A degradação do Cerrado já faz com que o clima regional, considerando todo o bioma, fique 0,9°C mais quente e 10% mais seco em um período de 13 anos, entre 2006 e 2019. É o que aponta um estudo, da Universidade de Brasília (UnB), que aborda os impactos históricos e futuros da expansão agrícola sobre o bioma com a conversão de áreas nativas para pastagens e agricultura. Mantendo o mesmo ritmo, o prognóstico para o futuro é desanimador.O estudo, feito em colaboração com outras instituições, foi publicado na revista Global Change Biology. Ele quantificou os efeitos das transições de uso do solo considerando a vegetação florestal, savânica e campestre do Cerrado. Os resultados mostraram que não só a perda de florestas impacta o clima, mas também a perda de vegetação savânica, que é a mais abundante no bioma, e campestre também.A conversão de formações florestais para terras agrícolas ou pastagens reduziram a evapotranspiração (processo de evaporação dos ecossistemas e transpiração das plantas) média anual em, respectivamente, 44% e 39%, e aumentou a temperatura média diurna em 3,5 °C. A transição de savanas para terras agrícolas ou pastagens diminuiu a evapotranspiração média anual em, respectivamente, 27% e 21% e aumentou a temperatura média diurna média em 1,9 °C.Leia também:- Goiás registra uma queimada a cada 30 minutos e deixa cidades em situação de emergência- Água some em lagos de Goiânia com o avanço da estiagem- Goiânia registra maior temperatura e menor umidade do ano: 36,2°C e 10%Já a conversão de pastagens nativas para terras agrícolas ou pastagens aumentou a temperatura média diurna média em, respectivamente, 0,9°C e 0,6 °C. Nesse cenário, a evapotranspiração média anual aumentou em 15% nas pastagens e não teve nenhum efeito significativo nas terras agrícolas.Em Goiás, os pontos mais afetados com as mudanças foram a região Sul, onde existe forte atividade agropecuária, e as regiões na divisa com os estados da Bahia e Tocantins. Esses estados, junto com o Mato Grosso, Maranhão e Piauí enfrentam efeitos mais acentuados das mudanças climáticas. Na Bahia e no Piauí ocorre em áreas onde o clima já é muito quente e seco e no Tocantins, Maranhão e Mato Grosso em regiões produtoras de soja.“É um efeito acumulativo. O Cerrado está inserido nas mudanças climáticas globais e também nas mudanças locais, o que agrava ainda mais a condição do bioma, que sofre com a convergência de várias coisas: se o período chuvoso diminui, a estiagem aumenta, o que facilita a existência de mais incêndios florestais, que fragilizam a vegetação, que interfere no ciclo da água e assim sucessivamente”, explica Mercedes Bustamante, professora do departamento de Ecologia da UnB e uma das autoras do estudo.ImpactosO Código Florestal Brasileiro permite que até 80% da área de propriedades privadas no Cerrado sejam desmatados, deixando pelo menos 28 milhões de hectares sem proteção legal. “Não podemos pensar quanto do Cerrado ainda podemos desmatar e sim quanto dele ainda podemos manter. Temos de inverter a pergunta”, diz Mercedes.Pensando nas consequências ambientais a longo prazo, os estudiosos modelaram três cenários futuros para o clima do Cerrado. O primeiro modelou o clima com a continuação do desmatamento legal e ilegal na região até 2050, sem nenhuma política de controle. O segundo avaliou apenas o desmatamento permitido por lei, em um total de 28 milhões de hectares. O terceiro considerou o que aconteceria com o clima da região sob uma política de desmatamento zero e recuperação da vegetação nativa (leia mais abaixo).Nos dois primeiros cenários, os resultados mostraram calor severo e aumento da seca se o desmatamento continuar. O aumento de temperatura projetado é de 0,7 °C no pior cenário e de 0,3 °C no cenário intermediário. A estimativa é referente apenas ao desmatamento na região e não inclui o aquecimento global esperado de mais de 1 °C durante o período.“Se o ritmo for mantido, é justamente a agropecuária que será uma das maiores afetadas, já que este setor dependente diretamente das condições climáticas. O que vemos é que a continuidade das atividades nos moldes atuais é completamente insustentável e afetará diretamente no aumento da temperatura e no ciclo da água da região”, finaliza a professora.Equilíbrio é a chave para mudança A adoção de uma política de desmatamento zero e restauração de áreas desmatadas ilegalmente contribuirá para evitar o agravamento da crise climática no Cerrado. É o que aponta um terceiro cenário modelado por pesquisadores que desenvolveram o estudo que aborda os impactos históricos e futuros da expansão agrícola sobre o bioma.Entretanto, mesmo que o desmatamento seja barrado e o bioma restaurado, os pesquisadores destacam que isso não é suficiente para contrabalançar as grandes transformações que já estão em curso. “Podemos trabalhar daqui para frente para evitar que os estragos sejam ainda piores”, explica Mercedes Bustamante, professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras do estudo.Para que este terceiro cenário se torne uma realidade, a especialista aponta que é necessário que o Cerrado que ainda existe pare de ser desmatado. “Existem muitas áreas abertas que podem ser usadas de forma mais adequada para as finalidades da agricultura e da pecuária. Podemos fazer uma gestão do uso territorial mais adequada”, esclarece. Além disso, Mercedes aponta que é possível gerar emprego e renda por meio da restauração do Cerrado nas áreas mais degradadas. “Recuperar essas áreas com o plantio de vegetação e uma diversidade de outros manejos gera novas oportunidades de negócio, que são mais sustentáveis. Nesses processos, as comunidades locais e povos nativos, que sofrem intensamente com o desmatamento, acabam sendo os principais beneficiados”, enfatiza.A professora aponta que, dessa forma, é possível trilhar um caminho que equilibra a continuidade das atividades agrícolas com a restauração e proteção do Cerrado. “É possível sim conciliar essas duas demandas. Não é um cenário irreal.”Para isso, Mercedes destaca que é necessário compromisso por parte do poder público. “Temos vários instrumentos de monitoramento e mapeamento que podem ser usados para diagnósticos e para facilitar o trabalho. Modelagens e imagens e satélite também podem ajudar os governantes a tomarem decisões mais acertadas e benéficas para a continuidade do bioma. As ferramentas existem. Só é preciso que os gestores tenham interesse em usá-las.”