Quando Eunice Pirkodi, hoje com 37 anos, começou a estudar na Universidade Federal de Goiás (UFG), em meados de 2007, os olhares que a cercavam era de estranhamento. “A gente escutava: ‘Índio? Aqui na UFG?’”, relembra. A turma era a primeira de indígenas a ingressar na universidade. Depois deles vieram outras comunidades, que aos poucos transformaram o perfil dos estudantes da instituição.Um levantamento dos matriculados na UFG em 2012 mostrou que 65% dos estudantes que se matricularam naquele ano haviam concluído o ensino médio em escolas privadas. No ano anterior, outra pesquisa mostrou que 58% dos alunos eram das classes “A” e “B”. A partir da aprovação da lei das cotas, que neste mês completa dez anos, o perfil dos estudantes passou a se diversificar. Neste ano, por exemplo, 52,7% dos matriculados concluíram o ensino médio em escola pública.A lei aprovada em 2012 estabeleceu uma reserva das vagas nos cursos de graduação em porcentagem gradativa que alcançou 50% em 2016. São várias as categorias, sendo o critério básico ter o estudante feito todo o ensino médio na rede pública. As vagas são subdivididas entre reservas para pessoas negras, para aquelas com renda inferior a 1,5 salário mínimo, para aqueles que cumprem os dois critérios e outra categoria que exige apenas que o candidato tenha feito todo o ensino médio na rede pública.A pró-reitora de Assuntos Estudantis, Maísa Miralva, diz que não há dúvidas de que as políticas implementadas possibilitaram o processo de democratização da universidade. No entanto, amparada por estudos conduzidos pela UFG e por dados apontados pelo POPULAR, a pró-reitora alerta que o número de matrículas de negros e de escola pública começou a cair a partir de 2020, ainda que esses sigam sendo maioria (confira o quadro). Na base da questão estão os impactos da pandemia na educação básica e os sucessivos cortes orçamentários que vive a universidade.HistóriasNascida e crescida em uma aldeia situada no município de Nova América, interior de Goiás, Eunice Pirkodi é da primeira turma do curso de licenciatura em Educação Intercultural, ação que antecedeu às demais políticas de democratização do ensino que a universidade passaria a adotar nos anos seguintes.Ser da primeira turma do curso destinado para a capacitação de educadores de comunidades indígenas foi algo permeado de satisfação e dificuldades. Primeiro, ao ser aprovada, o sentimento foi “surreal”, como ela própria define. “Meus avós analfabetos, meus pais analfabetos. Eu estava sendo a primeira da minha família a estar em uma graduação”, cita.Já na faculdade, os problemas passaram a fazer parte do dia a dia. Na época não havia auxílio financeiro, política hoje considerada pilar para a efetividade da democratização do ensino e que na UFG atende mais de 3,5 mil estudantes de baixa renda. Eunice precisava cuidar de dois filhos e vivia em um alojamento com colegas do curso. “Era a última deitar e a primeira a levantar. Meus trabalhos nunca foram os melhores que eu podia oferecer, mas era o máximo que eu conseguia entregar”, relembra.Tentativas Mirna Anaquiri, de 36 anos, está próxima de defender sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG. Nascida em uma aldeia situada no município de Coari, interior do Amazonas, a pesquisadora vive em Goiânia há mais de 20 anos. Atraída pela educação desde muito nova, Mirna prestou o vestibular da UFG diversas vezes. No entanto, só conseguiu entrar na graduação com 24 anos, quando a universidade começou a adotar as primeiras políticas de cotas.“Meu desejo pela educação e pelo ensino era muito grande e exatamente por isso eu fiz muitas tentativas. Mas eu não passava nem na primeira fase”, conta Mirna. Ela foi a primeira entre os membros conhecidos de sua família a conseguir acessar o ensino superior. “Venho de uma família muito grande. Até onde eu sei, da parte que eu conheço, sou a primeira a ter uma graduação”, detalha.Após a colação de grau, em um misto de aptidão com o sentimento de necessidade, Mirna retornou à universidade para fazer pós-graduação. Em 2017 apresentou a dissertação de mestrado, se tornando a primeira estudante indígena com o título de mestre pela UFG. “Isso foi uma grande conquista, abre portas, mas ao mesmo tempo deve servir de reflexão sobre quantos anos a universidade já existe e porque só tanto tempo depois uma indígena defendeu um mestrado”, aponta.EquiparaçãoA doutoranda em antropologia, Marta Quintiliano, de 40 anos, nasceu no Quilombo Vó Rita, em Trindade. Na escola escutava de professores e colegas que era tímida demais para fazer perguntas dentro da sala de aula. Hoje, avalia que ficava com dúvidas, mas não perguntava, porque os demais não buscavam escutá-la. Quando chegou na época do vestibular tentou uma, duas, três, seis vezes. Passava na primeira fase, mas não conseguia passar na segunda.“Era uma trajetória que me colocava em desvantagem. As provas são construídas dentro de lógicas que precisam ser conhecidas. Na parte de disciplinas específicas, por exemplo, havia questões que simplesmente eu não havia visto”, conta Marta. O ingresso só foi possível quando, conforme a doutoranda explica, a concorrência ficou leal. “Meu sonho era fazer UFG e concorrendo entre meus pares eu consegui passar”, destaca sobre a aprovação que veio em 2011.“A gente não entra pela gente, a gente entra pela comunidade. Não estou aqui só por mim. Não estou aqui para comprar um carro. Não estou porque minha família é descendente de outros que já estavam na universidade”, diz Marta.Jeronilson Quirino da Silva, de 28 anos, entrou na universidade mais recentemente, foi aprovado para o curso de Ciências Sociais Políticas Públicas em 2017. Nascido e criado na comunidade Prata Vão do Moleque, em Cavalcante, a mais de 600 km de Goiânia, ele veio morar na capital em 2011 em busca de estudos. A escola da comunidade não tinha sequer energia elétrica.O primeiro contato com a UFG se deu durante uma visita promovida em parceria com a escola em que estudava. A atração pelo curso de Ciências Sociais teve relação direta com a falta de políticas públicas que sua comunidade encarava. “Quando descobri que tinha sido aprovado, comemorei muito, foi uma alegria imensa”, relembra.Para se manter na universidade, Silva conseguiu uma vaga na Casa do Estudante e recebeu auxílio financeiro para custear o dia a dia. Ele concluiu a graduação e atualmente está fazendo mestrado em ciências políticas. “Estou mestrando e pretendo seguir na docência. Se aparecer outras opções vou seguir, os caminhos são vários”, destaca.Contemplados por cotas têm performance similarA despeito de receios de que a inclusão das cotas pudesse impactar no desempenho dos estudantes, os números mostram que os matriculados pelas cotas e os por ampla concorrência têm performances quase idênticas, com diferenças de décimos. Os dados apurados pela reportagem mostram que os matriculados por cotas em 2012 concluíram o curso com média 6,42, enquanto os por ampla concorrência ficaram com 6,63. Os matriculados em 2020 por cotas estão com média 6,34, enquanto os por ampla concorrência estão com 6,78.No entanto, a situação se inverte quando os alunos matriculados por cotas recebem auxílios para permanecer na universidade. “Eles agarram essa oportunidade e tentam salvar essa chance e recebem apoio para isso”, detalha a pró-reitora Maísa. A porcentagem de matriculados por cotas que se formam chega a ser superior a dos por ampla concorrência, a exemplo dos matriculados em 2014 - 52% contra 50%. Conforme destaca o secretário adjunto da Secretaria de Inclusão da UFG (SIN), as políticas de inclusão ampliaram a demanda por assistência de forma significativa. Atualmente todos os estudantes com renda inferior a 1,5 salário mínimo podem receber três refeições gratuitas por dia. São oferecidas 350 vagas de moradia e 650 bolsas de auxílio aluguel. Essa assistência, que deveria atender mais estudantes, na avaliação da pró-reitora de Assuntos Estudantis, vem correndo riscos nos últimos anos, já tendo sido necessário passar por ajustes para comportar cortes de recursos. Para indígenas, por exemplo, a estimativa nacional é de que 8 mil alunos que se matricularam a partir de 2020 deveriam estar sendo atendidos com bolsas, mas seguem sem apoio. “Se continuar dessa forma eles entram e não conseguem se formar”, conta Maísa. Pandemia da Covid impacta na inclusãoSobre a redução do número de negros matriculados na UFG em 2022, que ficou em 48%, mas chegou a ser 58% em 2018, Maísa diz que o fenômeno está relacionado com os impactos da pandemia da Covid-19. “A pandemia veio agravar nossos problemas sociais e em 2020 já tivemos queda de estudantes de baixa renda que foram fazer a prova do Enem”, considera. “A exclusão aconteceu no Enem, não chegou nem a fase do processo seletivo. Estudantes de baixa renda deixaram de se sentir em condições de concorrer”, pondera a pró-reitora.“Os jovens passaram a não ter mais a educação como referência de mobilidade social. Muitos passaram a ter de lutar pela sobrevivência. Foram ocupando subempregos como necessidade de sobrevivência”, diz Maísa, que destaca ser primordial firmar um pacto coletivo sobre a importância da educação. “Quanto mais educação formal, quanto mais conseguimos escolarizar a população, mais desenvolvimento social, mais compreensão, civilidade humana na convivência. Isso é uma cosia que reverbera. Quanto mais formados, mais força de trabalho qualificada, mais qualidade de trabalho, melhor rendimento e mais desenvolvimento econômico e social. Desenvolver na educação é investir. Sem educação teremos mais violência, mais tráfico de drogas, mais insegurança pública”RealidadePara a doutoranda Marta Quintiliano, entre as diversas mudanças sociais após o acesso ao ensino superior está o entendimento de questões que servem, inclusive, para a comunidade se proteger. Atualmente ela é presidente da comunidade em que vive e diz que sente a diferença prática no dia a dia.“Quando você entra na universidade passa a entender os códigos. Questão territorial, por exemplo. Se vão fazer alguma obra que passe pelo território tem de conversar com a comunidade. Aconteceu conosco de prometerem uma coisa e fazerem outra. E só fui entender depois que estava na graduação. Estando dentro da universidade a gente muda a forma de lidar. Agora quando eu vou falar com eles é uma mestra, uma doutoranda. Agora eles escutam a comunidade”, aponta.Olhando o presente e avaliando o passado, Eunice Pirkodi destaca ter orgulho de saber que faz parte da luta para que mais indígenas, negros e demais comunidades em situação de vulnerabilidade pudessem estar nas universidades atualmente. “Hoje meu filho está na UFG. Ainda há dificuldades, mas percebo que para ele tem sido mais tranquilo”, compara. Agora, o próximo passo para a professora é pela inclusão de docentes indígenas no quadro permanente de professores da universidade. -Imagem (Image_1.2487440)-Imagem (Image_1.2487441)-Imagem (1.2489018)