Goiás é o Estado brasileiro que registrou o maior aumento de mortes por intervenção policial entre 2018 e 2019. O número passou de 424 para 825. Foram 401 óbitos a mais de um ano para o outro, acima do Rio de Janeiro, com 276 a mais. A reportagem teve acesso aos dados da Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) de forma não oficial. Estas estatísticas não haviam sido divulgadas até agora, porque o órgão alega ser assunto sigiloso.Goiás foi o único Estado do Brasil que não repassou estes dados para o Monitor da Violência, projeto desenvolvido por pesquisadores e jornalistas que acompanham os índices de violência no País.Em 2018, foram registradas 424 mortes de civis em ações policiais no Estado. Já em 2019 foram 825, um aumento de 95%. A variação de Goiás só não foi maior que a do Distrito Federal, que teve um aumento de 100%, passando de quatro mortes pela polícia para oito de um ano para o outro (veja quadro).Goiás também se destaca como o segundo Estado com mais mortes pela polícia em 2019, proporcionalmente à população. A taxa de óbitos do tipo por 100 mil habitantes foi de 11,8. Atrás só do Amapá, com a taxa de 15,1 e na frente do Rio de Janeiro, com a taxa de 10,5.Das 6.629 mortes pela polícia no Brasil em 2019, 12% foram em Goiás. Ou seja, de cada dez pessoas mortas em ação policial no País, uma foi em Goiás.A divulgação das informações de Goiás mudaria as estatísticas nacionais. Como foi a única unidade da federação a não repassar os dados, o Monitor da Violência divulgou em abril deste ano que o Brasil passou de pelo menos 5.716 mortes pela polícia em 2018 para pelo menos 5.804 em 2019, um aumento de 1,5%.Com a inclusão dos dados de Goiás, o número de mortos pela polícia no Brasil passa a ser 6.140 em 2018 e 6.629 em 2019, um aumento de 8%. Sem Goiás, o País tem uma taxa de 2,9 óbitos em ações policiais a cada 100 mil habitantes. Com os números completos de todas as unidades da federação, a taxa sobe para 3,3.As mortes por intervenção policial continuaram a aumentar neste ano. Entre janeiro e abril de 2019 foram 293 casos. No mesmo período de 2020 foram 337, um aumento de 15%. Só no mês de abril deste ano foram 136 mortes, quase o mesmo tanto que todo o ano de 2015, quando 141 morreram em ações policiais.HistóricoO ano de 2019 foi marcado por questionamentos de ações policiais com morte. No dia 2 de fevereiro, o estudante Kayque Danúbio, de 15 anos, foi morto dentro de casa enquanto se preparava para o trabalho, no Setor Jardim Progresso, em Goiânia. A versão policial falava em confronto, mas após investigação, a Polícia Civil classificou o caso como “repugnante execução”.Já no dia 9 de fevereiro, foi a vez de Jeferson Alves Martins, de 25 anos, morto em Aragarças, na divisa com o Mato Grosso. A versão policial também falava de troca de tiros. No entanto, o jovem enviou um áudio para a família, pouco antes de morrer, avisando que havia sido parado pela polícia.Outro caso foi o de Thiago Renato Braga, de 20 anos, morto em uma estrada vicinal no Residencial Felicidade, na capital, no dia 18 de julho. A morte foi registrada como confronto com policiais, mas testemunhas viram policiais levando o jovem em uma viatura, após abordagem. Quatro policiais suspeitos do homicídio chegaram a ser presos preventivamente.O ano de 2019 também foi o que a SSP-GO parou de divulgar ou fornecer os números de mortes por intervenção policial e de policiais mortos. A mudança na política de transparência começou em abril.Nos meses seguintes, a secretaria deixou de repassar detalhes sobre as ocorrências policiais com morte para o Ministério Público de Goiás (MP-GO). Uma portaria de 2017 obrigava a SSP-GO a repassar informações para o Grupo de Controle Externo da Atividade Policial (GCeap), vinculado ao MP-GO, em um prazo máximo de 24 horas após o óbito.Já no começo de 2020, o MP-GO mudou as atribuições do GCeap e dissolveu o órgão de fiscalização dentro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).Procurada pela reportagem, a SSP-GO disse que não vai se manifestar sobre o assunto. MP-GO abre inquérito por Estado não divulgar dadosO promotor Marcelo Celestino, da 25ª promotoria de Justiça do MP-GO, instaurou um inquérito, na última terça-feira (19), para investigar a omissão do Estado de Goiás ao ser a única unidade da federação a não divulgar números de mortes por intervenção policial.No texto da portaria que instaura o inquérito, o promotor diz que esta situação demonstra a resistência do governo de Goiás em cumprir princípios constitucionais básicos. “As informações de dados de segurança pública são de suma importância para o conhecimento público; a formulação ou correção e políticas públicas; e controle dos aparelhos policiais e a preservação da vida dos administrados”, diz trecho do documento. Ainda no texto da portaria, Celestino diz que o Estado tem uma política de extermínio de “bandidos” e que isso está visível no lema de propaganda: “Em Goiás o bandido muda de profissão, ou muda de Estado”. O inquérito também deve investigar o uso do software de estatísticas da SSP-GO. O programa que permite a visualização de indicadores criminais de forma detalhada foi adquirido em gestões anteriores da pasta por R$ 1,7 milhão, mas seu acesso não é mais permitido para o público. O caso foi revelado pelo POPULAR no dia 4 de maio.Justificativa frágilUm despacho do dia 28 de setembro da procuradora do Estado, Cynthia Caroline de Bessa, em resposta a um pedido de acesso à informação, justifica a SSP-GO não divulgar dados sobre a quantidade de policiais mortos em serviço e civis mortos por policiais. No documento, Cynthia cita como uma das justificativas, um regulamento da PM de 2015 com a definição de informações reservadas secretas. No entanto, o regulamento não tem nada relacionado à divulgação do número de mortos pela polícia. Outra justificativa usada pela procuradora é uma decisão do Judiciário de 2016, que dá aval para o sigilo de informações sobre o contingente da polícia militar. Da mesma maneira, a decisão judicial não tem nenhuma relação com a divulgação de números de policiais e civis mortos em ações policiais.A reportagem entrou em contato com a Procuradoria Geral do Estado de Goiás (PGE-GO) e pediu uma explicação da promotora sobre as justificativas que usa no despacho. No entanto, ela preferiu não se pronunciar e informou, via assessoria de imprensa, que já se manifestou no documento. “Divulgar os dados de números de mortes é a mesma coisa que divulgar número de bens apreendidos, quantidade de operações. Isso aí não é sigiloso. Sigiloso é falar o nome do policial que participou da operação, qual é a operação que está sendo desempenhada, esse tipo de coisa”, explica o promotor Marcelo Celestino. Segundo ele, se ficar comprovado que houve interpretação de não divulgar os dados, sem isso estar na lei, a atitude pode ser considerada improbidade administrativa. Celestino avalia que o Estado se negar a divulgar estes dados é uma forma de ocultar a quantidade de pessoas que estão sendo vítimas de alegados confrontos. “Às vezes nem mesmo existiram confrontos”, questiona. O promotor requisitou alguns documentos e pretende entrar com uma ação no Judiciário, para que seja determinada a divulgação dos dados de morte por intervenção policial.