O estado de Goiás perdeu mais de 26 mil motoristas profissionais nos últimos seis anos. O número representa uma queda de 15% do total registrado em 2016. Para os trabalhadores e especialistas do setor, o fenômeno tem relação direta com a acentuação de dificuldades vividas pela categoria. A falta de renovação, com saídas não compensadas por novos membros, já reflete em impactos para a área, que tem diagnóstico de déficit operacional.Os dados sobre habilitações vigentes foram consultados pelo POPULAR no controle do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO). A queda de documentos válidos entre 2015 e 2021 se deu apenas entre as categorias profissionais. Nas categorias “C” e “D” as reduções foram acentuadas, enquanto a categoria “E” oscilou, sem crescimentos ou perdas expressivas (confira o quadro no final da matéria). Já as categorias A e B mantiveram a tendência de aumento anual.Para o presidente da Federação Interestadual das Empresas de Transportes de Cargas e Logística (Fenatac), Paulo Afonso Lustosa, ainda falta clareza sobre o que está causando o fenômeno, apesar de citar as dificuldades enfrentadas pela categoria. “O déficit de caminhoneiros já existe. Hoje a estimativa é de que 100 mil caminhões a mais poderiam estar viajando”, afirma Lustosa. De acordo com o programa SOS Estradas, o País perdeu 3,5 milhões de motoristas profissionais nos últimos seis anos.O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT), Jaime Bueno, diz que a redução de interesse pela área já é pauta de reuniões com empresários, que percebem com preocupação o menor número de profissionais. Para o representante, a principal razão seria a baixa remuneração. “O País vai avançando e as pessoas naturalmente vão se interessando menos por profissões mal remuneradas e indo atrás de outras”, afirma Bueno.EscolhasA profissão de caminhoneiro foi escolhida por Nilson Benedito de Oliveira, hoje com 64 anos, alguns anos antes de completar 50 anos. Morador de Itumbiara, no sul do estado, Oliveira trabalhava no extinto Banco do Estado de Goiás (BEG). Com o acerto trabalhista decidiu comprar um caminhão e seguir usando o veículo como a nova profissão. Após cerca de 15 anos , ainda que precise continuar, Benedito planeja abandonar as viagens nos próximos meses.A categoria do caminhão dirigido por Oliveira é a “C”, autorizada a dirigir veículos de carga acima de 3,5 toneladas. Com quedas acumuladas desde 2016, atualmente o estado tem 14 mil motoristas a menos da modalidade. Somando às outras duas categorias, “D” (veículos com mais de 8 passageiros), e “E”, (veículos com unidade acoplada acima de seis toneladas), o total de motoristas goianos em 2016 era de 177 mil, número que atualmente está em 150.935.A auditora fiscal da Superintendência Regional do Trabalho em Goiás (SRT/GO), Jaqueline Carrijo, atua na coordenação das auditorias do setor rodoviário de cargas e passageiros. O trabalho da coordenação é realizado há 12 anos e colhe informações que ajudam a explicar a redução do número de profissionais. Como ponto principal, Jaqueline diz que a categoria sofre com um quadro crônico de exaustão, refletindo no afastamento das novas gerações.“Nós começamos a realizar auditorias em razão da grande quantidade de acidentes graves e fatais envolvendo motoristas. Precisávamos entender a realidade desses profissionais”, explica a auditora. Como resultado, os trabalhos de auditoria identificaram casos de trabalhadores que “apagaram” no meio de viagens por exaustão ou por problemas de saúde ainda mais graves, como infarto.Os relatos colhidos pelo SRT são bem próximos aos ouvidos pela reportagem, envolvendo reclamações desde o sentimento de insegurança nas estradas, passando por noites mal dormidas, alimentação comprometida e até dificuldades para fazer necessidades fisiológicas. “Esse trabalhador se sente responsável e é responsabilizado pela segurança do veículo e da carga. Se for transporte de passageiros é a mesma coisa. Uma série de questões que sobrecarregam e vão além da preocupação com a condução do veículo”, avalia Jaqueline.Caminhoneiros reclamam de desvalorização da profissão “Estou aqui, estacionado longe do posto, porque não posso colocar perto por não ter abastecido. Lá tem mais segurança, mas eles não autorizam, mesmo com vaga”, relata o motorista Raul Rodrigues Soares, de 52 anos, morador de Rio Verde, região sudoeste de Goiás, sobre um dos exemplos da desvalorização que ele afirma ser um problema crônico. “Hoje é assim, o motorista não tem nenhum valor.”Oliveira, colega de Soares que planeja a aposentadoria nos próximos meses, também fala sobre a desvalorização. “Você chegava no posto para abastecer e tinha atenção, o cara te dava papel higiênico, sabonete, creme dental. Hoje para tomar um banho precisa pagar”, cita o caminhoneiro sobre parte dos problemas. “Os pequenos caminhoneiros estão parando porque não conseguem arrumar o próprio caminhão”, reclama agora sobre o aumento de custos, que envolvem desde a parte mecânica, passa pelos valores de pedágios e alcança a inflação do valor do diesel. O diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado de Goiás (Sindittransporte), Jaci Souza, é mais um dos motoristas que deixaram a profissão nos últimos meses. “Muitas empresas estão aceitando pessoas sem experiência diante da falta de profissionais. Aposentei, vendi, não quero mais. E do mesmo jeito vejo vários colegas escolhendo esse caminho”, relata Souza.Jornadas de trabalho superam o permitidoCom menos motoristas, as jornadas estão mais longas e superam o permitido por lei, conforme demonstram os dados de autuações feitas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em rodovias goianas. Por lei, os profissionais da área podem dirigir no máximo dez horas por dia. É vedado, porém, que o motorista dirija por mais de cinco horas e meia ininterruptas. A cada seis horas na condução, estão previstos 30 minutos para descanso.Entre janeiro e março de 2021 a PRF autuou 31 motoristas que descumpriram a regra do descanso. O número cresceu 23 vezes em 2022, saltando para 728 autuações. Com as cobranças, o uso de drogas para não dormir passa a ser “questão de sobrevivência”, como define um motorista de ônibus ouvido pela reportagem. “Se o cara não tomar nada ele vai dormir, se matar e matar os passageiros.” Na ação mais recente, a PRF em Goiás apreendeu, no dia 11 deste mês, 50 mil comprimidos da droga popularmente chamada de “Rebite”. A apreensão foi feita em Porangatu, no norte do estado. A substância é conhecida principalmente por motoristas que buscam ficar acordados por longos períodos.“Por que alguns motoristas profissionais usam droga? Por que usam álcool? É necessário olhar o que está sendo cobrado deles. A responsabilidade atribuída a essas pessoas está em um nível em que ela acaba aceitando comprometer o próprio sono para não parar”, diz a auditora Jaqueline. “Muitos motoristas não escolhem a jornada de trabalho. Ela é imposta, direta ou indiretamente”. Somados ao consumo de drogas lícitas ou ilícitas, a má alimentação, sono desregulado e pressões por diversos motivos, estão por trás de problemas de saúde graves, que são mais recorrentes na categoria. “Tudo isso gera uma sobrecarga que compromete a saúde. Colesterol, pressão alta, obesidade”, cita Jaqueline. “E também os relacionamentos familiares. São trabalhadores que se ausentam muito. Motorista não tem tempo de cuidar da própria saúde”, acrescenta a auditora. Levantamento mostra possível relação com exames toxicológicos Para o SOS Estradas, a redução verificada em Goiás de 15% no número de motoristas profissionais habilitados tem relação direta com a exigência do exame toxicológico. O procedimento exigido desde 2016, suspenso em alguns períodos, mas em vigor atualmente, obriga os motoristas a passarem por análise laboratorial de fios de cabelo a cada 2,5 anos. O exame é capaz de detectar substâncias proibidas usadas de forma constante em uma janela de até seis meses.Em levantamento, o SOS Estradas diz que a queda de habilitações das categorias profissionais está sendo a primeira da história. Rizzotto, o coordenador do programa, diz que as jornadas excessivas e má remuneração são incontestáveis, mas aponta que as reclamações sobre essas questões não são novas e por isso não justificariam a redução de motoristas. “Como que a curva muda justamente a partir de março de 2016 quando entra em vigor o exame toxicológico?”, questiona o coordenador.Caso o motorista realize o teste e seja reprovado é necessário aguardar três meses para que então passe por outro. Rizzotto diz que observa que parte expressiva dos trabalhadores, com medo do resultado, não comparece para fazer o exame, ficando sem a habilitação. “O indivíduo que vai e dá positivo é aquele que não tem mais noção do seu grau de dependência química. Ela está pagando por um exame que dará positivo. É como se um bêbado procurasse uma blitz para fazer o bafômetro e ainda quisesse pagar pelo teste”, sustenta.Os números de exames realizados em Goiás desde 2016 mostram que uma minoria é pega usando substâncias ilegais. Em 2016, no primeiro ano da exigência, 38.665 motoristas realizaram o exame e 632 foram reprovados, um índice de 1,63%. O maior pico foi observado em 2017, com 74.579 testes e 1.580 reprovações (2,15%). Neste ano, conforme demonstram os números do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), 28.439 motoristas goianos realizaram o exame e 342 reprovaram (1,2%).Nas rodovias federais que passam por Goiás, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) autuou, entre janeiro e março deste ano, 416 motoristas viajando sem exame toxicológico.Rizzotto diz que dirigir sem habilitação se tornou corriqueiro. Segundo relata o coordenador, o programa SOS Estradas já investigou diversos acidentes de ônibus em que o motorista estava sem o documento. “Não é que ele nunca tenha tido habilitação. São trabalhadores experientes na função, só que não fazem ou reprovam no exame toxicológico”, sustenta.BenefíciosAlém da obrigação legal de passar pelo exame a cada 30 meses, os motoristas de grandes transportadoras contam que as empresas os obrigam a realizar o exame a cada seis meses. Para a exigência, há brechas. Motoristas ouvidos pela reportagem disseram que é possível pagar mais caro pelo exame – que na média custa R$ 150 – para que o resultado seja manipulado.Na avaliação do SOS Estradas a obrigação do exame de forma periódica está reduzindo o número de imprudências no trânsito, além de influenciar, segundo o programa, na melhora da saúde dos motoristas. “O que a lei conseguiu constatar de motoristas sob efeito de entorpecentes os postos policiais demorariam em torno de 40 anos. Nesse tempo muitos teriam morrido”, afirma Rizzotto.“O exame é um termômetro da escravidão sobre rodas. Quanto maior o nível de positividade, maior o grau de exploração, porque aqueles que usam o fazem para sobreviver, para suportar a jornada. Só que eles acabam fazendo uma concorrência desleal com quem não usa. Isso faz com que muitos que não usam sejam empurrados para o uso. E as transportadoras sérias sofrem com a mesma coisa” acrescenta o coordenador do SOS Estradas.Impacto real ainda não foi sentidoPara o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT), Jaime Bueno, o impacto da redução de profissionais ainda não foi sentido de forma completa. “A economia do setor, principalmente pela questão da pandemia, ainda está em baixa”, diz o presidente. Mesmo assim, destaca, o empresariado volta os olhares para o problema e começa a buscar reações. “Na medida em que o empresariado e o poder público começam a perceber a tendência é de que sejam feitos incentivos e estímulos para normalizar esse quadro”, afirma Bueno. Dessa forma, o representante diz ser provável que o número de baixas chegue a um patamar de estabilidade antes de uma possível crise. Enquanto isso, as vagas para a área se amontoam. Apenas em um portal de anúncio de oportunidades ofertadas por empresas, o número de opções superava as 10 mil na quinta-feira (14). A auditora fiscal da SRT/GO, Jaqueline Carrijo, diz que a solução dos problemas, que atingem não só os motoristas, como também o setor produtivo e sociedade de forma geral, passa tanto pela valorização da categoria como pela necessidade de que o poder público se atente para as outras opções de modais de transporte, como o ferroviário. -Imagem (1.2443307)