Em Goiás, pelo menos 603.276 famílias vivem com menos de meio salário mínimo por mês, o que caracteriza a pobreza, já que um grupo com dois adultos e duas crianças, por exemplo, teria uma renda de R$ 151,5 por pessoa. Os dados são do Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal, usado para verificar quem são as pessoas com direito a benefícios sociais. Somente em Goiânia, a União aponta a existência de 59.909 famílias em extrema pobreza (com renda mensal de até R$ 89,00 por pessoa). A redução da quantidade de pessoas em situação de miséria e fome é um dos principais desafios para o Estado.Esta é a terceira de uma série de reportagens do POPULAR sobre os principais temas das eleições gerais realizadas em outubro. A primeira rodada da pesquisa Serpes/O POPULAR, publicada em julho deste ano, com relação às eleições identificou a Fome/Miséria como o segundo tema na prioridade do eleitorado goiano, com 21,2% das escolhas. Isto ocorre em um cenário no qual, neste ano, a fome crônica no Brasil atingiu 4,1% de toda a população e 15,5% dos brasileiros enfrentam insegurança alimentar grave, que é quando não há certeza se vai conseguir se alimentar no dia.O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, publicado em julho, aponta que 33 milhões de brasileiros sentem fome diariamente. São pessoas como a família de Renata Rodrigues da Costa, de 42 anos. Moradora do Setor Rosa dos Ventos, em Aparecida de Goiânia, ela mora com a filha de 17 anos, que recebe um benefício de um salário mínimo por possuir deficiência, e mais duas crianças, de 8 e 2 anos. O salário é a única renda familiar desde o início de 2021, quando Renata perdeu seu emprego de diarista.O dinheiro, no entanto, é utilizado para arcar com as contas da casa e dos filhos enquanto a alimentação só ocorre quando ela é beneficiada com a doação de alguma cesta básica. “A gente come quando tem a doação da Cufa (Central Única das Favelas em Goiás). Desde o ano passado estou totalmente parada e agora com a criança pequena é mais difícil ainda conseguir emprego, não tenho o que fazer”, conta.Ao fim do mês, ela relata que ainda falta dinheiro para comprar as necessidades básicas da família. Presidente da Cufa-GO, Breno Cardoso ressalta que reduzir a fome é responsabilidade de todos. “Enquanto a sociedade não aprender a dividir com as classes sociais menos favorecidas as riquezas que elas mesmas produzem, vão continuar colhendo essa diferença social com as elites”, afirma Cardoso.Geógrafo e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), além de coordenador do Observatório Social, Tadeu Arrais ressalta que a Constituição Federal coloca o combate à fome como prioridade e responsabilidade de todos. “É uma responsabilidade do Estado também, mesmo que a fome e a miséria se revelem em âmbito municipal. Goiás não é uma ilha e nem Goiânia é”, esclarece.Arrais explica que a redução da miséria e da fome se dá em dois âmbitos. Um deles, o mais urgente, é acabar com a fome de hoje. O segundo é a tentativa de diversificar as políticas públicas para impedir a fome de amanhã. “A primeira escala é imediata: dar comida para quem está com fome.” Neste caso, o professor entende que há duas maneiras que podem servir como políticas públicas estaduais. Uma delas é ampliar os programas de transferência de renda (como é o Auxílio Brasil e foi o Bolsa Família). Outra opção é usar as escolas. “É uma instituição capaz de ajudar no combate à fome, especialmente das crianças. Então deve impulsionar os valores de merenda escolar”, diz.O diretor-executivo da Ação da Cidadania contra a Fome, Rodrigo Afonso, movimento criado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, reforça que as unidades federativas possuem papel importante na cadeia de produção e logística dos alimentos. “Estado tem a responsabilidade de, no mínimo, fazer chegar os alimentos, como nas escolas. Nos últimos anos vemos isso sendo ignorado. Aplicar o que já existe, ter um conselho estadual de segurança alimentar é o mínimo a ser feito.”Doação de cestas escancara errosAs doações de cestas básicas por parte das instituições públicas, como estados e prefeituras, para pessoas em situação de miséria, segundo o diretor-executivo da Ação da Cidadania contra a Fome, Rodrigo Afonso, é o significado da falha solene nas políticas públicas de combate à fome no País. A realização em caráter emergencial, para casos pontuais, é diferente de uma ação contínua para pessoas em situação de fome, o que demonstra a falta de políticas para retirar as famílias desta situação.O professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Tadeu Arrais entende que em um momento de pandemia da Covid-19 e com alta de inflação não é um problema conceder as cestas básicas, desde que tenha a transferência de renda, com complemento estadual. Afonso diz que a transferência de renda sim é uma política para curto e médio prazo. “É preciso sim, pois vivemos em uma sociedade com cada vez menos empregos, sobretudo com a indústria 4.0, com automação. O agronegócio no País cresce a cada ano, mas o número de trabalhadores está estagnado há dez anos. São menos empregos e sem tempo e chance de aprender essas novas tecnologias”, avalia. Ele acredita que os estados com capacidade financeira devem complementar o programa federal de transferência de renda, o que é corroborado por Arrais. “Quanto mais recursos para pessoas necessitadas melhor, mas não pode ser em detrimento de outros programas e políticas, como saúde e educação. Fazer funcionar bem o que já existe já é um grande feito”, diz Afonso. Assim mesmo, Arrais acredita que esses programas, como Auxílio Brasil ou Bolsa Família, não acabam com a fome no Brasil sozinhos. “A saída do Mapa da Fome anteriormente no Brasil ocorreu com uma série de benefícios e ações, não só os programas de transferências, teve aposentadoria rural, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e aumento de salário mínimo.” Ele aposta em um programa contínuo de renda mínima, que não dependa da capacidade do Tesouro, e reforma tributária que consiga tirar recursos de quem tem mais e transferir a quem tem menos.O professor da UFG aconselha que o Estado de Goiás tenha uma política regional para o combate à fome e à miséria. “Há várias medidas, mas falta uma articulação para não ter sombreamento das ações. E tem de ter diferenças entre as ações. Transferência de renda com uso do recurso no comércio local no nordeste goiano tem significado diferente em relação ao sudoeste do estado.” Ele diz que o valor transferido do poder público às pessoas deveria ser diferente em cada região. “O custo nas cidades menores é diferente das regiões metropolitanas.”O diretor-executivo da Ação da Cidadania diz que essa diferença nos valores é algo que existia no Bolsa Família e deixou de ocorrer com o Auxílio Brasil, que igualou o valor a todos os beneficiados. “No Bolsa Família tínhamos os condicionantes, com o olhar diferenciado a cada família, o número de filhos, se iam para a escola, tinham de ser vacinados. Agora é tudo igual, o que gera um problema futuro para as famílias, que não possuem mais essas obrigações.”FuturoJá como solução a longo prazo no combate à fome, Arrais considera a criação de empregos como o investimento necessário das políticas públicas. Ele reforça ainda a necessidade de verificar que a fome é seguida da violência, do desespero e da intolerância. Segundo argumenta Afonso, a ação deve partir das instituições públicas, sobretudo no interior do País. “Infelizmente há agora essa visão crescente de estado mínimo, de que as coisas devem ser privatizadas, mas essa não é a solução e há séries de locais que não há interesse porque não há lucro. É preciso desenvolver o interior do País, o estado deve mostrar para onde ir.” Ele cita o investimento em infraestrutura no interior como criador de empregos e desenvolvimento para as cidades menores.Dificuldade de acesso é entravePresidente da Central Única das Favelas em Goiás (Cufa-GO), Breno Cardoso lembra que as ações da entidade durante a pandemia de Covid-19, que se notabilizou com a doação urgente de alimentos às pessoas em situação de vulnerabilidade, se deu a partir do interesse de empresas privadas em auxiliar a partir do trabalho já realizado nas periferias. “Esse é o principal diferencial do que fazemos com os programas emergenciais públicos: a dificuldade de acesso. O auxílio parte de um cadastro único (CadÚnico) e muitas vezes as pessoas que necessitam não tem como chegar a isso. Os programas até atendem quem precisa, mas não as pessoas que mais precisam”, diz.Cardoso acredita que o poder público deve ir para dentro das comunidades e periferias para encontrar as pessoas mais necessitadas e não esperar que elas realizem cadastros. “Se não tem um restaurante comunitário na periferia, como é que as pessoas vão lá no Centro para comer?”, indaga o presidente. O professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Tadeu Arrais reforça que as pessoas que moram em situação de rua ficam fora do CadÚnico e que deveria haver ação integrada entre Estado e municípios para resolver essa questão social.O diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Afonso, afirma que os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) deveriam fazer esse trabalho ativo de encontrar as pessoas que não conseguem receber os benefícios das políticas públicas. “Isso ocorria anteriormente, de fazer essa busca ativa, fazer a documentação dessas pessoas, oferecer atendimento, mas houve uma destruição dessa política nos últimos anos. São menos assistentes, que ficam nos CRAS fazendo muitos processos, com filas enormes, e quem consegue chegar até lá ainda demora ser atendido”, considera.