Sinalização favorável do Brasil a plano de paz para a Faixa de Gaza anunciado nesta segunda-feira (29) pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao lado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, na Casa Branca, surpreendeu um dos principais nomes do Direito Internacional da atualidade, Francisco Rezek, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e ex-ministro de Relações Exteriores. “Uma coisa mal-nascida não tem muito como dar certo. Além dos dois propositores, nós temos aí o envolvimento de Tony Blair, o antigo primeiro-ministro britânico, que foi o coautor, junto com George W. Bush na época, do genocídio iraquiano. Um dos personagens mais detestados da história da Inglaterra”, comenta Rezek em entrevista ao POPULAR. O ex-ministro concorda com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na afirmação, em mais de uma ocasião, sobre um genocídio em curso em Gaza, termo usado inclusive em discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 23 de setembro. “Mais do que um genocídio. É o mais escandaloso, o mais perverso e o mais ostensivo dos genocídios que a história da raça humana registra”, acusa. Nesta sexta-feira (03), Rezek ministrou aula magna no Auditório da Biblioteca Central da UFG (Universidade Federal de Goiás), em evento realizado pela Faculdade de Ciências Sociais, em conjunto com os Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI) e em Sociologia (PPGS). O tema foi O colapso do Direito Internacional e a falência moral do Ocidente. Sobre o tema abordado, ele dispara: “Donald Trump não está destruindo apenas, não está tentando destruir apenas as Nações Unidas e o direito internacional. Ele solapa, ele pisoteia, principalmente, antes de tudo, o direito norte-americano, a Constituição dos Estados Unidos da América”.O presidente Lula disse várias vezes que há um genocídio em curso em Gaza, termo usado inclusive em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 23 de setembro. A afirmação corresponde à realidade atual no território palestino? O que o presidente Lula vem afirmando há bastante tempo, não é de agora, é rigorosamente correto e nada me indigna mais do que a atitude de inúmeros personagens na imprensa ocidental, na imprensa brasileira e alguns da sociedade brasileira, mesmo no que ela tem de pensante, que discutem que acham que é um exagero afirmar que lá há um genocídio. Mais do que um genocídio. É o mais escandaloso, o mais perverso e o mais ostensivo dos genocídios que a história da raça humana registra. Nenhum dos genocidas do passado remoto ou do passado mais recente. Nem Leopoldo II da Bélgica, que dizimou mais de 15 milhões de pongoleses na virada do século 19 para o século 20, nem Adolf Hitler, nenhum deles foi tão insolente, tão assumido quanto os genocidas que hoje governam Israel com a cumplicidade dos Estados Unidos da América e a simpatia de alguns outros governos e de alguns outros grupos sociais em diversos países, entre eles o Brasil. A afirmação do presidente da república é uma realidade amarga, mas absolutamente irrecusável. E eu acho que aqueles que, de algum modo, lá fora, ainda discutem a natureza do que está acontecendo em Gaza, deveriam se envergonhar da própria covardia ou da própria idiotice. Na sequência, o chanceler brasileiro Mauro Vieira elogiou o plano de paz anunciado pela Casa Branca na última segunda-feira (29), observando que o conjunto de 20 pontos apresentado se assemelha aos objetivos defendidos pelo governo brasileiro. Como vê a posição do Brasil diante desse conflito no Oriente Médio?Bom, a posição do Brasil me surpreendeu de algum modo, numa hora em que tantos dos defensores da causa palestina, tantas das vozes que condenam o que está acontecendo hoje na Faixa de Gaza e na Cisjordânia ocupada também, entendem que o plano é digno da dupla Trump-Netanyahu, e não é do interesse do povo palestino. É digno daqueles que o conceberam e que, sabidamente, não têm nenhum compromisso com o direito, nem com a decência. Mas, enfim, me surpreende que governos como o da Turquia, de Recep Tayyip Erdogan, e o governo brasileiro tenham achado, não exatamente elogiado, mas achado que a coisa é palatável e que pode levar a bom termo. Vamos ver como as coisas caminham. Eu sou um pouco cético quanto a isso. Eu acho que uma coisa mal-nascida não tem muito como dar certo. Além dos dois propositores, Donald Trump e Benjamin Netanyahu, nós temos aí o envolvimento de Tony Blair, o antigo primeiro-ministro britânico que foi o coautor, junto com George W. Bush na época, do genocídio iraquiano. Um dos personagens mais detestados da história da Inglaterra e que, ele mesmo, se penitenciou mais de uma vez nos anos recentes pela tropelia que cometeu naquela época. Enfim, uma proposta deTrump e Netanyahu envolvendo como agente executivo alguém como Tony Blair não pode ser coisa boa, não é uma coisa em que se possa confiar, mas eu não sei se o governo do Brasil, o governo da Turquia e alguns mais, insuspeitos de qualquer cumplicidade com o eixo Washington-Tel Aviv, manifestaram sua esperança de que esse plano leve a algo de bom. Eu prefiro esperar para ver o que acontece.Os ataques israelenses a Gaza levaram ao reconhecimento do Estado palestino durante a Assembleia-Geral, com o anúncio de países como França, Reino Unido e Canadá. Aumento da pressão internacional pode fazer avançar essa proposta, apesar da total discordância de Israel?É claro que sim. Israel está hoje sozinho na cena internacional. Ele conta unicamente com os velhos associados ao governo norte-americano, em tudo, como o Reino Unido. Mas Canadá, França, Alemanha, sem dúvida, já se deram conta de que o Estado Palestino é uma realidade que não pode ser mais cinicamente negada. Essa pressão internacional pode fazer avançar a proposta da admissão da Palestina como um membro a título pleno das Nações Unidas, o que deveria ter acontecido já em 1948 e não aconteceu até hoje, para a vergonha nossa. O tema da sua aula magna na UFG foi o colapso do direito internacional em 2025 e a falência moral do Ocidente. Por que essa constatação?A propósito da falência moral do ocidente, é o que me parece que está acontecendo neste momento. Donald Trump não está destruindo apenas, não está tentando destruir apenas as Nações Unidas e o direito internacional. Ele solapa, ele pisoteia, principalmente, antes de tudo, o direito norte-americano, a Constituição dos Estados Unidos da América, e a sua ordem jurídica. Mas nós não precisamos reagir a Donald Trump aqui de tão longe. Tudo que há de melhor na consciência coletiva dos Estados Unidos da América, todos os legatários da herança de dignidade, de decência, e de inteligência, que foi deixada por Thomas Jefferson e Abraham Lincoln, para citar apenas dois, dentre os fundadores e mantenedores da grande nação norte-americana, tudo isso está sendo ostensivamente chutado, pisoteado, pelo governo de Donald Trump e sua claque. Isso não pode durar. É lá mesmo, razão pela qual eu disse que isso não é bem um problema nosso, é lá mesmo que se denuncia à voz mais alta esse descrédito em que o governo norte-americano de Donald Trump coloca o Ocidente em geral e nos faz falar na falência moral desse Ocidente. Ninguém aí é tão desinformado ou tão ingênuo a ponto de acreditar que isso pode durar. A falência moral do Ocidente, comandada, capitaneada por Donald Trump, é uma realidade. Diante do cenário de crise global, a exemplo da guerra na Ucrânia invadida há mais de três anos pela Rússia, há perspectivas de reconstrução de um acordo internacional para garantia de direitos humanos e respeito a regras pactuadas também para situações de conflito?Ao fim e ao cabo, nós viveremos dias melhores, nos Estados Unidos, aqui, na Palestina e no restante do mundo. As consciências já se alertaram para o risco que corremos de colapso da ordem jurídica internacional, até os mais inertes, até os mais tímidos dos atores na cena política internacional já se esgotaram na sua paciência e na sua cumplicidade com o colapso do direito internacional. Dá para ter esperança de que, no curto prazo, nós viveremos dias melhores. Melhores para o direito, melhores para a organização das Nações Unidas, melhores para a raça humana.