Há pouco mais de duas décadas a construção de muitas janelas numa colina chamava a atenção de quem passava pelas proximidades do Setor Gentil Meirelles, Região Norte de Goiânia. Com o adensamento na região, o prédio dos anos 1940 que abrigou o preventório Educandário Afrânio de Azevedo, perdeu sua importância no cenário urbano. Resistindo ao tempo, às intempéries e à falta de recursos para manutenção, ele guarda parte da história da política isolacionista brasileira como medida profilática para conter o avanço da hanseníase, doença antes conhecida como lepra que deixou um colossal rastro de dor e estigma.Aos 76 anos, Dirce Miranda de Sousa chora ao falar do prédio. Diretora da Sociedade Eunice Weaver de Goiânia, mantenedora da creche Educandário Afrânio Azevedo que funciona na enorme construção, ela detalha as dificuldades para manter a história de pé. A maior parte do prédio está sem uso. Não há recursos para consertar o telhado avariado, há pouco alimento na despensa. “Temos 42 crianças matriculadas. O convênio com a prefeitura nos dá R$ 165 por cada uma. O restante da despesa faço com minha aposentadoria”. No ano passado, a instituição passou a enfrentar processos trabalhistas.Dirce era enfermeira da rede pública. Assumiu a direção da Sociedade Eunice Weaver em 1976 substituindo uma amiga voluntária. Nunca mais abandonou o lugar. É mãe de sete filhos, quatro adotados, dois deles ex-moradores da instituição e dois ficaram com ela a partir de histórias ligadas ao preventório. Com a saúde debilitada, se locomovendo com um andador, ela conta com Divino Avelino, de 62 anos, como fiel escudeiro. Ele é um dos filhos da casa. Ali é o único lar que conheceu. Como é o de Leila, a filha adotiva de Dirce, que possui a mesma idade de Divino. Levada para a casa “ainda suja de placenta”, como lembra Dirce, ela continua ligada umbilicalmente ao lugar.Por mais que tenha recebido modificações em quase 80 anos de construção, o prédio impressiona, pela imponência e pela amplitude. Desapareceram os janelões de madeira e a tinta vermelha que protegia a parte inferior das paredes, mas a parte estrutural insiste em trazer à tona os primórdios do local. Hoje está quase imperceptível em meio às casas que surgiram no Residencial Morumbi, embora esteja encravado numa área superior a 10 mil metros quadrados, com visão privilegiada de Goiânia.‘Filhos de leprosos’Na capital, a exemplo da Colônia Santa Marta, na região Leste, onde durante décadas o governo confinou pacientes de hanseníase, o antigo preventório Educandário Afrânio de Azevedo tornou-se um emblema. O espaço é um dos muitos construídos pelo país pela Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, então conduzida pela paulista Eunice Weaver, que tinha formação em educação sanitária. Nos anos 30, preocupada com o futuro dos filhos separados dos pais doentes, ela procurou Getúlio Vargas e apresentou um plano de construção de preventórios para abrigá-los.Com a política sanitária segregacionista, as crianças, embora sadias, permaneciam em espaços isolados das colônias leprosárias. Em geral, familiares próximos não assumiam seus cuidados. Escolas tradicionais não os recebiam temendo o contágio. Do então presidente da República Eunice Weaver conseguiu a promessa de auxílio oficial para a construção de preventórios pelo Brasil afora, no montante do dobro do que ela conseguisse arrecadar junto à sociedade civil. Ousada e destemida, ela mobilizou governos e empresários de norte a sul do Brasil para erguer cerca de 40 preventórios.Em 1940, o POPULAR noticiou a doação, pela firma Coimbra Bueno e Cia., de uma área para “a instalação do preventório para os filhos de leprosos”. A empresa dirigida pelos irmãos engenheiros Jerônimo e Abelardo Coimbra Bueno, era responsável pelos trabalhos de construção da capital que nascia. Seguindo um modelo discutido com o governo federal e adotado em dezenas de outros espalhados pelo país, o preventório Afrânio de Azevedo foi inaugurado em setembro de 1943 homenageando um de seus grandes benfeitores, o pecuarista mineiro Afrânio de Azevedo.Construído em dois pavimentos, o projeto arquitetônico do preventório goianiense foi idealizado para abrigar dormitórios, berçários, salas de aula, cozinha, refeitório, oficinas, entre outros. Jardim, pomar, horta e espaços para criação de animais rodeavam o grande prédio. Havia um motivo para a distância de 15 quilômetros da Colônia Santa Marta, como revela a historiadora Kalyna Ynanhia Silva de Faria, na dissertação de mestrado Da Dignificação dos Filhos de Lázaros: Um estudo sobre o Preventório Afrânio de Azevedo. Goiânia 1942-1950, defendida em 2014 na Universidade Federal de Goiás. “Essa distância era uma das recomendações de construção dos preventórios/educandários como tentativa de distanciar o estigma que a lepra/hanseníase carregava”.Clima era de pânico social no início do século 20No início do século 20 a hanseníse era endêmica no Brasil, favorecida pelas precárias condições sanitárias. Havia pânico social em relação à doença. Marginalizados, os doentes eram escorraçados de qualquer ambiente. Como não podiam trabalhar, perambulavam e mendigavam. Ao tomar as rédeas da situação, o governo brasileiro criou a chamada “profilaxia da lepra”, cujo fundamento era a prática do isolamento compulsório. Os leprosos eram literalmente caçados nas ruas e confinados em colônias. O Decreto 16.300/1923 determinava o afastamento imediato de todos os filhos, entre eles recém-nascidos, da convivência dos pais acometidos pela hanseníase.</CW>Nos anos 1930 os preventórios passaram a ter um papel fundamental dentro da política sanitária isolacionista. Acreditava-se então que a criança por ter contato com o foco da doença teria mais condições de desenvolvê-la, por isso deveriam ir para locais especialmente criados para recebê-las, onde seriam examinadas periodicamente. A entrada em ação de Eunice Weaver deu início a uma rede de preventórios mantidos pelas Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, hoje somente Sociedades Eunice Weaver. Todos esses prédios, entre eles o de Goiânia, pertencem a essa instituição.Nos anos 70, dentro de um processo de integração com a comunidade local, o poder público construiu na área do preventório uma escola que recebia tanto internos quanto crianças de bairros carentes da região. A Escola Eunice Weaver é subordinada à Secretaria Estadual de Educação e funciona com total autonomia em relação à antiga instituição. A creche conveniada com a Prefeitura de Goiânia funciona no prédio principal desde 1998.Inserido na história da construção de Goiânia, o prédio do extinto preventório Educandário Afrânio de Azevedo nunca foi objeto de estudo para tombamento com a finalidade da preservação da memória histórica. Foi o que O POPULAR constatou tanto nas esferas municipal e estadual quanto na federal, junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Olho tudo isso aqui e dói meu coração. Minha vida está aqui”, lamenta Dirce Miranda, que passa os dias buscando ajuda para a manutenção do prédio.Nome "lepra" foi proibido em 1976 para minimizar preconceitoConhecida antigamente como lepra, a hanseníase ou mal de Hansen, é uma doença infeciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae. Embora muito antiga, com registros há mais de 4 mil anos na China, Egito e Índia, sua identificação ocorreu em 1873 pelo cientista Armauer Hansen. O mal está relacionado às condições econômicas, sociais e ambientais desfavoráveis. A transmissão ocorre por gotículas de saliva ou secreção do nariz. O Ministério da Saúde aboliu a internação compulsória em 1954. Em 1976, proibiu o nome lepra para minimizar o preconceito.No Brasil a notificação da hanseníase é compulsória e de investigação obrigatória. O tratamento é gratuito e fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ele varia de seis meses a um ano, é eficaz e cura. Após a primeira dose da medicação não há mais risco de transmissão. O Ministério da Saúde recomenda que ao aparecimento de manchas em qualquer parte do corpo, principalmente, se ela apresentar alteração de sensibilidade, que a pessoa procure o serviço público de saúde. A hanseníase provoca comprometimento neural e periférico em mãos, pés ou face.O Brasil é um dos únicos países do mundo que ainda registra casos de hanseníase. No ranking mundial, somente a Índia possui mais casos. Em 2018, conforme o Ministério da Saúde, foram notificados 28.660 casos no país, 1.472 deles em Goiás.-Imagem (Image_1.1903123)