Dois anos após o mega-ataque a Israel em 7 de outubro pelo grupo terrorista Hamas, que deixou 1.200 mortos e deu início a uma guerra na Faixa de Gaza, onde mais de 67 mil palestinos morreram, segundo o Ministério da Saúde do território, controlado pelo Hamas, um plano de paz foi oficialmente anunciado pelos dois lados nesta quinta-feira (9).O plano, proposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem entre as primeiras medidas o recuo de tropas israelenses no território, a entrada de ajuda humanitária e o retorno de reféns sequestrados pelo Hamas, em troca da libertação de prisioneiros palestinos. Dos 251 levados pela facção, em 2023, 50 ainda estão em Gaza, e apenas 20 deles supostamente vivos. Líderes mundiais elogiam o cessar-fogo e o começo de negociações, mas concordam que para avançar será preciso ainda vencer difíceis entraves, como o desarmamento do Hamas, exigido por Israel, e a reconstrução de um território devastado.O plano prevê que um organismo internacional liderado por Trump e com a participação do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair desempenhe um papel na administração de Gaza após a guerra, sem o Hamas.Também o Brasil manifestou apoio. Isso depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mais de uma vez acusar genocídio em Gaza, termo usado inclusive em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 23 de setembro.Um obstáculo ao acordo são os partidos que sustentam a coalizão mais à direita da história de Israel, que tem maioria apertada no Knesset, e ameaçam pressionar pela derrubada do governo Netanyahu caso o plano acordado permita ao Hamas continuar existindo em Gaza.Para analisar o pacto anunciado e seus desdobramentos, O POPULAR convidou o professor Nicola Melis, do Departamento de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Cagliari, na Itália, onde também integra órgãos como a Sociedade Italiana de História Internacional e a Sociedade Italiana de Estudos do Oriente Médio, e Geisa Cunha Franco, professora do curso de Relações internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG), doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Ambos observam que o enfraquecimento do Hamas e o desgaste de Netanyahu, sob pressão interna e externa, criaram condições favoráveis para negociação. Mas, avaliam, o plano não seria possível sem o poder dos EUA e as ameaças de Trump. Acordo de pazGeisa Franco - Esse plano é realista e avançado, dadas as condições. Não se pode dizer que é justo, igualitário, mas diante da situação de horror que os palestinos estão vivendo e da dificuldade de resolver de uma forma mais razoável, até mais justa para a Palestina e para Israel, ele é bem razoável. Os maiores desafios para reconstrução e administração de Gaza vão ser quem vai conduzir esse processo, porque aí tem que pensar em interesses econômicos, interesses da população, em restituir minimamente as condições de habitação, condições econômicas. Sendo o plano encabeçado por Trump, existe um pouco de desconfiança se essa reconstrução vai ser guiada por critérios puramente de interesses comerciais de lucros, de lucros imobiliários ou coisa assim. Mas tem alguma esperança, o Comitê da Paz, que vai ser gerido por outras pessoas, não só o Trump, o Tony Blair e alguns elementos da tecnocracia palestina. A gente ouve isso e não tem a menor ideia de quais seriam esses membros. Não vi nenhuma informação. Mas o fato de ter palestinos incluídos nesse processo é bastante positivo, porque as negociações em si foram feitas sem a presença deles. Porque Israel só pode agir como vem agindo há tantos anos por causa do apoio dos Estados Unidos. Ou quando não é apoio, é conivência, uma falta de pulso de enfrentar de fato Israel, porque nesse caso, só poder controla poder, só força controla força. Israel, não só Netanyahu, mas essa ala da extremíssima direita que o apoia no parlamento, eles querem fazer muito pior. Então, só com pressão muito grande dos Estados Unidos, de Trump, há alguma chance de dar certo. Condições para o planoGeisa Franco – Até esse plano de paz, a situação chegou num ponto tão crítico que tanto o Hamas tinha um poder de barganha bastante reduzido, como Israel, mesmo com um poder de barganha muito maior, já não tinha as condições dadas no início. Há dois anos, toda a população apoiou Netanyahu entrar na guerra, toda a comoção dos reféns e tudo mais, por mais que não o apoiasse anteriormente por conta de corrupção e de uma política, vamos dizer, equivocada nessas questões de enfrentamento ao Hamas. Ele tinha feito um acordo de paz com o Hamas e o acordo foi violado pelo grupo, Netanyahu foi muito criticado por não ter se precavido para esse ataque, houve falha enorme na segurança de Israel. Ainda assim, naquele momento havia uma comoção nacional extremamente justificada para uma reação contra o Hamas. O problema é que a reação foi contra todos os palestinos, inclusive milhares que não fazem parte do Hamas e outros que nem mesmo apoiam o Hamas. Quando isso foi se exacerbando a população de Israel mesmo ficou indignada, alguns até se negaram a servir o Exército, outros se negaram a apoiar essa política, se manifestaram publicamente, vários judeus no mundo inteiro se manifestaram contra essa atitude de extermínio da população, de destruição de Gaza. E aí Netanyahu foi ficando também com poder de barganha bem menor quando, por exemplo, esses países todos mais importantes que fazem parte do Conselho de Segurança, como França, Reino Unido e fora do Conselho também, Austrália, Portugal, Canadá reconheceram um Estado da Palestina, algo que devia ter sido feito em 1948, quando foi criado o Estado de Israel.Extrema direita em IsraelNicola Melis - Essa pressão é real e reflete uma radicalização profunda dentro da sociedade e da política israelense. No entanto, é importante evitar uma leitura que trate essa extrema-direita como uma anomalia. O atual governo não representa uma ruptura, mas sim a continuidade explícita de um projeto colonial e exclusivista que remonta às origens do sionismo político e ao período do Mandato Britânico. Desde a fundação de Israel, a lógica predominante tem sido a da exclusão sistemática da população palestina — expulsão, expropriação, segregação territorial e jurídica. O que hoje se manifesta sob a forma de ultranacionalismo religioso é a expressão mais visível de uma estrutura histórica de apartheid e de supremacia étnica, legitimada por décadas de impunidade e apoio internacional. Portanto, a pressão dos partidos da coalizão é apenas a face política de um processo muito mais amplo: o de transformar a ocupação e o domínio colonial em normalidade institucional. Isso evidentemente compromete qualquer tentativa de paz, porque o que está em jogo não é a existência do Hamas, mas a própria ideia de que os palestinos possam existir politicamente como povo com direitos.Áreas ocupadas na CisjordâniaNicola Melis - Essa expansão (de áreas ocupadas por Israel no território palestino) é parte estruturante do projeto israelense desde 1967. O processo de colonização da Cisjordânia não é obra de minorias extremistas, mas uma política de Estado contínua, executada por governos de diferentes matizes — trabalhistas, liberais ou religiosos. A diferença atual é o grau de transparência com que essa política se afirma, sem sequer a necessidade de justificativas diplomáticas. Hoje, o governo israelense não apenas protege, mas legaliza retroativamente colônias ilegais, financia novas infraestruturas exclusivas para colonos e intensifica a repressão contra as comunidades palestinas. A expansão territorial é acompanhada por uma engenharia jurídica e administrativa que visa consolidar um regime de apartheid de fato, em que dois povos coexistem sob sistemas legais radicalmente distintos. O que vemos na Cisjordânia é, portanto, a continuação da mesma lógica de Gaza: a fragmentação territorial, o deslocamento forçado e a destruição da soberania palestina. Essa política não nasce com o atual governo — ela é a espinha dorsal de um projeto de dominação que vem sendo construído há mais de sete décadas.Genocídio Nicola Melis - O que ocorre em Gaza preenche claramente os elementos jurídicos que caracterizam o crime de genocídio segundo a Convenção de 1948. Há intenção deliberada de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional e étnico — o povo palestino —, e há atos concretos nesse sentido: assassinatos em massa, destruição de infraestrutura essencial à sobrevivência, imposição de condições de vida insustentáveis, bloqueio de alimentos e medicamentos, impedimento de nascimentos e deslocamentos forçados. Esse entendimento é hoje compartilhado por numerosos juristas de renome internacional, especialistas em genocídios, estudiosos da Shoah e ex-funcionários da ONU. Não se trata de um juízo político, mas de uma constatação jurídica e moral. A magnitude da violência - crianças mortas nos braços dos pais, hospitais transformados em ruínas, médicos obrigados a escolher quem salvar - revela a intenção de eliminar um povo inteiro. Alguns propagandistas das políticas repressivas de Israel chegam a alegar que não seria genocídio porque os palestinos seriam “apenas árabes” - argumento que ignora que o povo palestino existe como grupo nacional distinto dentro do mais amplo povo árabe, composto por múltiplas comunidades diversíssimas, e que reduzi-lo a uma única categoria indistinta constitui uma simplificação grosseira de natureza racista. Além disso, o genocídio em Gaza deve ser lido dentro de uma lógica colonial e racial global, herdeira do suprematismo branco que marcou o século 19 e parte do 20: a crença de que certas vidas são descartáveis para preservar a “civilização”. É, portanto, um ataque não apenas aos palestinos, mas aos próprios fundamentos do direito internacional e da dignidade humana.Geisa Franco – Lula foi bem corajoso em chamar pelo nome genocídio, porque pelo direito internacional existe uma forma de definir se é genocídio ou não. Embora eu não ache que seja essa tecnicalidade, esse preciosismo tão necessário, mas segundo o direito internacional tem que ser algo dirigido a um grupo específico, um grupo religioso, um grupo étnico, que vise a exterminar o povo em si. Não é uma guerra aleatória por outros fins, mas no caso de Netanyahu com Gaza, até, por exemplo, várias crianças, bebês, foram mortos, hospitais foram atingidos. Claro, a gente sabe que o Hamas procura estabelecer seus esconderijos em lugares como túneis embaixo de hospitais, de escolas ou de alguma agência da ONU. Ele usa isso como uma forma de evitar ou de impedir ataques a essas regiões, mas isso não foi respeitado dessa vez.Posição do Brasil Nicola Melis - A posição do Brasil tem sido uma das poucas na comunidade internacional que mantém coerência com o direito internacional. Ao defender o cessar-fogo, o respeito às resoluções da ONU e o reconhecimento do Estado da Palestina, o governo brasileiro reafirma os princípios constitucionais de não-intervenção, solução pacífica de controvérsias e defesa dos direitos humanos. Essa postura contrasta com a de vários países ocidentais que, em nome de alianças estratégicas, têm justificado ou minimizado crimes de guerra. No caso europeu, a Itália representa um exemplo preocupante: o alinhamento quase incondicional ao governo israelense não apenas compromete sua credibilidade diplomática, como pode gerar consequências jurídicas graves. Há juristas que apontam a possibilidade de que a Itália venha a ser responsabilizada por cumplicidade e por violação de seus deveres de prevenção, podendo inclusive ser levada à Corte Internacional de Justiça por um Estado terceiro. O Brasil, ao adotar uma posição de equilíbrio fundada na legalidade internacional, reafirma uma tradição diplomática que privilegia o direito sobre a força - e, neste momento histórico, isso é de enorme importância.Geisa Franco - O governo brasileiro fez o correto. O Ministério das Relações Exteriores tem uma posição bastante coerente em relação à Palestina. O Brasil sempre apoiou a Palestina sem ficar extremamente contrário a Israel, mas reconheceu o Estado da Palestina há muito mais tempo do que esses países que pressionaram pela reação de Israel agora, nesse último conflito provocado pelo atentado horrível e cruel do Hamas. No começo, a diplomacia brasileira não dava destaque para o ataque do Hamas e dava muito destaque para a reação desproporcionalíssima do Exército israelense. Mas depois passou a condenar o ataque do Hamas com mais ênfase.Trump e o Nobel da PazNicola Melis - O legado de Donald Trump é um dos fatores mais desestabilizadores da política regional. Ao reconhecer Jerusalém como capital de Israel, cortar o financiamento da UNRWA — agência da ONU que ampara milhões de refugiados palestinos — e apoiar a normalização forçada entre Israel e regimes árabes autoritários, Trump desestruturou décadas de diplomacia internacional. Mas o impacto vai além do conflito israelo-palestino. Durante seu governo, Washington adotou posições erráticas e oportunistas em relação a outros atores regionais: oscilou entre apoio e hostilidade ao Irã, ao Líbano, ao Iêmen, etc. favorecendo uma escalada de tensões sectárias e humanitárias. Essa política de curto prazo, centrada em ganhos eleitorais e em alianças estratégicas voláteis, minou a credibilidade dos Estados Unidos como mediador e abriu espaço para uma política de força que continua a alimentar o ciclo de violência. Mesmo após Trump, parte dessa lógica permanece ativa em Washington: a defesa incondicional de Israel como “democracia modelo” e a desconfiança estrutural em relação ao mundo árabe. Isso torna qualquer plano de paz dependente de uma mudança profunda na visão americana do Oriente Médio — algo que, até agora, não ocorreu.Geisa Franco - Trump quer ganhar o Nobel da Paz, não ganhou neste ano, mas nem o timing era bom, porque já estava escolhido o prêmio antes de terminarem as negociações. Não que ele mereça, porque todas as ações dele, exceto essa, não são de alguém pacífico, de alguém que quer promover a paz, o que ele está fazendo internamente de caça aos imigrantes, de guerra aos governadores democratas e aos estados democratas, usando a Força Nacional supostamente para restabelecer a ordem em estados governados por democratas, cidades governadas por democratas, isso aí não tem nada a ver com a paz. E nenhum desses lugares estava correndo risco. O feito em si de terminar com o conflito Israel-Palestina nesse momento mais crítico do que todas as outras vezes, correndo risco de extermínio da população palestina, o feito em si é digno de um Nobel da Paz, porém, Trump não é digno por causa de suas outras ações.Solução de dois EstadosGeisa Franco - A solução proposta na época de criação do Estado de Israel e que nunca foi cumprida seria de dois estados convivendo. Porque tanto os palestinos têm razão de reivindicar os territórios naquela região como os israelenses têm legitimidade de reivindicar uma parte do território, não há como fazer um mapa exato e dizer o que seria dos israelenses e o que seria dos palestinos, mas a única solução viável seriam os dois estados. Em toda a história de ocupação da humanidade, os mapas mudam a cada século a cada década. Essa coisa de dizer que essa terra era nossa no período tal da Bíblia ou qualquer que seja, ela não é muito viável, porque senão, por exemplo, na Europa, vários países foram habitados e ocupados por outros povos que não os que estão lá. Tem que ser uma solução pragmática. Pressão internacionalGeisa Franco - As manifestações foram gigantescas em vários países, não só países árabes. Austrália, Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido. No Brasil não foram tão grandes, mas houve várias. Na França foram gigantescas e isso pesa para os dirigentes desses países. Por exemplo, Macron (Emmanuel, presidente da França) não vai querer contrariar uma imensa parte da opinião pública do seu país. Da mesma forma, o primeiro-ministro do Reino Unido. Essa manifestação da opinião pública pressiona muito os governantes. E o que é curioso é que nos Estados Unidos, onde a opinião pública sempre foi majoritariamente favorável ao Estado de Israel nesse conflito com a Palestina, isso mudou, uma coisa bastante notável. Hoje, segundo as pesquisas, há mais eleitores americanos, há mais norte-americanos que apoiam a Palestina do que apoiam Israel. Isso não quer dizer que eles não apoiem Israel, que querem que Israel seja exterminada, como também não queria dizer antes que eles quisessem que a Palestina fosse exterminada. Mas diante desse genocídio, que a gente pode chamar de fato de genocídio, a própria opinião pública americana mudou de posição e obviamente isso pesa para Trump também. Não que ele tenha feito o acordo em função disso, mas são fatores que pesam e os Estados Unidos sempre foram o único ator possível de parar Israel, o único, pela força militar e pela influência. E Trump, ameaçou com a força mesmo. Netanyahu teve que ceder. Principalmente em função da imensa manifestação pelo retorno dos reféns, quando a prioridade dele parecia ser destruir Gaza, destruir Hamas e continuar no poder, porque em guerra, ele fica no poder. E sabe que a guerra terminando, corre risco de ser destituído.