 
Levar a filha Clara para ser registrada com a árvore que salvou, diz Gerson Neto, é algo bem simbólico. “Precisamos cumprir uma série de tarefas para chegar lá, daqui a 50 anos, com condições de haver chance de sobrevivência para nossos filhos. Plantar uma árvore, ou ajudar a salvar uma, é algo pequeno diante do desafio. Mas fica enorme se todos tomarem esse mesmo rumo”, resume o ambientalista.