Quem resiste à tentação de espremer um cravo ou uma espinha? Na internet, vídeos mostrando pessoas estourando espinhas e cravos seduzem milhões de espectadores. Há canais no YouTube especializados nisso. A explicação mais racional é que o ato inocente de espremer pode ser também uma fonte de alívio da ansiedade e da tensão. O que pouca gente sabe é que, ao lado do ato de beliscar, coçar e morder, espremer de forma recorrente a própria pele pode ser sinal do transtorno de escoriação, também conhecido como skin picking.A lembrança mais antiga que a desenhista industrial Daniele de Felippe, de 44 anos, tem do problema foi o ato de cutucar recorrentemente o local da vacina no braço ainda na infância. “Na época, não me parecia algo errado, mas, aos poucos, meus pais foram percebendo o comportamento e começaram a reprimi-lo. Foi quando passei a desenvolver meios de esconder o hábito”, lembra. As feridas constantemente abertas, e, quando cicatrizadas, as manchas na pele, denunciavam o transtorno.Em geral, o comportamento começa com uma ferida, borbulha ou imperfeição na pele que a pessoa coça, não deixando cicatrizar; a necessidade de coçar vai aumentando ao longo do tempo. No caso de Daniele, a falta de informação sobre o assunto, a culpa e a vergonha a levaram ao isolamento. “Por volta dos 17 anos, comecei a procurar ajuda médica sozinha. O primeiro impulso de quem lida com o skin picking é procurar um dermatologista, pois o foco e o desespero é sempre a pele. Passei por dezenas de médicos. Sempre recebi respostas vazias e uma receita de alguma pomada, que funcionava apenas paliativamente”, conta.Nem mesmo psicólogos, psiquiatras e hipnoterapeutas conseguiram diagnosticar o motivo que levava a jovem a produzir feridas na própria pele. “Acho que a inquietação nunca me deixou desistir de encontrar uma resposta. Certa noite, após ceder mais uma vez ao impulso e com a pele sangrando, voltei a revirar a internet atrás de respostas. Foi quando me deparei pela primeira vez com a nomenclatura antiga da condição - dermatilomania”, conta. A informação foi transformadora e hoje Daniele se dedica a justamente divulgar o transtorno no site ocupadamente.com.br e nas redes sociais.Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em transtorno de escoriação, a psiquiatra Elen Oliveira explica que a causa do problema é multifatorial. “Até o momento, os fatores relacionados ao transtorno foram a dificuldade de controle emocional e dos impulsos, características de personalidade obsessivas e fatores genéticos”, explica. O problema atinge mais frequentemente mulheres jovens com maior escolaridade.Um grande desafio para o tratamento é que o skin picking é uma doença de curso crônico, em média de 20 anos de duração, com maior cronificação relacionada à demora pela busca por ajuda profissional. “Diante da longa duração da doença, é frequente a ocorrência de comorbidades psiquiátricas. As mais frequentes são transtorno depressivo, de ansiedade generalizada, obsessivo-compulsivo, dismórfico corporal, além do uso abusivo ou dependência de substâncias”, enumera. Rosto, costas, pescoço, couro cabeludo, orelhas, peito, cutículas, braços e pernas são os locais mais comuns de sofrerem por causa do transtorno. O principal tratamento é a psicoterapia, com abordagem comportamental. “Isso vai possibilitar ao paciente autoconhecimento, monitorização dos episódios de escoriação e desenvolvimento de repertório de estratégias para lidar com os gatilhos dos episódios de escoriação da pele”, explica a psiquiatra.Porta de entradaOs consultórios dos dermatologistas são a porta de entrada dos pacientes que sofrem com o transtorno de escoriação. Além das consequências emocionais, o hábito provoca lesões e infecções sérias na pele. “Muitos pacientes com condições comuns, como a acne, acabam manipulando suas lesões, de forma involuntária, criando um ciclo vicioso de manutenção delas. Uma lesão que seria transitória, como uma espinha, acaba se tornando algo definitivo com uma mancha ou cicatriz”, explica a dermatologista Maria Lígia Mendonça.Por se tratar de movimentos repetitivos, as lesões causadas na pele normalmente evoluem para infecções, úlceras, cicatrizes e desfigurações. “Essas escoriações crônicas na pele causam machucados de difícil cicatrização, pois a lesão se mantém, deixando marcas muitas vezes definitivas na pele como manchas escuras ou claras e cicatrizes”, avalia. Clareadores de pele e filtro solar, além do laser, são usados para o tratamento das cicatrizes.Sequelas emocionaisO skin picking também deixa marcas emocionais importantes no paciente, explica a psiquiatra Elen Oliveira. Sofrimento, estigma, isolamento, esquiva de relacionamentos amorosos e prejuízos acadêmicos são algumas das consequências. Como ainda não se sabe a causa exata da doença, não é possível dizer exatamente como preveni-la. “Até o momento, de acordo com as hipóteses apontadas, poderia dizer que uma estratégia de prevenção potencial seria possibilitar às crianças e aos adolescentes um ambiente de equilíbrio para que eles possam desenvolver autoconhecimento e autocontrole emocional”, destaca.