A escritora Ana Miranda nasceu em Fortaleza, passou por Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e, há 15 anos, retornou ao Ceará. Suas obras, entre elas o premiado Boca do Inferno (1989), Desmundo (1996) e Semíramis (2014) falam sobre lugares e personagens. Vencedora do Prêmio Jabuti e do Prêmio da Academia Brasileira de Letras, aos 67 anos Ana diz que escrita requer disciplina e estudos e que testar poesia é o melhor jeito de aprimorar a narrativa. A escritora esteve em Goiânia no último fim de semana para oficina de escrita criativa da União Brasileira de Escritores - Seção Goiás. Em entrevista ao POPULAR, Ana Miranda falou sobre a crise das livrarias, o movimento feminino rumo ao mercado editorial, tempos digitais e o papel da narrativa na política. Confira: A senhora nasceu em Fortaleza, cresceu em Brasília, Rio, São Paulo e voltou ao Ceará. De que forma os lugares onde habitou contribuem à narrativa?Sempre que releio Iracema, relembro como o lugar penetra a narrativa. O José de Alencar escreveu esse romance enquanto estava se recuperando, na floresta da Tijuca, e a deslumbrante Mata Atlântica, junto à paixão que ele estava sentindo por sua noiva, lhe ajudaram a escrever seu livro mais belo, mais inspirado, com uma linguagem que beira o paraíso. A influência do lugar é muito profunda. Acho que é o sentimento de estar ali, naquele lugar, o que mais influencia a narrativa, e não o cenário. Também, nos lugares mais calmos, fora das cidades, o tempo é mais longo e lento, o que permite uma concentração mental bem maior. A vida nervosa das metrópoles acelera as narrativas, em geral. Quando viajo para um lugar sobre o qual estou escrevendo, e normalmente escrevo sobre tempos passados, não posso contar com o que vejo, as casas mudaram, as ruas mudaram, mas as pessoas têm a mesma fonte cultural, modo de ser, mesma genética, e a geografia é a mesma, a mesma sensação espacial, os horários do Sol e da Lua, da noite e do dia, e o perfume do ar, e as tonalidades da luz... Ajuda muito, conhecer o lugar. Boca do Inferno (1989) lhe rendeu o Prêmio Jabuti em 1990. É sua grande obra?Boca do Inferno é o meu livro mais conhecido, mais lido, mais traduzido. Ele entrou num cânon muito sério realizado por professores, críticos e estudiosos da literatura de todos os países de língua portuguesa, sobre os cem maiores romances do século 20, publicada no jornal O Globo em 1998. Era uma resposta ao cânon elaborado por Harold Bloom, no qual não havia nenhum autor de língua portuguesa, nem mesmo Camões, Vieira ou Pessoa. A presença do Boca do Inferno ali me impressionou muito, mas acho que o meu livro favorito é o Desmundo. Talvez porque seja o momento em que cheguei onde queria: narrar na primeira pessoa de uma voz feminina, radicalizar a linguagem poética, incluir meus desenhos, escrever algo mais pessoal, original, ousado, mais livre. Desmundo é um livro com asas. Há a ideia simplória de que basta nascer com o dom da escrita para realizá-la. Para a senhora, requer disciplina? Sim, a escrita requer disciplina e estudos, como acontece em todas as profissões, mas como não há escolas para a profissão de escritor, a melhor maneira é ler e examinar o tesouro literário, aprender com os livros, com os outros autores, e escrever muito, todos os dias, o exercício da escrita é a melhor forma de aprimorá-la. Estão surgindo nas universidades matérias de escrita criativa, como já existem em outros países, e inúmeras oficinas são oferecidas a escritores ou postulantes em busca de respostas e caminhos. Isso ajuda, mas o segredo está realmente em ler e escrever cotidianamente, numa busca no interior de si mesmo. Também na medida da entrega e da dedicação. Para aprimorar a minha escrita procuro ser cada vez mais severa, minuciosa, faço inúmeras revisões, nunca tenho pressa de terminar o livro. Mas o tema escolhido, assim como o momento que estou vivendo, são fundamentais para um texto mais aprimorado. Recorro sempre à poesia, porque meu ideal literário é o de fazer arte com as palavras. Os meus personagens poetas me ajudam muito, as linguagens antigas, as expressões esquecidas, tudo isso enriquece a minha prosa. Em tempos digitais, em que livrarias físicas são fechadas, como a senhora avalia o leitor brasileiro?O sistema literário tem três elementos fundamentais, que são o autor, o livro e o leitor, mesmo conforme as palavras de Antonio Candido em seu Formação da Literatura Brasileira. Estamos muito bem, em termos de autores, nossa literatura é uma das mais ricas, basta pensarmos em Machado de Assis e Guimarães Rosa, Euclydes (da Cunha), Graciliano (Ramos), Drummond, João Cabral (de Melo Neto), uma lista bem farta. Recentemente a Clarice Lispector foi internacionalmente considerada o maior escritor judeu desde Kafka. E há os autores atuais, são milhares de pessoas produzindo textos em todos os estilos e gêneros; em termos de editoras também somos bem desenvolvidos, há no Brasil editoras entre as melhores do mundo, fazemos edições primorosas, e há editoras para todos os tipos de livros. Nosso problema é o terceiro item, o leitor, temos poucos leitores, e é para a leitura que todos os esforços devem ser dirigidos. Saber ler é fundamental para todos, mesmo para um lavrador, que precisa saber ler a natureza para saber como vai plantar; há alunos que são excelentes na matemática, mas tiram notas ruins porque não sabem ler corretamente o enunciado das questões. E assim por diante. A maioria dos leitores de literatura hoje em dia não quer propriamente literatura, mas histórias de vida, livros de entretenimento; ou literatura de inserção social. Por outro lado, está se construindo uma sólida ilha de cultores da grande literatura, uma confraria. A grande literatura, a grande arte, a grande música, sempre foram para poucos felizes, conforme Shakespeare. Como é possível alinhar internet, leitura e escrita? Acho que com disciplina, e elegendo prioridades. Há tempo para tudo, e quanto mais organizamos nosso tempo, mais tempo temos para mais atividades. O problema é que na nossa vida surgem todos os dias novas tarefas e necessidades pessoais, e a cada dia somos mais premidos a novos envolvimentos, temos de lutar o tempo todo para não sermos manipulados pelos grandes poderes. A liberdade individual, hoje, significa isso. Não sermos escravos das grandes campanhas políticas, econômicas ou sociais. Não sinto ódio do meu diferente, não vou comprar o que não preciso, e não tenho de ser magra e sarada, com roupinhas de marca. Muito se discute atualmente sobre a representatividade da mulher na literatura mundial. Como a senhora avalia essa participação?Pouco me importo com a imersão no mercado, seja de quem for. O mercado não me interessa. Sei que, desde que fizeram de uma lata de sopa uma obra de arte, as coisas mudaram. Mas estou interessada na literatura como arte, no intrínseco, na criação, na palavra, no sofrimento e na maravilha da criação, no sonho, na alma. Para mim todos os livros têm a mesma importância para a literatura, desde o mais escondido numa gaveta de uma cidade do interior até o que está nas vitrines das livrarias. Acho que as mulheres estão escrevendo mais, e melhor, e é maravilhoso que a voz feminina se faça ouvir em todas as expressões. É hora de fazermos as obras, estamos livres para isso, conquistamos essa liberdade. Não adianta muito nos organizarmos e gritarmos por um espaço, se não temos a obra, o conteúdo para preencher esse espaço. Sua oficina na UBE teve como tema “Narrativa é muito mais que um relatório de tramas”. O que é narrativa?Narrativa, quando é literatura, é o grande desafio de transformação da palavra em arte. A trama, a história que você conta, o tema, o cenário, são apenas um pretexto para o exercício da arte literária. Obviamente, há tramas maravilhosas e inesquecíveis, como a história de Capitu e Bentinho, ou a de Romeu e Julieta, ou a de Robinson Crusoé, de Metamorfose, de Alice no País das Maravilhas, mas o que dá a grandeza e o poder a essas tramas é a voz do autor, do narrador, é o modo como a história é contada – ou negaceada, a profundeza da observação, a quantidade de significados contidos e o quanto é arquetipal. Contar bem uma história é bom para vender livros, para participar do mercado, mas a literatura é muito mais do que isso, algo sem regras, sem fórmulas, veja só o caso de Dostoiévski, que escrevia às pressas para pagar dívidas de jogo, e é talvez o maior de todos os romancistas. Ele tinha um olhar absoluto, via tudo, expressava a humanidade, tinha grandeza em si mesmo, na sua vida de tanto sofrimento. Em tempos de crise política como os de agora, qual o papel das narrativas literárias?A literatura nunca é circunstancial. Nem Kafka, nem Proust, nem Joyce, escreveram uma só linha sobre a Grande Guerra que aterrorizava o mundo em seu tempo. Mas há algo importante: a literatura ensina a ler. Um povo que sabe ler sabe pensar.