A Associação dos Filhos do Pai Eterno e Perpétuo Socorro (Afipe) entrou na Justiça em 2017 contra a prefeitura de Cocalinho (MT) para tentar suspender a cobrança do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) pela compra de duas fazendas pelo valor, juntas, de R$ 11,5 milhões. Alegando ser uma instituição religiosa filantrópica sem fins lucrativos e prometendo transformar o espaço em um centro de tratamento para dependentes químicos e de auxílio a famílias carentes, a Afipe queria se livrar de uma despesa em torno de R$ 202 mil exigida pela legislação.Na sentença, a qual O POPULAR teve acesso, o juiz Alexandre Meinberg Ceroy, da 1ª Vara de Água Boa, comarca onde Cocalinho está inserida, negou o pedido de urgência da ação e nem aceitou que a entidade se abstivesse de pagar o imposto enquanto o processo estivesse tramitando, afirmando que a Afipe não apresentou material suficiente para sustentar seu pedido. A defesa da associação desistiu do mandado de segurança individual e o processo foi extinto ainda em junho daquele ano.Ao negar o pedido inicial, Ceroy afirmou que a Afipe “não produziu uma mínima prova que corrobore as suas alegações” e que não há nada nos autos que comprove ser a associação uma “entidade religiosa sem fins lucrativos”.Para o magistrado, entretanto, há também um fato que coloca em xeque a justificativa da entidade: o valor pago pelas fazendas. Ceroy destaca que a associação pagou mais do que a avaliação de mercado pelas áreas. No caso, conforme a sentença, foram gastos R$ 467 mil a mais pela Afipe.“Não considerando somente o preço, mas também a localização e a natureza de tais propriedades não guardam qualquer relação com as alegadas finalidades do impetrante mencionadas na inicial, quais sejam: atendimento a famílias carentes, construção e reforma de centros sociais, assistência odontológica e psicológica, oficinas educativas, combate e prevenção ao uso de drogas, auxílio aos estudos de jovens de baixa renda, acolhida de idosos e outras”, escreveu o juiz na decisão.Ceroy deixa bem claro na sentença não enxergar a promessa como crível: “Pergunta-se: num extenso latifúndio nos confins do Estado do Mato Grosso, numa região que inclusive é de difícil acesso, haveria a possibilidade da impetrante exercer quaisquer de tais finalidades? A resposta, obviamente, é não.”Cocalinho é uma cidade com cerca de 5,7 mil habitantes às margens do Rio Araguaia. Conforme O POPULAR apurou, a fazenda fica a 30 km da cidade, em direção oposta a do Rio. Elas foram adquiridas em uma época que a região interessava para os investimentos da Afipe em propriedades rurais, como mostram documentos levantados pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) que resultaram na deflagração da Operação Vendilhões no dia 21 de agosto.O fundador e então presidente da Afipe, padre Robson de Oliveira Pereira, é suspeito, segundo os promotores do caso, de liderar um grupo que desviava recursos obtidos por meio de doações de fiéis para a associação. Desde 2010, mas principalmente a partir de 2015, milhões de reais foram gastos em compra e venda de imóveis urbanos e rurais, e, segundo o MP-GO, muitos aliados do padre e o próprio podem ter se favorecido financeiramente destas movimentações.InvestimentosAs investigações apontam que a Afipe chegou a ter cinco propriedades rurais no Mato Grosso, num total de 10.046 hectares, pelas quais foram gastos ao todo R$ 25,5 milhões.São fazendas em Araguaiana, Cocalinho e Vila Rica. Atualmente, segundo o Sistema Nacional de Imóveis Rurais do governo federal, a Afipe tem apenas uma área em seu nome, uma chácara de 72 hectares em Vila Rica.No Mato Grosso, as primeiras aquisições da Afipe foram de fazendas do prefeito de Trindade, Jânio Darrot (PSDB) – em Cocalinho e na vizinha Araguaiana. Pela primeira, em fevereiro de 2016, foram pagos R$ 8,9 milhões à JCF Participações LTDA, que pertence ao prefeito. Em julho, mais duas aquisições, pelas quais foram transferidos R$ 4,5 milhões para Jânio. Em post publicado nas redes sociais, o prefeito afirmou que a venda foi totalmente legal e feita por intermédio de terceiros.A propriedade adquirida em fevereiro, entretanto, ficou pouco mais de um mês com a Afipe, pois foi vendida pelo mesmo valor para uma empresa que atua com corte de bovinos.Além destas, em outubro de 2016, a Afipe comprou a chácara em Vila Rica, ao Norte do Mato Grosso. O dono da área é uma pessoa que atua com loteamentos imobiliários e teve empresas em Goiânia e Trindade, mas O POPULAR não conseguiu localiza-lo até o fechamento desta reportagem. Destino de imóvel é desconhecidoA parte da investigação contra o padre Robson que tramita na Justiça e se tornou pública após o fim do sigilo processual com a deflagração da Operação Vendilhões não permite saber o que aconteceu com as fazendas de Cocalinho pelas quais a Afipe tentou se isentar do ITBI. No site da Receita Federal consta que a Afipe registrou em maio de 2019 uma fazenda de nome “Parque das Antas” com a finalidade de criação de bovinos para corte – a criação de gado é um dos principais investimentos da associação, segundo levantamento feito pelo MP-GO.Em janeiro deste ano, entretanto, consta que foi dada baixa no CNPJ da fazenda e, atualmente, a mesma se encontra em nome da Agropecuária Cabriny, pertencente ao vice-prefeito de Trindade, Gleysson Cabriny, e seus irmãos, Onivaldo e Bráulio. Criada em 2015, a empresa só tem esta propriedade rural em seu nome, segundo levantamento no Cadastro Nacional de Imóveis Rurais do governo federal, e o endereço registrado é o da casa de Bráulio.Nas respostas enviadas ao POPULAR, a defesa dos irmãos Cabriny confirmam que adquiriram a fazenda que pertencia à Afipe, mas que antes a área foi repassada pela associação para os sócios paranaenses Marcos Antonio Alberti e Ademar Euclides Monteiro, donos da Sul Brasil, que vendeu uma rede nacional de comunicação para a Afipe e, em troca, recebeu o pagamento em dinheiro e imóveis. Um destes imóveis, no caso a fazenda em Cocalinho, foi repassada para os três Cabriny.“A Afipe negociou esta fazenda com um grupo do Paraná. A Afipe colocou o referido imóvel por mais de R$ 8 milhões, tendo um lucro superior a R$ 1 milhão. O grupo do Paraná repassou esta fazenda em um negócio juridicamente lícito para a empresa Agropecuária”, informou a defesa dos irmãos, por meio de nota.QuitaçãoJá a defesa da Afipe afirma que na referida negociação da Rede Pai Eterno, propriedades foram transferidas aos antigos sócios como dação em pagamento, “que é a modalidade prevista no Código Civil, onde o credor recebe a totalidade ou parte do crédito em bens e imóveis”.Nas investigações, o MP-GO já havia levantado suspeitas sobre estas transações envolvendo os empresários paraenses, o padre Robson e não apenas os irmãos Cabriny com outros empresários de Trindade que também negociaram com os donos da Sul Brasil e com a Afipe.Defesa confirma solicitaçãoA defesa do padre Robson informou que o pedido de isenção de ITBI foi feito porque, na época, os advogados da Afipe entendiam que por se tratar de uma instituição sem fins lucrativos, com direito à isenção e imunidade de alguns tributos, o benefício também contemplaria esta taxa. “No entanto, como a primeira decisão foi desfavorável, decidiu não recorrer e, de imediato, recolher os valores correspondentes”, informou por meio de nota.Em reportagens publicadas pela imprensa anteriormente, inclusive ao POPULAR, a defesa do padre já argumentava que a compra de fazendas era uma forma de investimento feito pela Afipe permitida pelo estatuto da associação para valorizar seu patrimônio e permitir o retorno financeiro para cumprimento das funções sociais e religiosas propostas.Na nota enviada à reportagem, a defesa informou que a administração dos imóveis rurais fica a cargo de funcionários contratados “para diversas finalidades: financeiro, recursos humanos, comunicação, jurídico etc”.Porém, conforme O POPULAR apurou junto ao MP-GO e a pessoas que negociaram imóveis com a Afipe, o padre não só estava bem informado sobre as aquisições, como participava diretamente, como no caso das áreas usadas para exploração de minérios, e que fazia a intermediação eram assessores de confiança do padre.