O conceito de modernidade que Pedro Ludovico Teixeira idealizou para a Goiânia que nascia nos anos de 1930 fica a cada dia mais evidenciado. Foi a esta conclusão que chegaram arqueólogos que descobriram nas obras do BRT, na Avenida Goiás, antigas estruturas de saneamento da capital goiana. O legado é comemorado pela superintendência regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por representar um testemunho histórico importante de um tempo em que a ousadia de erguer do nada uma nova capital contava com a companhia de preceitos inovadores urbanísticos.O olhar atento da arqueóloga Isadora Mota, que monitorava as obras do BRT, captou algo instigante quando um caminhão afundou as rodas diante do prédio do Grande Hotel, na confluência da Avenida Goiás com a Rua 3. Os operários trabalhavam na abertura da via para instalar novas estruturas de tubulação. “Encontramos uma galeria toda de pedra, de 0,93 cm por 1,55 m a 1,25 m de profundidade. Ela está em frente onde ficava antes a lavanderia do hotel”, detalha a arqueóloga Elaine Alencastro, da ArqLogus, empresa contratada pelo Consórcio BRT e supervisionada pelo Iphan. A velha estrutura estava escondida sob uma fina camada de concreto.“Não estávamos procurando nada, mas um arqueólogo fica o tempo todo monitorando as obras”, explica Elaine. As estruturas, conforme a arqueóloga, datam do mesmo período da construção do Grande Hotel, que começou a ser erguido em 1935 e foi inaugurado em 1937. “O achado mostra que havia uma preocupação com o saneamento básico numa época em que a cidade sequer tinha um sistema de coleta. É um processo inovador, com concepção europeia. O Grande Hotel foi construído para atender a elite”, diz.Danilo Curado, arqueólogo do Iphan, não esconde a alegria pela descoberta. Ele lembra que o órgão foi muito criticado ao insistir nos cuidados com as técnicas de preservação na Avenida Goiás. “Sabíamos que algo assim poderia surgir porque faz parte da dinâmica das cidades. Com o crescimento, o novo vai sobrepondo ao antigo, mas na arqueologia é praxe fazer a identificação. Daí a importância do licenciamento ambiental.” Elaine Alencastro explica que o achado só foi possível agora porque em reformas anteriores na via não havia uma legislação consolidada da arqueologia. “Agora a gente percebe que antes foi revirado, mas não houve essa preocupação”, conta.As velhas estruturas de saneamento de Goiânia foram devidamente identificadas, fotografadas e registradas em croquis. Os arqueólogos descobriram outros pontos nas imediações do Grande Hotel, onde se destacam manilhas de barro e tijolos antigos. Depois, tudo foi vedado com uma manta Bidim (tecido impermeável) revestida por camadas de areia e de brita, previstas no projeto de pavimentação, para que a obra do BRT continuasse. “O papel da arqueologia é salvaguardar os materiais que só descobrimos onde estão quando perfuramos. Em obras futuras, vão ter esse cuidado”, diz Elaine Alencastro.Para Danilo Curado, é importante pensar que não se trata apenas de um “bueiro velho”. Em sua concepção, “as estruturas demonstram que Goiânia foi pensada para além do Brasil, não somente na questão estética visual traduzida na arquitetura art-déco, mas também no aspecto da higiene social”. Já nos anos de 1930, de acordo com o arqueólogo, havia uma preocupação com a possibilidade de alagamentos, o que fica comprovado pela antiga solução de engenharia.As pesquisas arqueológicas previstas no licenciamento ambiental do corredor Norte-Sul do BRT devem ocorrer até julho deste ano. O Iphan aguarda o relatório final da ArqLogus, documento que é público e fica acessível a todos os interessados. Mas o órgão pensa também na possibilidade de contar melhor essa história de uma forma ampla, em uma exposição. Em tempos normais, eclipsados pela pandemia da Covid-19, o trabalho seria apresentado em locais públicos, como escolas, mas ações como essa estão suspensas. Os registros fotográficos e os croquis elaborados pelos arqueólogos ajudam a entender melhor a importância do legado. Obras ficaram paradas para proteger patrimônioO Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) acompanha de perto a obra do corredor do BRT no Centro de Goiânia, onde se localiza bens tombados do conjunto arquitetônico art-déco. Em janeiro de 2020, o órgão solicitou à Prefeitura de Goiânia que os trabalhos fossem paralisados em razão das fortes trepidações causadas pelo maquinário pesado que poderiam agravar o estado de conservação de alguns itens, entre eles a Torre do Relógio. Em março, o Iphan também pediu a abertura de processo para o licenciamento ambiental de toda área temendo impacto no acervo arqueológico.Com as obras paralisadas, o Ministério Público Federal entrou na questão. O procurador Hélio Telho entendeu que a medida administrativa adotada pelo Iphan não se justificava, bastando a adequação do maquinário, e recomendou que os trabalhos fossem retomados na região, o que ocorreu em agosto de 2020.A preservação de bens culturais históricos que estejam ameaçados por qualquer tipo de empreendimento é assegurada pela Constituição do Brasil. “A legislação brasileira tem nos dado respaldo na preservação do patrimônio histórico, cultural e arqueológico e é dela que nos servimos para minimizar os danos causados ao patrimônio cultural”, afirma Elaine Alencastro. Ela lembra que atividades impactantes, que provocam alterações no solo, exigem licenciamento ambiental, conforme prevê resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e podem ser submetidas à Avaliação de Impactos Ambientais. O Iphan é o órgão responsável pela proteção, preservação, gerenciamento dos bens e sítios arqueológicos que, por lei, são patrimônio da União.Torre do Relógio foi restauradaEm agosto de 2019 o Iphan realizou uma ação de conservação da Torre do Relógio, um dos cartões-postais de Goiânia. Em maio de 2020, já com a obra concluída, os técnicos constataram a necessidade de uma intervenção de caráter restaurativo. Os trabalhos exigiu investimento de quase R$ 700 mil. Foram realizados recuperação do revestimento, restauração de adornos, pintura interna e reativação da engrenagem do relógio. A entrega formal da obra de restauração está marcada para junho, com a presença da presidente do Iphan, Larissa Peixoto, e do secretário especial de Cultura, Mário Frias.