Uma carta endereçada a várias instituições, escrita de próprio punho por um dos cerca de 130 presos que a assinam, começou a circular em grupos de aplicativos de mensagens nos últimos dias denunciando um esquema de tortura dentro do Sistema Prisional de Goiás, em especial no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.A mensagem, que chama a atenção pela riqueza de detalhes, acusa diretamente o novo diretor-geral de Administração Penitenciária, o tenente-coronel PM Franz Augusto Marlus Rasmussen Rodrigues, que neste momento está de férias. Segundo a denúncia, seria ele o responsável por “ditar as regras” aos diretores de unidades prisionais.De acordo com o relato, “desde que foi sancionado o projeto de lei que transformou agentes penitenciários em policiais penais”, os servidores do sistema prisional têm empregado força física e usado armas letais e não letais, exibindo abuso de autoridade junto aos custodiados. A carta menciona episódios de tortura principalmente no Complexo Prisional, em unidades como a Casa Prisão Provisória (CPP), na Penitenciária Odenir Guimarães (POG) e na Central de Triagem.A mensagem clara, que revela ter sido escrita por alguém que possui noção de Português, é impactante. Diz que diretores de unidades, como Fábio Alex Trindade, da CPP, determinam ao supervisor de segurança Rafael, conhecido como Carioca, utilizar com o apoio do serviço de inteligência, métodos de agressão. “Me torturam todo dia na intenção de me fazer delatar possíveis ilícitos da ala ou drogas e pontos de tráfico na capital e regiões adjacentes.”Conforme o relato, presos são retirados das alas, levados para o isolamento onde servidores descaracterizados realizam afogamentos, dão golpes de mata-leão, choques nas partes íntimas e tortura psicológica, como ameaças de transferência para presídios de segurança máxima. Os abusos, segundo a carta, deixam marcas nas paredes e já provocaram ferimentos graves em pelo menos dois presos, atingidos por tiros de pistola. “Queremos nos reintegrar à sociedade com dignidade, dentro da lei, não sob torturas.”Coordenador da Pastoral Carcerária, o missionário redentorista Diego Vinício Gomes de Almeida conta que há quase dois anos, em razão da pandemia da Covid-19, integrantes da pastoral não têm frequentado o Complexo Prisional. “Mesmo assim, este tipo de denúncia chega até nós diariamente. Percebemos que elas aumentaram muito nos últimos dois anos. O que está acontecendo? Queremos respostas.”DGAPEm nota, a Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP) informou que “a administração tomou conhecimento sobre a carta que supostamente foi escrita por um detento CPP de Aparecida de Goiânia e enviou para Corregedoria do órgão para apuração dos fatos”. A diretoria-geral reforçou que “não coaduna com ações de violência ou com qualquer ato realizado contra a lei e segue trabalhando rigorosamente nas apurações de denúncias registradas em sua Corregedoria.”Além disso, a DGAP frisou que todas denúncias e reclamações podem ser protocoladas por meio da Ouvidoria Setorial da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO) pelo número (62) 3201-1212 ou via endereço eletrônico ou site da Corregedoria Geral do Estado (CGE), “para que sejam observadas, apuradas e respondidas oficialmente.”Policiais penais Presidente do Sindicato dos Servidores Penais do Sistema de Execução Penal do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuel Miranda das Neves defende uma apuração rigorosa por parte do Ministério Público, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-GO e pela Defensoria Pública. “Não comungamos com nenhum tipo de ilegalidade.”Na abertura do site do Sinsep-GO está estampada a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada por resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984 e ratificada pelo Brasil em 1989. A mudança que transformou o cargo de agente de segurança prisional para policial penal ocorreu este ano. A lei, sancionada pelo governador Ronaldo Caiado (DEM), foi publicada no Diário Oficial do Estado (DOE) no dia 12 de novembro. OAB-GO e Defensoria consideram caso gravíssimoA Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), por meio da Comissão de Direitos Humanos (CDH), reputou como “gravíssima” a denúncia sobre maus-tratos e torturas feita por detentos goianos. “A CDH já instaurou procedimento interno, com a designação de membros para fazer o acompanhamento do caso”, diz trecho da nota.A instituição lembra que “denúncias de atos incompatíveis com a execução penal, bem como a violação do exercício profissional do advogado, são recorrentes nas unidades prisionais do Estado e objetos de procedimentos administrativos da CDH e judiciais pela Ordem, por intermédio de sua Procuradoria de Prerrogativas.”Em fevereiro deste ano, a OAB-GO apresentou ao promotor Bernardo Morais Cavalcante, da 25ª Promotoria de Justiça do Estado de Goiás, responsável pela execução penal, um relatório sobre inspeção no Complexo Prisional no qual os destaques são as denúncias de tortura e as condições degradantes enfrentadas pelos presos, além das frequentes violações às prerrogativas da advocacia.A Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) comunicou que “tem recebido, com bastante frequência, relatos por presos e familiares, de contexto semelhante ao noticiado na carta” e que em uma reunião/audiência pública realizada em 21 de fevereiro sobre o motim ocorrido dois dias antes na Penitenciária Odenir Guimarães (POG) “sobrevieram relatos muito semelhantes.”A DPE-GO informou ainda que, em conjunto com a OAB-GO, propôs à DGAP, ainda em maio de 2020, “a implementação dos atendimentos virtuais nas unidades de recolhimento” motivados por conta das restrições de visitação, mas ainda não tiveram êxito nas negociações administrativas.A Defensoria destacou ainda que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, em conjunto com a DPE, recomendaram o retorno das visitas presenciais nas unidades Prisionais do Estado e que tem promovido inspeções nas prisões goianas para fazer a escuta ativa de detentos e policiais penais.Ministério Público ainda não recebeu documentoO Ministério Público de Goiás (MP-GO) ainda não recebeu a carta assinada por 130 detentos do sistema prisional goiano denunciando maus-tratos. “Essas pessoas podem entrar em contato com o Ministério Público por e-mail, telefone ou presencialmente e apresentar o documento”, explica o promotor Fernando Krebs, que responde atualmente pela 25ª Promotoria de Justiça, que tem atribuição em relação à execução penal no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.De acordo com ele, a apresentação de fotos e vídeos pode ajudar na formalização de uma possível denúncia. Ele explica que a apresentação deste tipo de relato não tem ocorrido com frequência no MP-GO. “De qualquer maneira, nós já tínhamos planejado uma inspeção na unidade e o assunto será abordado”, explica. Em nota, a corregedora de presídios e coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização (GMF), Telma Aparecida Alves, informou que as denúncias também não chegaram à Vara de Execução Penal de Goiânia, mas destacou que “sempre que essas queixas ocorrem, a primeira providência é formar um procedimento de corregedoria de presídio, mandando averiguar o caso e solicitar informações ao diretor-geral da Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP). De posse dessas informações, elas são encaminhadas ao Ministério Público para que (o mesmo) tome conhecimento e as medidas cabíveis.”-Imagem (1.2372444)