O território de Goiás perdeu 71% de suas áreas de recursos hídricos naturais em 35 anos, a segunda pior perda acumulada entre todos os estados do Brasil. No mesmo período, os espaços criados artificialmente para exploração da água aumentaram125%. Para pesquisadores, a redistribuição dos recursos mostra efeitos danosos, tendo ligação direta com o agravamento dos períodos de seca observados nos municípios goianos.Os dados são do projeto MapBiomas, que realiza estudos a partir de imagens de satélites. No acompanhamento das fontes de recursos hídricos de Goiás, a constatação é da extinção de 64.591 hectares (ha) de áreas naturais na comparação das médias observadas entre os anos de 1985 a 1994 e 2011 a 2020. O espaço perdido corresponde a mais de 78 mil campos de futebol. Fosse um rio com 16 metros de largura, poderia dar uma volta completa ao redor da Terra, que tem 40 mil quilômetros.Já as áreas artificiais tiveram acréscimo de mais de 155 mil hectares comparando as médias dos mesmos períodos. O ganho de área das estruturas compostas por reservatórios e desvios de mananciais foi 240% maior que a área natural perdida. Desta forma, quando todos os números são levados em consideração, o espaço coberto por água ganhou acréscimo acumulado de 29% (veja quadro na página ao lado).O aparente acréscimo na média geral, porém, não reflete a real disponibilidade de recursos. É o que aponta o professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Diego Tarley. O pesquisador explica que o levantamento é feito a partir de imagens de satélite, conseguindo dimensionar apenas a área coberta por água e não a profundidade e vazões dos mananciais. “Olhando fotografias de duas piscinas, uma cheia até a borda e outra com água na metade, na imagem veríamos como se fossem a mesma coisa”, exemplifica.O também pesquisador do Iesa, professor Maximiliano Bayer, diz que os efeitos do aumento das áreas artificiais são mais sérios que apenas a troca de endereço da água. O especialista destaca que a redistribuição esconde a interferência no ciclo hidrológico como um todo. “O que estamos tendo é uma ampliação dos recursos hídricos superficiais artificiais em detrimento de uma redução muito mais drástica, importante e difícil de perceber dos recursos subterrâneos, dos lençóis freáticos”, aponta Bayer.DistribuiçãoNa distribuição dos recursos hídricos visíveis, as hidrelétricas compõem a maior parcela. Em 2020, o levantamento do MapBiomas mostra que o setor ocupava 227.150 hectares de superfícies alagadas, mais que o dobro de todas as outras áreas juntas: 52.774 ha entre os reservatórios, 38.187 ha de superfícies naturais e 1.114 para a mineração.Entre os municípios, os maiores detentores de superfícies aquáticas são exatamente os mesmos que abrigam hidrelétricas. Com 39.269 ha de superfície de água, Niquelândia detinha 12% dos recursos visíveis em 2020. Isso ocorre porque o município é o principal inundado pela barragem da usina hidrelétrica de Serra da Mesa.Para Tarley, a reconfiguração dos espaços de recursos hídricos acelera os efeitos dos períodos de estiagem, que em Goiás anualmente têm sido percebidos mais cedo e com mais gravidade. “Se estou represando uma parte dos afluentes, eles podem deixar de alimentar o corpo hídrico principal. Como consequência, vou ter a redução da vazão mais a frente do rio”, pontua o pesquisador.CerradoNa comparação com os dados de todo o Cerrado, os números de Goiás são melhores quando se considera área total, mas ligeiramente piores em perdas de espaços naturais. No bioma, que também está presente em outros oito estados, a superfície aquática geral teve redução de 0,5%. As áreas naturais, porém, tiveram redução de 55%, porcentual de perda um pouco menor que o observado em território goiano. As áreas artificiais ganharam acréscimo mais tímido que Goiás em porcentagem, 63,80% de aumento na média dos últimos 35 anos.As duas bacias que abastecem o bioma têm características numéricas discrepantes. Na Bacia do Tocantins-Araguaia, que cobre a Região Norte de Goiás, a maior parte da superfície de água segue sendo natural. Enquanto os recursos hídricos com essa característica cobriam 1,4 milhão de hectares em 1985, em 2020 a área ficou em 1,2 milhão. Por outro lado, as áreas artificiais foram de 266.661 para 529.530 ha.A Bacia do Paraná, que cobre a Região Sul do Estado, se mantém com a maioria de sua área com superfícies artificiais desde 1985. No dado mais antigo, 1 milhão era de área artificial, contra 428.727 de área natural. Já em 2020, a área artificial subiu para 1,3 milhão, contra 228.097 ha de área natural.Araguaia e afluentes estão mais rasosFoi por paixão ao Araguaia que o aposentado Odalmir Gonçalves de Almeida, de 65 anos, decidiu mudar de Goiânia para Aruanã há 10 anos. O gosto pelo cenário de água em abundância do lugar tira folga ano após ano durante o período de estiagem. A seca anual, porém, tem chegado mais cedo, pior e mais duradoura. Neste ano, segundo Oldamir, a duração da época sem chuvas surpreendeu a todos que dependem das águas que correm pela região.“Eu frequento o Araguaia desde 1979 e digo que neste ano a situação está crítica. Só está sendo possível navegar no leito do rio, está muito raso. Os afluentes, como o Rio Vermelho, secaram”, descreve o aposentado sobre o que tem visto nas últimas semanas. O afluente citado por Odalmir é um dos mais conhecidos pelos turistas e está completamente seco em diversos trechos.O cenário descrito no Araguaia é um exemplo do que ocorre em Goiás de maneira generalizada, afirma o pesquisador Maximiliano Bayer. O especialista pesquisa os recursos hídricos do território goiano desde 1998 e diz que, entre os vários fatores por trás do problema, está a mudança no perfil das superfícies hídricas de Goiás.Segundo Bayer, aliado ao desmatamento, que interrompe o ciclo hidrológico na etapa de infiltração da água no solo, as áreas artificiais aumentam a evaporação, refletindo no escoamento de recursos hídricos que deveriam reabastecer lençóis freáticos para manter nascentes durante todo o ano.Para a população local que depende dos recursos de forma direta, os impactos incluem a impossibilidade para a pesca e afastamento de turistas. “Os ribeirinhos que vivem do turismo estão sofrendo muito, a esperança era de que a situação já tivesse melhorado, mas até agora, nada”, acrescenta Odalmir.O professor da UFG Denis Castilho, especialista em geografia, diz que a irregularidade das chuvas explica parte do problema enfrentado, apesar de cobrar que a situação já era prevista de forma pública. Além do regime de chuvas e desmatamento, o especialista diz que a exploração ilegal dos recursos hídricos tem acelerado o processo de degradação. “Não tem barramentos no Araguaia, mas tem desvios criminosos feitos em rios em que a vazão chega a ser maior que a de muitos córregos”, expõe Castilho.AssoreamentoA situação do Araguaia tem mais uma agravante que pode confundir as percepções, destaca o professor Bayer. “Há 30 anos, se nós tomássemos como referência alguns pontos conhecidos pela maioria, nós teríamos quase uma continuidade na área na época de cheia. O problema é que esse nível nos anos de 1980 permitia uma vazão de 300 metros cúbicos (m³) por segundo e hoje não ultrapassa 100 m³”, alerta o professor.O problema destacado pelo pesquisador tem relação com o processo de assoreamento dos cursos d’água. “Naturalmente, a Alta Bacia do Araguaia tem extrema condição de transporte de sedimentos. Mas imagina um solo suscetível à erosão somado ao desmatamento e à exploração intensa. Estamos realizando uma exploração que não guarda nenhuma preocupação”, diz Bayer.Sobre o que pode ser feito para reduzir os problemas enfrentados pelo Araguaia, o pesquisador diz que não há uma receita única para toda a extensão do manancial e por isso as análises devem ser feitas separadamente. “Precisamos começar já, porque nós sabemos que as ações que tomarmos hoje terão efeitos daqui duas, três décadas”, enfatiza Bayer.Redução atípica em 2020Os números da plataforma MapBiomas, que mostram que Goiás perdeu 71% de superfície natural no acumulado de 35 anos, indicam queda atípica entre 2019 e 2020. A área, que oscilava na casa dos 60 mil hectares entre 2010 e 2019, ficou em 38 mil em 2020. Os pesquisadores consultados dizem que a diferença chama atenção e que não há resposta imediata sobre o que pode ter ocorrido. A pesquisadora Karla Faria diz que a redução entre um ano e outro é possível quando se avalia o território de uma maneira geral, porque, segundo ela, a diferença pode refletir alterações que foram pontuais nas bacias hidrográficas, mas que se somam de modo expressivo. “Não significa a construção de uma única represa, mas pode ser resultado da construção de várias represas pequenas ao longo do território, como também representar impactos a serem investigados e que demandam avaliação”, aponta Karla. Segundo a especialista em estudos ambientais, a diferença pode indicar ocorrências de drenagem dos lagos naturais e efeito temporal da implantação de atividades na bacia que comprometem a recarga hídrica e consequentemente causam diminuição da lâmina d’água nas áreas de superfície natural. Mesmo assim, Karla pontua que uma conclusão só pode ser feita após uma avaliação detalhada dos números. “Seria interessante investigar onde ocorreu essa redução”, orienta, sobre uma futura pesquisa. Goiás tem mais de 5 mil barragens sem licença ambiental, diz SemadMais da metade das barragens, as estruturas que lideram a área de superfície artificial de água em Goiás, está irregular. Os dados da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás (Semad) repassados ao POPULAR mostram que, das 10,5 mil barragens com mais de 1 hectare, 5,5 mil não têm a devida licença, que pode ser obtida por meio de umc cadastro (veja quadro).O pesquisador Maximiliano Bayer diz que o número de irregulares impede a compreensão sobre a realidade. “Não sabemos o volume, a continuidade, nem o regime de retirada de recursos por esses produtores. Faltam fiscalização e vontade política de ir de encontro a esses sistemas”, acredita.Os impactos atribuídos à mudança no perfil das superfícies artificiais e a exploração por barragens são amenizadas pela titular da Semad, secretária Andréa Vulcanis. Ela diz que a gestão registra avanços no processo de regularização das estruturas e que elas têm importância ambiental. “Uma política pública que saiu do zero em 2019 e no nosso governo ela avançou significativamente”, afirma a gestora sobre a regularização.Para Vulcanis, o agravamento dos períodos da seca não têm nenhuma relação com as barragens. Segundo a secretária, o fenômeno é reflexo da irregularidade das chuvas. “Eu posso atestar que não temos um prejuízo aos recursos hídricos construindo barragens. Nós temos uma retenção de águas necessária para o desenvolvimento da atividade econômica. Porém é preciso mitigar impactos ambientais, e para isso tem de haver medidas”, pondera. Já para o delegado titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente (Dema), Luziano Severino de Carvalho, há inegável papel da exploração no agravamento da seca. Nesta semana, Luziano visitou ao menos quatro locais da região do Araguaia e mostrou lagoas naturais e cursos de rio completamente secos por conta do uso irregular de recursos por meio de desvios dos cursos do rio ou bomba d’água colocada diretamente nos mananciais. “Hoje, para reparar, eu tenho mais burocracias que quem foi lá e degradou”, reclama Luziano. -Imagem (1.2334136)