-Imagem (1.2385749)Corumbá, dezembro de 1948. O rio que empresta nome à cidade descia caudaloso, arrastando tudo. Poeta e escritor, Benedito Rocha precisou conciliar os deveres de pai e prefeito naquela úmida véspera de Natal. Os esforços contra a chuva, semelhante à que hoje atormenta os goianos, foram comoventemente narrados no texto abaixo, que O POPULAR publica na esperança de um amanhecer de sol para todos.A ENCHENTE(Benedito Rocha) Foi um Natal triste aquele. Fazia já uma semana que chovia miúdo, sem cessar, e, véspera da data magna da cristandade, desde a manhã, a chuva caiu a cântaros. Aproveitei uma estiagenzinha, à tarde, para ir a uma casa de brinquedos. Agasalhei-me bem, meti um par de galochas nos pés e enfrentei as enxurradas ruas acima, a fim de abastecer-me do indispensável para os presentes aos garotos. Enquanto um dos empregados da loja embrulhava os brinquedos por mim adquiridos, alguém bateu-me ao ombro. Viera chamar-me às pressas, pois o rio que corta a cidade subia assustadoramente, ameaçando destruir tradicional ponte de madeira, de cuja guarda era eu o responsável. Paguei às pressas a mercadoria, e, pretextando voltar à noite para apanhar os embrulhos, desci rumo da ponte. Seria melhor assim, pensei comigo, porquanto à noite poderia entrar em casa com os embrulhos, sem ser pressentido.No local da ponte já havia u’a multidão de curiosos presenciando o espetáculo da enchente, que era deveras impressionante. O rio, outrora tão manso, de águas cristalinas, gorgulhando marulhoso entre pedras e bancos de areia, rugia agora raivoso, a massa líquida enorme e suja, a corrente violenta e arrebatadora, carreando grossos troncos de árvores que iam encravar-se entre os esteios da ponte. E crescia a olhos vistos. Em breve alcançaria as casas marginais e atingiria o gradil da ponte que, embora sólida, caprichosamente construída com ótima madeira de lei, por certo não suportaria a força indômita das águas procurando romper o dique formado pelo acúmulo de troncos ali encalhados.Não havia tempo a perder. Convoquei imediatamente todos os homens de que dispunha e obtive ainda do Delegado de Polícia o concurso dos detentos recolhidos à Penitenciária local. Dentro de pouco, dezenas de homens musculosos lutavam denodadamente para salvar aquele monumento histórico, indispensável à vida da cidade, uns prendendo a ponte com grossos cabos de aço, outros laçando e arrastando para as margens os troncos ali encravados, de maneira a desobstruir o açude formado e permitir curso livre às águas revoltas. Era um trabalho insano, que requeria coragem e sangue frio, pois o menor descuido poderia ocasionar tremenda catástrofe. Eu me desdobrava em mil atividades, dirigindo o trabalho e tomando todas as providências que o momento exigia.Por mal dos pecados, ruíra, com a enchente, a barragem da usina elétrica, ficando a cidade às escuras. Já era noite e alguns caminhões, com seus motores funcionando, foram postados em frente à ponte, para iluminá-la com os faróis acesos.Da janela de nossa casa, que ficava logo acima, minha família presenciava, aflita, a luta contra a enchente. As horas passavam e o trabalho continuava sem resultados satisfatórios. A violência das águas era superior à nossa coragem e aos recursos de que dispúnhamos.Vendo que os homens, sobre a ponte, já tinham as águas à altura do peito, compreendi que seria temeridade insistir mais. Ordenei a retirada, e, apenas regressava à margem o último trabalhador, um ruído surdo se fez ouvir no meio do rio, que se espichou vitorioso leito abaixo, livre agora do empecilho teimoso que lhe embargava a passagem. Ruíra a ponte.Acabrunhado com o insucesso de meu trabalho, despedi os homens e voltei para casa, molhado, cansado e faminto.As crianças já dormiam. Na Matriz, um coro harmonioso entoava a Noite Feliz. Cantavam galos nos quintais.Sob as camas, perfilados em ordem decrescente como soldados aguardando revista, os sapatinhos dos garotos esperavam, pacientes, a visita do Papai Noel. Só então me lembrei dos presentes que deixara na loja. Subi às pressas até lá, mas encontrei o estabelecimento fechado.Não posso me esquecer do desapontamento dos garotos na manhã seguinte e da vergonha que senti ante o meu duplo fracasso. Algumas das crianças chegaram à janela para disfarçar as lágrimas. Foi quando minha esposa, mostrando o rio, explicou a elas que a ponte ruíra e o velhinho não pudera passar. Mas que dormissem mais um pouco, que a enchente baixaria e Papai Noel passaria de vão. Cerrou as cortinas e os meninos caíram outra vez no sono.De fato, lá pelas 8 horas, havia sol na cidade, a enchente havia baixado e os sapatinhos estavam agora recheados de presentes...Agradecemos aos jornalistas Hélio Rocha e Ana Claudia Rocha por cederem o texto do pai ao jornal ao qual dedicaram anos de suas vidas.-Imagem (1.2385750)