A estudante Giovana Rodrigues de Araújo tinha apenas 19 anos quando foi morta pelo ex-companheiro Ryan Lucas Silva de Souza, de 18, em novembro de 2021. O crime ocorreu no bairro Independência Mansões, em Aparecida de Goiânia, depois que a jovem voltou de um passeio com amigas, o primeiro que fez após o fim do relacionamento que durou um ano e meio. Giovana entrou para a estatística do tipo de violência que mais cresce em Goiás desde 2018, o feminicídio. Os registros de todas as outras modalidades caíram no período, segundo dados do Observatório de Segurança Pública, da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás (SSP-GO).De 2018 a 2021 o crescimento de casos de feminicídios em Goiás foi de 50%. Diante da relação conturbada em razão do ciúme exagerado por parte Ryan, Giovana voltou para a casa da mãe, a diarista Rosyneide Rodrigues de Araújo, de 44, e tentou seguir a vida. Ela estava feliz, trabalhando como auxiliar de costura para ajudar no orçamento doméstico. Logo que voltou do passeio à Fazenda Jaboticabal naquele sábado, 15 de novembro, aceitou conversar com o ex-companheiro perto de casa. Ao se aproximar do carro, foi recebida a bala. Os disparos a feriram mortalmente no tórax e na cabeça.Giovana não foi a única. Em 2021, segundo a SSP, 54 mulheres foram assassinadas em Goiás por sua condição de gênero, dez a mais do que no ano anterior. Desde 2015, essa qualificadora de homicídio foi instituída no Brasil pela Lei 13.104 quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A nova legislação alterou o Código Penal e a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), para incluir o feminicídio na lista. Desde então, o crime de homicídio simples tem pena de seis meses a 20 anos de prisão, e o de feminicídio, de 12 a 30 anos de prisão.A rigidez da legislação não alterou o cenário histórico de violência contra a mulher no Brasil. Segundo a plataforma digital Violência contra as Mulheres em Dados, do Instituto Patrícia Galvão, desde que a Lei do Feminicídio entrou em vigor, os casos no País aumentaram 62,7%. Pesquisa realizada entre setembro e outubro do ano passado pelo instituto a respeito das percepções da sociedade sobre feminicídios no Brasil mostrou que para 93% das 1.503 pessoas entrevistadas em todo o Brasil, os casos aumentaram nos últimos cinco anos. E para 86%, os feminicídios ficaram mais violentos e mais cruéis.Em junho do ano passado, em Inhumas, na região metropolitana de Goiânia, inconformado com o fim do relacionamento, Jovair de Souza Vieira Junior, de 27 anos, perseguiu por três meses a ex-namorada Luana Dias da Silva, de 32, mãe de duas crianças. Horas antes de invadir sua casa e matá-la, ele enviou a ela uma fotografia portando uma arma com o recado: “Hoje tem surpresa”.Para a titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Goiânia, Ana Scarpelli de Andrade, os autores de feminicídios costumam justificar a violência à perda de controle da posse sobre a mulher, pelo menosprezo. “Um comportamento que é inerente a uma sociedade habituada a delegar às mulheres papéis sociais secundários.”Para a delegada da Polícia Civil, os números crescentes de feminicídio em Goiás podem estar relacionados a um maior rigor nas investigações, que qualificam a ação como sendo motivada em razão da condição de gênero. No fim do ano passado, o governo federal lançou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio e, segundo Ana Scarpelli, Goiás já aderiu à rede. “Desde o dia 7 deste mês estamos realizando a Operação Resguardo 2022, com encerramento previsto para 8 de março, Dia Internacional da Mulher. As ações estão focadas na apuração de denúncias, realização de visitas às vítimas, conclusão de inquéritos policiais em curso e cumprimento de mandados de busca e apreensão e de prisões.”RelaçãoO Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio tornou-se realidade após a constatação, em várias instâncias, do aumento da violência contra a mulher a partir da pandemia da Covid-19 em todo o território brasileiro. Os números do Observatório de Segurança Pública de Goiás mostram que o estado segue a tendência nacional. Em 2020, quando o isolamento social foi imposto, uma mulher foi morta a cada sete horas no País, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em Goiás, entre 2020 e 2021, 98 delas perderam a vida pelo simples fato de serem mulheres e, no ambiente, que deveria ser de proteção, o seu próprio lar.Pesquisadoras defendem prioridadeDoutora em Ciência Política e integrante do Núcleo de Estudos Sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Raiany Mariano dos Santos reforça que se ficar em casa era uma alternativa para se proteger do coronavírus (Sars-CoV-2), o espaço doméstico tornou-se um local inseguro para as mulheres, principalmente as negras que ocupam vagas informais ou postos com salários mais baixos. “Os números em Goiás indicam que a pandemia teve efeitos perversos na vida das mulheres e a prevenção a essa violência talvez não tenha sido uma prioridade.”Raiany Mariano lembra que o Brasil possui uma legislação avançada, mas não prioriza o combate à violência contra as mulheres. Ela cita, como exemplo, o fato de que no primeiro ano da pandemia o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos gastou menos de R$ 66 mil na Casa da Mulher Brasileira, uma estratégia do governo federal para reduzir a violência contra a mulher. “É um valor irrisório. Precisamos de investimento nos aparelhos públicos e nos serviços especializados. Precisamos de acolhimento e proteção às mulheres que sofreram violência e isso precisa ser priorizado.” A socióloga não é otimista em relação ao Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio. “Há um ano a ministra Damares Alves anunciou este plano, prevendo que ele seria implementado em março de 2021. O fato de o decreto ter sido publicado recentemente, próximo do último ano do governo, um ano de eleições, mostra que a pauta não é prioritária. Além disso, o governo de Jair Bolsonaro tem uma visão muito restrita sobre as desigualdades de gênero.”FragilidadeNa quinta-feira (17), em entrevista ao Instituto Patrícia Galvão, a doutora em Demografia, Jackeline Romio, uma estudiosa da violência contra as mulheres que atua nas Nações Unidas, disse que a pandemia aumentou os tipos de vulnerabilidade em saúde e muitas lacunas que já existiam foram expostas, como os conflitos domésticos e a ausência de serviços públicos de atenção às mulheres vítimas de violência. “A mulher precisava fazer uma denúncia, o mecanismo estava fechado e ela não teve um caminho alternativo. Houve uma interrupção dos serviços.”Para a pesquisadora, as violências de gênero nunca são isoladas, mas multiplicadas, se somam à violência racista e de classe social. “Quando se é mulher, negra, pobre e periférica, a chance de feminicídio é aumentada em razão do local onde ela vive, normalmente distante do equipamento de segurança pública, da dificuldade em conseguir advogado ou ter acesso às informações para fazer denúncias ou ainda para conseguir uma medida protetiva. Algumas mulheres estão mais distantes de conseguir a proteção do estado.” Jackeline Romio salienta que levará alguns anos para que o Brasil tenha noção do impacto da pandemia da Covid-19 sobre a violência contra as mulheres.Registros em unidades do SUS confirmam aumentoMaria de Fátima Rodrigues, coordenadora da Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), que é vinculada à Superintendência de Vigilância em Saúde (Suvisa), da Secretaria Estadual de Saúde (SES) confirma que houve um aumento substancial no último ano de casos atendidos no Sistema Único de Saúde (SUS), em Goiás, envolvendo violência contra as mulheres. O Observatório de Segurança Pública revela que, em 2018, foram registrados 2.976 casos de lesão corporal contra mulheres, número que cresceu assustadoramente nos anos seguintes, passando para 10.541 (2019), 11.019 (2020) e 10.782 (2021). Segundo a coordenadora do Viva, no primeiro ano da pandemia, os registros nas unidades de saúde caíram em comparação a 2019 em razão do temor da contaminação e da falta de acesso ao sistema de saúde, que ficou muito voltado ao atendimento de casos de Covid. Entretanto, voltaram a subir em 2021. Das 11.203 notificações de violências registradas no Sistema de Informação de Notificação de Agravos do Ministério da Saúde (Sinam), em Goiás, no ano passado, 73% foram de violência cometida contra mulheres. “A mulher passou a ficar mais perto do agressor, muitos perderam o emprego, outros começaram a trabalhar em casa e aumentou o consumo de bebida nos finais de semana. São hipóteses que podem justificar o crescimento das violências”, afirma Maria de Fátima. Pelos dados do Sinam, 74,20% das mulheres atendidas no SUS em Goiás por violência doméstica em 2021 estão na faixa etária entre 20 e 39 anos. A residência da vítima foi o local das agressões em 69% dos casos, seguida de via pública, com 8,95%. InformaçãoMaria de Fátima Rodrigues explica que o Viva monitora o banco de dados de violência a partir dos registros nas unidades de saúde, e produz as informações que são encaminhadas para os demais órgãos estaduais e gestores municipais para a implementação de políticas públicas de prevenção e atenção. “Quem está na ponta precisa enxergar a violência porque as vítimas não costumam falar. A maioria das violências é praticada por familiares. Por isso, capacitamos os profissionais do SUS para ele notificar.” Leis retrógradas ainda persistem para tratar do assuntoApesar do surgimento da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, que aumentaram a visibilidade no Brasil para os crimes de gênero, o País ainda convive com legislações retrógradas. Tramita no Senado Federal um projeto de lei de autoria da senadora Zenaide Maia (PROS-RN), que altera o Código Penal e o Código de Processo Penal, de 1940 e 1941, respectivamente, para excluir o uso em júri do argumento de legítima defesa da honra, em casos de acusados por violência doméstica e feminicídio. Para a senadora, ainda é comum a vítima ser apontada como responsável pelas agressões sofridas e por sua própria morte, enquanto seu acusado é transformado em “heroico defensor de valores supostamente legítimos”.Em novembro do ano passado o Senado Federal aprovou projeto da senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO), que cria o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Feminicídio, Estupro, Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A ideia é que a ferramenta seja um instrumento de cooperação entre União, estados, Distrito Federal e municípios para uniformizar e consolidar informações que contribuam com as políticas públicas de combate à violência contra a mulher. Pelo projeto, o banco de dados será mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A proposta precisa ser analisada pela Câmara dos Deputados.-Imagem (1.2405584)-Imagem (1.2405585)