Era início de uma tarde de chuva fina quando o POPULAR caminhou pelos corredores do Hospital de Campanha para Enfrentamento ao Coronavírus, na última quinta-feira (18). Depois de mais de 602 dias, havia apenas vestígios da realidade de poucas semanas atrás. Portas fechadas, recepção vazia, macas desocupadas.Oito pacientes estavam em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e 11 em enfermarias no dia em que a reportagem esteve no hospital. Adaptada para receber leitos intensivos, a sala concebida originalmente para ser um centro cirúrgico estava silenciosa. Cenário que contrastava com o ritmo frenético dos dias mais críticos, em que até 200 pessoas recebiam oxigenação artificial simultaneamente.Só quem esteve lá nos últimos 22 meses sabe dizer. A primeira fase da Covid-19 foi assustadora. “Não sabíamos como tratar: entubar precocemente, (administrar) corticoide, dar antibiótico quando? Foi muito angustiante”, conta o médico nefrologista Luciano Vitorino, de 43 anos, no HCamp desde junho de 2020. “Em alguns momentos, ficava abatido, cansado, perguntando: quando isso vai acabar?”Responsável por fazer girar a engrenagem do hospital, em alguns momentos Vitorino teve de enfrentar seus próprios mecanismos emocionais. “É ruim demais ver alguém morrer, dar a notícia à família. O pacientes, às vezes, ficava 15 dias isolado. Depois não podia ter um velório, a família não podia receber um abraço”, lamenta. A tia do nefrologista morreu no HCamp, mas também houve momentos de alegria. “Lembro de um rapaz muito novo, ficou 30 dias internado e saiu vivo. Nós colocávamos o áudio da filha pequena dele, o que deu muita força”.Ainda que o contato com os pacientes seja profissional e, muitas vezes limitado, por causa do estado de saúde e por se tratar de uma doença infecciosa, o dia a dia permitia alguma aproximação. Auxiliar de higienização das UTIs desde a abertura do hospital, Lucimar de Oliveira, de 40 anos, passou do medo inicial ao gosto pelo trabalho. Tanto que fez até amizade. “Tem uma paciente, a Elizabeth, que recebeu alta e até hoje a gente tem contato”, conta. Agora, os planos dela incluem cursos para continuar trabalhando na área de saúde. “Gostei de mexer com gente, da área hospitalar”, afirma.SímboloO HCamp é um símbolo do combate à Covid-19 em Goiás. Lá foram atendidas 47 mil pessoas com Covid-19 ou com suspeita, 7,8 mil foram internadas, 1.799 morreram. Quando foi inaugurado, em março do ano passado, eram 70 leitos de UTI e 140 semicríticos. Com o crescimento exponencial de diagnósticos positivos para a infecção pelo coronavírus Sars-CoV-2, foi necessário ampliar para cem o número de UTIs. Ainda assim, em vários momentos, como em 15 de fevereiro e 1º de março deste ano, todos os leitos intensivos estavam ocupados.Na quinta (18), a taxa de ocupação era de 8% - oito pacientes críticos, conforme dito anteriormente. “O sentimento é de gratidão, de felicidade. Apesar de muitas perdas, é gratificante ter ajudado”, conta a coordenadora de Enfermagem das UTIs, Gabriella Nóbrega Milhomem Paranahyba, de 34 anos.Oriunda do Hospital de Urgências de Goiás Dr. Valdemiro Cruz, o Hugo, onde atuou na UTI por oito anos, Gabriella chegou ao HCamp quando a curva da epidemia ganhava velocidade, em junho do ano passado. Naquele momento, havia menos de 300 mortos pela doença em Goiás. Hoje, são mais de 24,4 mil. “Era um perfil de paciente diferente do que havia no Hugo. Trabalhávamos mais paramentados, com mais equipamentos de proteção individual (EPIs)”, diz. “Às vezes, sentia um pouco de angústia, com os casos aumentando”, admite. A superação veio com auxílio da equipe de assistência psicológica e com a percepção de que os profissionais que lidavam com os pacientes se capacitavam conforme entendiam melhor o inimigo. “Eu comemorava cada alta”, diz.“O primeiro caso, o primeiro profissional, o primeiro suicídio de paciente, o primeiro suicídio de profissional: tudo isso foi um baque”, afirma o secretário de Estado da Saúde, Ismael Alexandrino. A virada, conforme o secretário e os demais profissionais, começou com a vacinação. Famílias separadas pelo medo do coronavírusFora das dependências do Hospital de Campanha para Enfrentamento ao Coronavírus (HCamp) de Goiânia, os profissionais que atuaram na linha de frente também pagaram um preço emocional. Perdas de amigos e parentes para a doença somaram-se ao afastamento da própria família. Por exercerem atividades de alto risco de contaminação, muitos ficaram longe de pais, filhos e até do cônjuge.O fisioterapeuta Lucas Machado, de 32 anos, por exemplo, ficou de março do ano passado até maio deste ano vendo os pais, idosos, de dentro do carro. Nesse período, ficou sozinho no apartamento onde mora, com visitas esporádicas de amigos “de confiança, que se cuidam”. Depois que os pais completaram o ciclo de vacinação, com duas doses, os encontros presenciais retornaram, mas ainda com máscara e sem abraços. Uma ironia: foi Machado quem desenvolveu a cortina do abraço – uma espécie de roupa de plástico que permitia que pessoas se abraçassem sem contato físico direto.No caso da coordenadora de Enfermagem de UTIs Gabriella Milhomem, a distância foi do filho de 16 anos, que foi para a casa dos avós. Ela e o marido, médico, ficaram sozinhos em casa, uma forma de proteger o restante da família. Para complicar ainda mais a situação, a enfermeira contraiu o coronavírus em setembro do ano passado, no mesmo período em que perdeu a avó, que morava em Brasília, para a doença. “Não pude dar um abraço em minha mãe”, lembra.Pai de um jovem de 19 anos que vive em São Paulo, Luciano Vitorino, supervisor médico do hospital, teve de ficar longe do filho por meses. Quando foi possível viajar, ficou trancado num quarto de hotel com o rapaz. Em casa, chegou a dormir em quarto separado da esposa. “O coronavírus é um psicovírus”, diz. A definição é por causa dos efeitos emocionais que a pandemia causou tanto nos pacientes quanto nos profissionais, além de toda a comunidade. “O familiar de um paciente sofre com ansiedade, fica angustiado por que não pode ter contato”, ressalta. Uma das alternativas foi proporcionar o contato por vídeo, usando tablets.Ainda que os profissionais manifestem sentimento de alívio e de dever cumprido, os corredores vazios do HCamp não significam conforto emocional. É o que explica a psicóloga Jaqueline Moraes, de 34 anos, que trabalha no setor de atendimento dos funcionários do hospital. Ela diz que, após muito tempo abrindo mão de cuidar de si para cuidar de outros, é natural que ocorra uma fadiga emocional. “Agora os colaboradores estão começando a olhar para si mesmos”, afirma. Pico de 2021 superou o de 2020Os números do Hospital de Campanha para Enfrentamento ao Coronavírus (HCamp) de Goiânia são um recorte da pandemia no estado. Os gráficos mostram como a Covid-19 avançou rápido: no primeiro mês completo de funcionamento, abril de 2020, foram 36 internações em Unidade de Terapia Intensiva e 40 mortes. Em julho, no primeiro pico, foram 150 e 165, respectivamente. Na segunda onda, este ano, os números assustadores de um ano antes ficaram “modestos” diante da tragédia. O pico de mortes dentro do HCamp em 2021 ocorreu em março, com 160 casos. O de internações em UTI foi em junho, com 194 pacientes (veja quadro). Gente que chegou de São Paulo, Tocantins e mais 16 estados foi socorrida na unidade.RespiradoresDentro da maior UTI do HCamp, com 20 leitos, todos com respiradores e agora vazios, o secretário de Estado da Saúde, Ismael Alexandrino mostra esboços de planejamento nascidos da leitura de cenários. Em um deles, incluiu a possibilidade de utilizar o presídio de Águas Lindas e o Centro de Convenções de Anápolis.Agora, a SES-GO prepara a transição do HCamp em Hospital da Criança. A pasta comprará o prédio, que hoje pertence ao Ipasgo, por aproximadamente R$ 150 milhões. Dentro da maior UTI do hospital, com 20 leitos, todos equipados com respiradores e atualmente vazios, Alexandrino explica que, com o novo perfil, o número de leitos críticos deve ser reduzido para cerca de 30. Os equipamentos serão aproveitados em outras unidades de saúde geridas pelo Estado.-Imagem (1.2357671)