As águas do Rio Meia Ponte não devem ser consumidas por seres humanos e animais sem o devido tratamento, como conclui um estudo feito por alunos da Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Desde a nascente do manancial, em Itauçu, e até a sua foz, os estudantes verificaram níveis de toxicidade na água, que é ainda maior nas proximidades de Goiânia. O estudo, além das análises físico-químicas do rio, que já são comuns, realizou o monitoramento biológico, que evidenciou genotoxicidade no leito. Ou seja, há potencial de causar danos no DNA de quem utilizar a água do Meia Ponte sem o devido tratamento.A pesquisa foi feita por meio de análise da água coletada em cinco pontos do leito do Meia Ponte, desde a nascente e passando por Inhumas, Goiânia, Pontalina e Cachoeira Dourada (veja quadro). A análise biológica da qualidade da água se deu a partir do uso da cebola, em que, após preparação para o seu enraizamento, foi colocada em uma água destilada para controle e também nas amostras de cada ponto do Meia Ponte. Após dois dias, as raízes eram preparadas para a análise celular, em que foram verificados o índice mitótico, que é a capacidade de divisão das células, e a frequência de aberrações cromossômicas.Nestes dois quesitos, ficou demonstrado que a pior situação é nos arredores de Goiânia. Enquanto as cebolas que estiveram em água destilada atingiram um porcentual de divisão celular em relação ao total de células de 3,9%, aquelas raízes que cresceram na água do Meia Ponte coletada nos arredores da capital tiveram um índice 7,15 vezes maior. Além disso, nessa mesma água há um potencial 4,54 vezes maior de se ter aberrações cromossômicas. Neste caso, o potencial é semelhante ao que se viu na substância coletada em Pontalina, que é o ponto justamente após a passagem do Rio por Goiânia.Esses controladores biológicos indicam que o uso da água do Meia Ponte é prejudicial aos seres vivos, quando não tratada adequadamente, sendo passível de causar aberrações e prejuízo ao DNA ao ser consumido. A professora da UEG que participou da pesquisa, Elisa Flávia Baião explica que “a genotoxicidade observada neste estudo indica a presença de substâncias genotóxicas na água do Rio Meia Ponte”. No entanto, ressalta que não foi feita a dosagem de nenhuma substância na água e, por isso, não se pode afirmar “quais substâncias são essas e em quais concentrações elas se encontram no ambiente”.“Porém, uma vez que o rio é utilizado para o abastecimento da população e até mesmo para atividades de recreação (natação e pesca, por exemplo) não podemos descartar que essas substâncias podem entrar em contato com nosso organismo e de outros animais e causar lesões no DNA das células. Mas claro que para confirmarmos essa hipótese precisaríamos de mais estudos com outros modelos celulares e, de preferência, sistêmicos”, esclarece Elisa. Válido lembrar que apenas a água coletada em Inhumas não apresentou nível de genotoxicidade diferente do verificado pelo grupo controle, o que se considera que as aberrações cromossômicas se dão por uma questão natural dos seres vivos.LocaisPor outro lado, o estudo mostra que se observou genotoxicidade até mesmo na água coletada em Itauçu, em localização próxima da nascente do Meia Ponte, o que preocupou os pesquisadores. “Esse resultado sugere que a nascente do rio não está sendo preservada como deveria. Pode estar havendo o lançamento de algum resíduo indevido no local, como agrotóxico”, diz Elisa. Quanto à análise físico-química, o maior problema se dá também nos arredores da capital, cujo oxigênio dissolvido na água está abaixo da referência apontada como mínima pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).A resolução entende que é necessário ao menos 5 miligramas de oxigênio por litro de água (mg/l) e em Goiânia, o Meia Ponte apresenta 2,2 mg/l, o que demonstra alto índice de poluição e a inadequação para consumo humano neste ponto. A importância do oxigênio dissolvido (OD) está relacionada à sobrevivência dos organismos aquáticos e à qualidade da água. “O OD é usado como um indicador de poluição ambiental. Água contaminada por resíduos de atividades antrópicas tende a apresentar níveis reduzidos de OD. Isso ocorre devido ao consumo do oxigênio disponível na água para a respiração de bactérias decompositoras de matéria orgânica.”Para Elisa, a diminuição do OD tem várias implicações para o meio ambiente, como o limite inferior de OD para tolerância de peixes é 4 mg/l; abaixo de 3 mg/l tende a ser prejudicial para a maioria dos vertebrados aquáticos. “No nosso trabalho, o OD em Goiânia foi de 2,2 mg/L, o que é bastante preocupante para a vida aquática e para a saúde dos animais (incluindo os seres humanos) que dependem e fazem uso dessa água.” A pesquisadora completa que o critério utilizado para a escolha dos cinco pontos foi cobrir todo o curso do Rio Meia Ponte da nascente até a foz. “Além disso, utilizamos informações de satélite para a coleta de amostras do rio em locais com diferentes usos do solo”, conta a professora. Em Inhumas, a área escolhida é de pastagem e plantações de milho e soja predominantemente. O ponto adiante está localizado no perímetro urbano de Goiânia, em uma área com bastante lixo ao redor. Em Pontalina, há uma mata ciliar mais preservada, porém tem áreas de agricultura próximas ao ponto de coleta. “É importante ressaltar que muitos agrotóxicos utilizados em lavouras têm potencial genotóxico”, considera. Saneago garante fazer tratamento adequadoA Saneago, empresa mista cujo maior acionista é o Estado de Goiás, que é a responsável pelo uso do Rio Meia Ponte para o abastecimento de parte da região metropolitana de Goiânia, confirma que a qualidade da água do manancial, antes do tratamento feito, possui índices fora dos estabelecidos pelas autoridades ambientais. No entanto, a empresa garante que o tratamento realizado corrige os problemas, o que torna a água levada aos lares goianos dentro dos parâmetros exigidos. “Quando a água chega à captação apresenta índices fora dos limites do Conama 357/2005, o tratamento de ciclo completo corrige essas características. Atendemos a todos os parâmetros de qualidade da água produzida, bem como o plano de monitoramento em atendimento à Portaria de Consolidação do Ministério da Saúde, nº 05/2017, Anexo XX”, informa a Saneago. A companhia reforça que realiza monitoramento da qualidade da água bruta no ponto de captação, ou seja, antes do tratamento.Já na Estação de Tratamento de Água (ETA) Meia Ponte, a água passa pelo processo de tipo convencional de ciclo completo. Esse trabalho é composto pelas etapas de coagulação, floculação, decantação, filtração, desinfecção e fluoretação. Além disso, a Saneago informa que encaminha as denúncias que recebe sobre poluição no manancial para o órgão responsável pela gestão da Bacia do Rio Meia Ponte, que é a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad).Por outro lado, a empresa também é responsável por desaguar efluentes no rio, que é o local destinado para o esgoto tratado da capital. Atualmente, a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Dr. Hélio Seixo de Britto, localizada na região do Setor Goiânia 2, possui apenas o tratamento primário quimicamente assistido, com adição de produtos químicos. Com isto, é possível remover até 80% de sólidos suspensos e 50% de matéria orgânica. É prevista para o primeiro semestre de 2021 a finalização das obras de complementação da ETE, que passará a fazer o tratamento secundário. Neste caso, o trabalho é realizado com lodos ativados, o que elevará o índice de remoção de carga orgânica a 90%. “A Saneago está na fase de contratação de projetos para o tratamento terciário, com previsão de início das obras para o ano de 2023”, informa a companhia.Semad vê má qualidade na região de GoiâniaO problema do Rio Meia Ponte, segundo a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), é o mesmo de todos os rios urbanos que passam por grandes cidades. A secretaria realiza o monitoramento das características físico-químicas da água do manancial em seis pontos, incluindo dentro de Goiânia. Para o superintendente de Recursos Hídricos e Saneamento da pasta, Marco Neves, o Meia Ponte chega limpo próximo à capital, mas fica em péssima qualidade na extensão dentro da cidade e depois de alguns quilômetros se torna gradativamente limpo novamente.“Em Goiânia a qualidade da água é muito ruim, mas assim que passa pela ponte da GO-217 e na BR-153 a água já é boa novamente”, explica. De acordo com Neves, o problema dos rios urbanos se dá também por serem prejudicados duas vezes, como o Meia Ponte, já que dele é captada a água para abastecer a cidade e nele é jogado o esgoto coletado das residências, comércios e indústrias. “Não é um problema da Saneago, que faz muito, mas pode fazer mais. O ideal, em todo o País, era que a coleta fosse feita em ponto abaixo de onde se joga o efluente. Isso forçaria as companhias a tratar melhor do esgoto”, diz.Por outro lado, Neves ressalta que os efluentes não são os únicos “inimigos” do Meia Ponte, já que também existe o problema da falta de drenagem urbana, em que a chuva consegue carregar lixo e entulho dispostos nas ruas até os leitos dos rios. “Acontece no Meia Ponte o que classicamente ocorre nos rios urbanos. E em Goiânia piora muito.” O gerente de Monitoramento Ambiental da Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma), Antônio Junio Gonçalves da Cruz confirma que o trecho do rio em Goiânia é bem problemático.“Os lançamentos irregulares ainda persistem. Quem usa o Meia Ponte no perímetro de Goiânia está correndo risco, seja para irrigação ou consumo, mesmo para lazer”, afirma. Ele reforça que falta à Saneago, por exemplo, melhorar a qualidade do tratamento do esgoto, que, na visão dele, é despejado quase que in natura no leito do rio. Por outro lado, Cruz afirma que a situação tem sido melhor para o Meia Ponte nos últimos dois anos, e o retrato disso é a queda no número de denúncias por despejos irregulares no manancial. “Em 2017 o rio secou bem e o mau cheiro ficou evidenciado. Depois disso temos trabalhado para conversar com as empresas e não tivemos esse problema tão evidenciado”, conta o gerente da Amma. Ele reforça ainda que os demais mananciais que deságuam no Meia Ponte também estão degradados na capital, como o Ribeirão Anicuns e os córregos Caveiras e Cascavel. Cruz relata que a Amma tem feito monitoramento na ETE da Saneago e também das matas ciliares ao longo do trecho da capital, além do controle dos dejetos líquidos.Esse trabalho é realizado como complemento ao da Semad, que é a responsável pelo Meia Ponte, já que é um rio que passa por diversas cidades em Goiás. Neste caso, o superintendente Marco Neves informa que a secretaria tem atuado no monitoramento das matas ciliares e, principalmente, no controle da vazão do Rio, o que também se relaciona com a qualidade da água. Essa atuação é feita junto às indústrias e agropecuaristas que utilizam a água para a produção, seja aqueles que possuem a outorga (liberação) ou não. Neves conta que a Semad faz o monitoramento da qualidade da água por meio de algumas análises de características físico-químicas, como pH, oxigênio dissolvido, turbidez e coliformes fecais. Mas não existe um controle biológico para avaliar a capacidade de genotoxicidade da água, o que se verificou como possível causadora de danos em DNA por estudo da Universidade Estadual de Goiás (UEG). De todo modo, Neves confirma que não é adequado tomar banho nas águas do Meia Ponte, sobretudo em Goiânia, nem mesmo utilização para irrigação ou dessedentação animal.Recuperação da qualidade ambiental do recurso é difícilOs pesquisadores da Universidade Estadual de Goiás (UEG) que analisaram a qualidade da água do Rio Meia Ponte no Estado entendem que é difícil uma alternativa que melhore a situação atual. Para a professora da instituição e que participou do estudo, Elisa Flávia Baião, a recuperação dos recursos hídricos envolve três fatores. O primeiro deles é a necessidade de monitoramento da água ao longo do curso do rio. “Seria importante que esse monitoramento fosse não apenas das características físico-químicas da água (temperatura, turbidez, condutividade elétrica, oxigênio dissolvido e pH, por exemplo), mas também um monitoramento biológico que envolvesse a utilização de espécies bioindicadoras, como Allium cepa (cebola), peixes, microcrustáceos, bactérias luminescentes (Vibrio fischeri)”, diz Elisa. Ela explica que o biomonitoramento permite a observação de efeitos citogenotóxicos, histológicos, enzimáticos e outros que não se consegue observar apenas com o monitoramento físico-químico. Além disso, o monitoramento deve ocorrer em diferentes pontos do rio, pois facilitaria a identificação dos locais em que o lançamento de substâncias tóxicas pode ocorrer e, logo, onde o poder público deve atuar com maior rigidez. Por isso, o segundo fator necessário é a fiscalização. “É importante que o poder público atue impedindo o descarte indevido de substâncias na água do rio, como agrotóxicos, matéria orgânica (lixo, esgoto). Neste sentido, o enquadramento dos responsáveis em crimes ambientais com penas exemplares poderia desestimular práticas ilícitas.” A professora complementa que a tríade é fechada com a participação da sociedade, o que inclui a valorização da educação ambiental. “É importante que a sociedade entenda porque não se deve descartar lixo de forma indevida, porque existe limite de uso de agrotóxicos e porque precisamos preservar as matas ciliares (que são importantes também para elevar a qualidade da água uma vez que muitas substâncias são retidas nas margens dos rios e não alcançam os recursos hídricos).”