Até o final de setembro, em Goiás, 1.719 pessoas estavam na fila de espera por um órgão para continuar vivendo ou ter melhor qualidade de vida. Apesar de todos os esforços para conscientização da sociedade e aumentar as captações, 2022 está chegando ao fim com um número menor de doações efetivas em relação aos últimos cinco anos e registrando quase 70% de negativas familiares. “Quando se fala em doação de órgãos, as pessoas são egoístas, mas se precisarem, certamente vão querer receber”, afirma a enfermeira Fabiana Ribeiro de Rezende, de 33 anos, que se aliou à luta por novos doadores depois de receber um coração para continuar viva.A mobilização do Setembro Verde trouxe fôlego para as equipes de captação e gerou comemoração. “Este mês de outubro foram quatro doações num único dia, pela primeira vez em nossa história. Nosso trabalho começou às 7 horas e finalizou na madrugada, beneficiando 22 pacientes de Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal e do Paraná”, relata a gerente da Central de Transplantes da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES-GO), Katiuscia Christiane Freitas. Nos dez primeiros dias de outubro foram nove doações, superando todo o mês anterior, mas de janeiro a setembro as captações efetivas chegaram a 48. Em todo o ano passado, ainda com a pandemia da Covid-19 em curso, houve 86 doações.“É um trabalho de formiguinha”, afirma a enfermeira Katiuscia. Além de todas as ações realizadas em setembro, que envolveu plantio de mudas, corpo a corpo com o público em shoppings e participação de transplantados em atividades esportivas, a Central de Transplantes tem apostado em duas frentes de trabalho para sensibilizar pessoas da sociedade e trabalhadores da área da saúde para mudar esse cenário. Palestras em empresas, escolas, e faculdades e capacitação em hospitais, na opinião de Katiuscia, podem contribuir para aumentar o número de doações.“Não é um tema fácil porque as pessoas não querem ouvir sobre morte, mas na palestras a gente mostra a seriedade do processo e o quanto é grandioso o ato de doar.” De acordo com Katiuscia, a equipe, que será reforçada agora, faz palestras onde for possível e em qualquer horário, até nos finais de semana. “Nosso principal objetivo é atingir o público em geral. Estamos trazendo mais pessoas para trabalhar na parte da sensibilização e da educação porque entendemos que essa é a chave. A capacitação dos profissionais de saúde faz toda diferença porque são eles que se comunicam com a família para que elas entendam o processo da morte encefálica. Precisamos afastar mitos e tabus em torno da doação de órgãos.”Entre transplantes de tecido (córnea, esclera, medula óssea e tecido músculo esquelético) e de órgãos sólidos (rim e fígado) foram realizados em Goiás de janeiro a setembro deste ano 430 procedimentos. O maior número de transplantes foi de córnea, 262. Para a gerente da Central de Transplantes, a recusa familiar ainda é muito alta em Goiás. “O que está por trás não é a desinformação, a falta de conhecimento. Não julgamos essas pessoas, precisamos trabalhar essa realidade”, enfatiza Katiuscia Christiane.União para fortalecer a conscientização Beneficiados e até mesmo famílias doadoras vêm se tornando os mais importantes aliados nesse esforço conjunto. Durante o Setembro Verde, Fabiana de Rezende marcou presença nas ações desencadeadas pela Central de Transplantes e contou sua história. Até bem pouco tempo era algo inimaginável. Desde os 15 anos a enfermeira viu sua vida se restringir em razão de uma miocardiopatia hipertrófica. Passou a sentir o coração acelerado, muito cansaço, sofreu paradas cardíacas até que soube que somente um transplante poderia salvá-la. Em agosto de 2020 ela entrou para a fila de São Paulo com a esperança de agilizar o processo. Em janeiro de 2021, Fabiana foi internada na capital paulista e soube que não poderia deixar o hospital sem um novo coração. Já com sequela renal e fazendo hemodiálise, foi colocada como prioridade na fila. No dia 4 de fevereiro foi informada que o órgão compatível estava a caminho. “Foi uma grande surpresa descobrir que o coração era de uma pessoa de Goiânia, cidade onde moro. Nunca imaginei uma coincidência dessas”, conta. Por questões legais, ela não sabe quem foi a mulher que doou o coração que agora bate em seu peito e que mudou tudo em sua vida. “Eu não tinha alternativa. Ou transplantar ou morrer. Quero que outras pessoas tenham a mesma oportunidade.” Elivânia Ferreira, 30, que se livrou da hemodiálise após cinco anos em razão de uma insuficiência renal, também integra as fileiras para aumentar a conscientização. “Sou outra pessoa. Cheguei a pesar 40 quilos e estou com 52, já retirei a fístula do meu braço, faço caminhadas, e meu rim está ótimo”, comemora. A jovem lembra que, após receber a notícia na madrugada de 17 de janeiro de 2020 de que havia um rim compatível, passou um dia inteiro chorando de emoção. “Fiquei louca de alegria e agradeci a Deus e à família daquele senhor de 60 anos que me deixou um órgão saudável.” A auxiliar de costura Anita de Souza Silva, 42, moradora de Itapuranga, chora muito ao falar da filha Amanda Syntia, que há um ano e meio não resistiu a um AVC logo após completar 15 anos. “Vinte dias antes ela comentou com o pai e comigo que gostaria de ser doadora. Estávamos assistindo a série Grey’s Anatomy e foi por causa de um episódio que ela tomou a decisão. ‘Por que vou acabar ali se posso salvar vidas e fazer muita gente feliz?’. Nós levamos um susto com o comentário dela porque estava tudo normal, ela estudando e fazendo planos para o futuro.” Amanda, depois de passar mal em casa, foi transferida para o Hugol, em Goiânia, onde quatro dias depois sua morte encefálica foi anunciada. “Quando falaram sobre a doação, lembrei na hora do que ela disse. Para mim é um conforto saber que minha filha está viva em cada pessoa que recebeu um de seus órgãos. Saber que seu coração bate em outro peito traz um consolo muito grande.” Quatro pessoas foram beneficiadas com os órgãos da jovem: uma moça de 30 anos, em Brasília, recebeu o coração; o fígado foi transplantado em um homem de Goiás e os rins em dois meninos de São Paulo, 9 e 11 anos. “Duas crianças que deixaram de fazer hemodiálise”, completa Anita. Para a auxiliar de costura, o marido Welton e o filho Stênio, Amanda vive em outras pessoas. É o que Anita faz questão de dizer quando é chamada para falar do gesto da família. “Ela aproveitou muito seus 15 anos. Era uma pessoa alegre, cativava a todos, amava ler e sonhava em fazer faculdade em Brasília para se tornar uma juíza. É exatamente lá que o coração dela bate agora.” No Brasil, para ser um doador de órgãos, basta manifestar o desejo aos familiares para que, em caso de morte, haja a autorização. Corrida contra o tempo para salvar vidas Katiuscia Christiane explica que nas palestras costuma falar sobre a questão da logística que envolve o processo de doação de órgãos, desde o momento em que a morte encefálica é notificada até o transplante. Como exemplo, ela cita o caso mais recente, das quatro doações em um único dia no início do mês. “Soubemos que o Aeroporto Santa Genoveva fecharia de meia-noite até as 4 horas para obras. Havia uma equipe de médicos de Anápolis que precisava pegar o avião da casa militar para buscar órgão em Santa Helena e o da FAB chegando com a equipe do coração. Tivemos de negociar com o aeroporto, avisamos que era um dia histórico e parte da pista foi aberta para manter as nossas captações em tempo hábil.”A gerente da Central de Transplantes explica que, a partir da autorização da família, há uma corrida contra o tempo. O coração, após a retirada do corpo do doador precisa chegar ao destino em quatro horas; o pulmão até no máximo seis horas; o pâncreas e o fígado em 12 horas; e o rim em até 36 horas. Somente as córneas que podem esperar um pouco mais, até 14 dias, antes de serem transplantadas. “Eu costumo dizer sempre que o ‘sim’ da família gera uma corrente de amor que contagia todo mundo. Todos começam a ajudar. É difícil ouvir um ‘não’. É um processo gratificante”, relata. Katiuscia Christine explica que há cerca de dois anos a Central de Transplantes mantém um canal aberto com o Aeroporto Santa Genoveva, com acesso exclusivo, para agilizar a movimentação dos profissionais envolvidos no transporte de órgãos. “Da mesma forma contamos com o apoio do Corpo Bombeiros e da Polícia Militar”. Hospitais públicos lideram as captações Os hospitais públicos estaduais são os estabelecimentos que mais captam órgãos em Goiás, embora este ano 42 unidades públicas e privadas fizeram notificação de mortes encefálicas à Central de Transplantes. As quatro captações de órgãos e tecidos que fizeram do dia 5 deste mês, uma data histórica, foram realizadas no Hospital Estadual de Santa Helena de Goiás Dr. Albanir Faleiros Machado (Herso), no Hospital Estadual de Anápolis Dr. Henrique Santillo (Heana) e no Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol). Todo o processo seguiu os protocolos do Sistema Nacional de Transplantes, que direciona os órgãos para os pacientes cadastrados na fila nacional.Na segunda-feira (10), o Hospital de Urgências de Goiás Dr. Valdemiro Cruz (Hugo) realizou captações de órgãos em dois pacientes que tiveram morte encefálica. Foram destinados coração, fígado e rins para receptores de Goiás e do Distrito Federal. No dia 2 de setembro deste ano, a SES inaugurou a nova unidade de transplantes do Hospital Estadual Dr. Alberto Rassi (HGG), em Goiânia, consolidando a unidade como referência regional na área. O serviço de transplantes renais do HGG, implantado em 2017, já realizou aproximadamente 700 procedimentos. Agora, avança nos transplantes de fígado, pâncreas e, em breve, fará os de medula óssea, em processo de credenciamento no Ministério da Saúde. A expectativa é de que, inicialmente, o HGG realize pelo menos seis transplantes de medula óssea e faça atendimento ambulatorial de 45 pacientes.-Imagem (1.2542129)-Imagem (1.2542128)