A substituição de lanches panificados por refeições e o aumento do volume na produção dos alimentos são algumas das medidas adotadas pelas instituições de ensino públicas goianas para driblar o aumento da demanda dos estudantes por comida. Com o avanço da fome no Brasil, cresceu o número de crianças e jovens que têm no prato de comida servido nas escolas a sua única refeição do dia.Mesmo com a inflação acumulada dos últimos 12 meses girando em torno de 11%, o valor do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que repassa dinheiro para a compra da merenda, não tem reajuste desde 2017. Em Goiás, o governo estadual teve que triplicar o repasse para a alimentação escolar de 2021 para 2022. Em Goiânia, no mês de abril, a Secretaria Municipal de Educação (SME) autorizou um aumento de 40% na contrapartida da Prefeitura para a compra da merenda.Na última semana, uma pesquisa divulgada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) mostrou que, atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, de acordo com o levantamento. Além disso, seis a cada dez brasileiros, ou seja, 125,2 milhões de pessoas, convivem com algum grau de insegurança alimentar. Isso tem refletido diretamente na alimentação escolar.Uma das líderes da Central Única das Favelas (Cufa) em Aparecida de Goiânia, Ana Carla da Silva diz que a explicação para o aumento da demanda por merenda é simples. “A pobreza aumentou e, consequentemente, a merenda que serviam já não é suficiente. Com a pandemia da Covid-19 e o aumento do preço das coisas, as famílias que já eram vulneráveis estão em situação ainda mais delicada. Por isso, muitas dessas crianças comem quase que exclusivamente na escola”, diz.A diretora da Escola Municipal Dom Fernando Gomes dos Santos, em Goiânia, acompanha de perto essa realidade. “Essa semana mesmo, um aluno de 8 anos do turno vespertino passou mal porque não tinha comido. Nesses casos, o que fazemos é dar o lanche mais cedo para essa criança e acionar o Conselho Tutelar para investigar melhor o que essa criança está vivendo fora da escola”, explica Déborah Pereira.De acordo com ela, a escola já tende a oferecer refeições com mais sustância nas sextas e nas segundas-feiras. “Partimos do pressuposto que elas podem não conseguir ter acesso a comida no final de semana. Nas quartas também servimos refeições e nas terças e quintas panificados mais reforçados como, por exemplo, pão com carne moída. Além disso, temos nossa horta que ajuda muito (leia mais na página 15). Percebemos um aumento da demanda. Muitas crianças estão com mais fome. Também cresceu a quantidade de crianças repetindo.”Contrapartida Em Goiânia, a rede municipal oferece cinco refeições nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs), três nos colégios integrais e uma nos colégios regulares, dinâmica que é reproduzida pela rede estadual nessas últimas duas modalidades de ensino. O secretário municipal de Educação da capital, Wellington de Bessa, diz que ao longo de 2020 e parte de 2021, enquanto as crianças estavam tendo aulas remotas, foram entregues kits para serem consumidos em casa. “No retorno das aulas presenciais percebemos esse aumento da demanda e da repetição, especialmente em bairros mais periféricos.”Atualmente, a Prefeitura recebe R$ 12 milhões por ano do Pnae. A contrapartida municipal prevista era de outros R$ 12 milhões. Entretanto, em abril, o valor teve um aumento de 40% e chegou a R$ 16,8 milhões. Na capital, o recurso repassado para as escolas para comprar alimento é descentralizado. Isso permite que, seguindo o cardápio indicado, a direção de cada escola use a verba para comprar os alimentos onde achar mais adequado. Além disso, os valores per capita repassados não são engessados. “Se precisar de mais, a gente faz o aporte. É só a diretoria entrar em contato com a SME explicando os motivos”, relata Eder Machado, gerente de Alimentação Escolar da pasta.Em Anápolis, a contrapartida da prefeitura também representa a maior parte do valor gasto com a merenda escolar. De janeiro a maio deste ano, foram gastos R$ 528,7 mil do Pnae e outros R$ 906,9 mil da prefeitura, o que representou 63% de todo o valor destinado à alimentação escolar do município. De acordo com nota enviada pela SME de Anápolis, com o retorno das aulas presenciais e o aumento da vulnerabilidade social, se “notou a necessidade de aumentar o número de refeições completas ofertadas semanalmente nas unidades, com preparações de arroz, feijão, carne, salada e legumes, e uma porção de fruta.”Além disso, a pasta informou que “se antes da pandemia, eram ofertadas aos estudantes do ensino fundamental até duas refeições por semana, intercaladas com lanches nos demais dias, hoje são servidas entre quatro e cinco refeições completas, reduzindo a oferta de lanches como pães, sucos e biscoitos. Para os estudantes dos CMEIs e escolas rurais, são servidas diariamente refeições completas e nutricionalmente balanceadas.” Em Aparecida, a oferta de mais refeições em detrimento dos tradicionais panificados também aconteceu.Na rede estadual, o aumento ocorreu no final de 2021. No último ano foram destinados R$ 45 milhões. O total previsto para 2022 é de R$ 139 milhões. O reajuste médio é de 300%, sendo maior nas escolas parciais e menor nas escolas integrais (veja quadro na página 14). Todos esses aumentos levam em conta também a elevação da inflação. No estado, o recurso também é descentralizado. “Percebemos que a vulnerabilidade aumentou. Nossa orientação para as escolas tem sido para deixar os alunos repetirem a vontade. Sabemos que muitos estudantes vão para a escola para se alimentar”, finaliza Patrícia Coutinho, superintendente de Organização e Atendimento Educacional da Secretaria Estadual de Educação (Seduc).Educação mapeará alunos mais vulneráveis à fomeA Secretaria de Estado de Educação (Seduc) iniciará na próxima semana um teste de aceitabilidade sobre a merenda escolar. O intuito, além de verificar a qualidade da merenda que está sendo ofertada, é mapear as unidades de ensino que possuem alunos em situação de vulnerabilidade alimentar. “Também estamos com um projeto de ter um cardápio especial nas sextas-feiras, sempre olhando para o valor nutricional”, diz Patrícia Coutinho, superintendente de Organização e Atendimento Educacional da Seduc.A intenção da Seduc é que a pesquisa aconteça todos os meses por meio do Portal NetEscola. “Fazer essa sondagem já é uma orientação do Ministério da Educação, por meio de amostragem. Entretanto, devido ao contexto, queremos que ela seja ainda mais aprofundada. Vamos colocar uma lupa e entender a realidade de cada unidade. Serão feitas perguntas como, por exemplo: Você gosta do lanche da escola? No que ele pode melhorar? Qual seu alimento preferido.”Além disso, a pasta também procura diagnosticar, por meio da pesquisa, quem são os alunos em situação de vulnerabilidade alimentar. “Vamos perguntar quantas refeições eles fazem por dia e quantas delas são na escola. Assim, conseguiremos traçar o perfil de cada aluno e pensar em estratégias específicas para a realidade daquela unidade escolar”, explica Patrícia. O governo estadual já possui o programa Mais Merenda, que tem como objetivo oferecer um lanche extra às crianças, além da merenda que já é ofertada.De acordo com a superintendente, em agosto a pasta também vai fazer uma avaliação nutricional dos estudantes. “Vamos ver peso, altura, tudo. Assim conseguiremos traçar estratégias mais assertivas no combate à desnutrição e à obesidade”, explica. Na rede, os recursos repassados pelo governo federal e pelo governo estadual são descentralizados, o que permite que as escolas tenham uma certa autonomia para definir quais as melhores ações e alterações de cardápio levando em consideração a realidade de cada unidade.Em relação ao cardápio especial às sextas-feiras, Patrícia explica que a intenção também é motivar os estudantes. “Eles chegam ao final da semana cansados. Ter um lanche diferente é um atrativo a mais para eles irem e permanecer na escola. Sabemos que nosso intuito final é que esses estudantes vão até a escola para estudarem, mas não podemos negar que a alimentação acaba sendo uma forma de contribuir para a permanência deles.”Entre 2021 e 2022 o governo estadual fez um reajuste médio de 300% no repasse para a compra da merenda escolar. Esse aumento, a pesquisa de aceitabilidade e mudanças no cardápio são estratégias adotadas para amenizar o cenário de fome que tem sido diagnosticado entre os estudantes. “É nossa função proteger e cuidar desses estudantes. Como eles vão conseguir ter um aprendizado de qualidade se não tem o básico que é a alimentação?”, afirma Patrícia.Mães de alunos reclamam de falta de repetiçãoMães de estudantes da rede municipal de Educação de Aparecida de Goiânia reclamam que as crianças estão chegando em casa com fome. Elas admitem que a quantidade de comida fornecida em casa diminuiu devido ao aumento do preço dos alimentos, e pedem que o município tenha um olhar sensível para a situação.“Não diminuiu a quantidade oferecida nas escolas, mas também não aumentou. Como eles estão comendo menos em casa, ficam com fome”, relata Ana Carla da Silva, uma das líderes da Central Única das Favelas (Cufa) em Aparecida de Goiânia.De acordo com ela, já foram recebidas várias reclamações de pais de estudantes da rede municipal em relação à alimentação escolar.“O que falam é que o alimento lá é contado. O café às vezes é um copo de leite e biscoito. O almoço é bom, mas não tem direito a repetição. Antes da pandemia e do aumento da pobreza, essa quantidade de comida até dava. Agora, não dá mais. O poder público tinha que entender que a situação mudou. As mães não estão conseguindo alimentar bem as crianças em casa.”A garçonete Nayara de Souza, 29 anos, é mãe de quatro filhos. Dois deles, de 12 e 8 anos, estudam em escolas municipais de Aparecida e outros dois, de 5 e 2 anos, estudam em Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs).“Eles chegam em casa com fome. Muitas vezes, não tenho nada para dar para eles e tenho que pedir ajuda para minhas vizinhas. Minha filha de 8 anos está com anemia porque não come bem.”Nayara é mãe solo e mora na ocupação Norberto Teixeira, em Aparecida. Devido à pandemia, ela ficou sem trabalhar muitos meses, sobrevivendo de auxílios do governo e de doações.“As doações quase acabaram. Voltei a trabalhar, mas gasto com outras coisas, como fralda. Consigo comprar só o básico: arroz, feijão, óleo, macarrão. Muitos dias eles chegam e casa falando que só comeram peta ou biscoito.”Mãe de cinco filhos, Claudia de Carvalho, de 35 anos, está desempregada. Quatro dos seus filhos estudam na rede estadual. De acordo com ela, faz parte da rotina chegarem da escola com fome.“A gente vê a escola como um lugar que vai nos ajudar a reforçar a alimentação deles. Não é fácil alimentar cinco crianças. Ver que eles chegaram em casa e estão com fome, passaram o dia com fome, é muito triste. Dói.”Apenas o esposo trabalha e que ela não tem condições de mandar lanche para os filhos comerem na escola. “Também não acho justo. Pensa se meu filho leva um pão com manteiga para comer e outra criança estiver lá, com fome, vendo isso. Todos devem ter direito a comer bem e com qualidade. O que meus filhos dizem é que a tia merenda fala que não pode repetir, pois a comida não dá para todos”, diz.SMEA Secretaria Municipal de Educação (SME) de Aparecida de Goiânia informou que a alimentação escolar na rede é custeada pelo Tesouro Municipal e subsidiada em cerca de um terço com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Os repasses do governo federal são feitos mensalmente e levam em consideração a quantidade de alunos apresentados no Censo Escolar do ano anterior, de acordo com cada modalidade escolar.“Neste ano, o aumento dos gastos com a alimentação escolar por parte da prefeitura foi de cerca de 20% em relação a 2021, porque houve um aumento na quantidade de alunos matriculados”, diz a SME em nota. Atualmente, é gasto em torno de R$ 1,1 milhão.A rede conta com 49,2 mil alunos, contra 44,1 mil alunos no ano passado. A SME arca com a maior parte dos gastos referentes à alimentação escolar e faz entregas diretas nas escolas de mercearia, hortifruti, panificados, carnes e frios.A pasta comunicou ainda que “o que modificou neste ano em relação aos anos anteriores foi que as escolas, observando o aumento da vulnerabilidade alimentar, orientadas pelo Departamento de Alimentação Escolar da SME, mudaram o cardápio, inserindo nele mais refeições em detrimento dos tradicionais panificados.”Uma das nutricionistas da rede, Thais Marielly, informou que não há problemas com repetição. “O que acontece é que o cardápio é seguido pela ficha técnica e a per capita de alimentos. Então acontece de algumas vezes não sobrar a refeição ou lanche daquele dia, até mesmo para evitar o desperdício. Porém, como a alimentação é para o aluno, a merenda escolar atende as necessidades nutricionais dele e todos têm direito a se alimentar. No caso de sobrar, o aluno tem direito à repetição.”A nutricionista diz ainda que o padrão de alimentação da rede é o mesmo de antes da pandemia. “No ensino infantil são oferecidas cinco refeições. No ensino fundamental integral são oferecidas quatro refeições. Na educação fundamental parcial é ofertada uma refeição sendo três vezes na semana refeições feitas no panelão e no máximo duas vezes na semana a oferta de panificados”, diz.Estudantes levam alimentos de hortas escolares para casaEm Goiânia, a horta escolar tem tido um papel imprescindível para complementar e enriquecer a alimentação escolar e também ajudar na alimentação dos estudantes em casa. Todas as 374 escolas de Goiânia possuem uma horta.A prioridade do uso dos alimentos é na unidade, mas os excedentes também estão sendo levados para casa pelos alunos. “Aqui mesmo plantamos de tudo. São 20 canteiros. Temos couve, alface, cenoura e até amendoim”, diz Déborah Pereira, diretora da Escola Municipal Dom Fernando Gomes dos Santos, no Residencial Goiânia Viva.A técnica em enfermagem Heloisa Santos, de 31 anos, tem um filho de 7 anos que estuda na Escola Municipal Dom Fernando e diz que é um alívio quando ele chega em casa com algum alimento da horta escolar.“Aqui em casa não passamos por nenhuma necessidade. Graças a Deus, conseguimos alimentar bem as crianças. Porém, tem sido mais difícil conseguir comprar variedade”, explica.De acordo com ela, com o aumento do preço dos alimentos, não é possível mais fazer grandes compras de verduras e legumes variados, ainda mais orgânicos, como são os das hortas escolares da capital.“Já achei pé de alface a R$ 10. Então, é de muita ajuda assim. Atualmente, tem feito diferença na alimentação da nossa casa e garante uma diversidade no prato.”Até meados de 2021, apenas 100 escolas da rede tinham horta. Entretanto, com o envio de mudas por parte da Secretaria Municipal de Educação (SMS) e o retorno das atividades presenciais, que possibilitou que o cuidado diário dos canteiros fosse retomado, o número cresceu.“É uma experiência muito positiva. Os alunos plantam, cuidam, colhem e comem. Participam de todo o processo. Isso é de uma riqueza pedagógica imensa”, afirma a diretora da Escola Municipal Dom Fernando.Nutricionista destaca prejuízos da má alimentação infantilUma má alimentação, especialmente durante a infância, pode trazer prejuízos permanentes para a aprendizagem de uma criança e também durante a vida adulta. “Nessa fase do desenvolvimento infantil, existe uma quantidade de nutrientes e minerais que precisa ser alcançada para evitar um quadro de desnutrição”, explica Danielle Mendes, nutricionista infantil e escolar. “Os prejuízos são vários. Além do déficit de aprendizagem e desnutrição, eles podem ter problema no desenvolvimento do sistema cognitivo, de déficit de atenção, concentração e memória. Sem dúvida o potencial neurológico deles ficará aquém do que poderia ser”, esclarece a nutricionista.Danielle diz ainda que o fato de muitas crianças ficarem sem comer por longas horas e fazerem a única alimentação na escola também é prejudicial. “Na escola onde trabalho, elas fazem sete (refeições). Ficar muito tempo sem se alimentar interfere diretamente na janela de desenvolvimento dessas crianças.”Considerando as circunstâncias atuais, a nutricionista considera que medidas, como aumentar a quantidade de refeições em detrimento de lanches e permitir um número maior de repetições, são adequadas. “É claro que é importante manter um equilíbrio nutricional, mas temos que elencos prioridades. Nesses casos, a principal é matar a fome dessas crianças.”Leia também: - Projeto que cria medidas de apoio a vítimas de bullying em escolas de Goiás é vetado pelo governo- Estudantes de escolas públicas escrevem poemas e têm livro autoral publicado- Biólogo goiano pedala por toda América do Sul para divulgar projeto de ciências-Imagem (1.2475430)