Pelo menos 3.767 mil multas aplicadas a motoristas que trafegavam em Goiás entre janeiro de 2021 e julho de 2022 estavam equivocadas, com problemas formais, como preenchimento errado da autuação, ou por irregularidades, como identificação equivocada do veículo. O número, no entanto, é menos de 0,3% do total de multas aplicadas aos condutores, mas demonstra a necessidade de realizar os recursos contrários às infrações quando há a certeza do não cometimento dos atos. A burocracia para iniciar os processos de questionamento das multas e a demora para o julgamento destes casos dificultam a anulação das autuações.Neste período, foram pelo menos 3.432 multas geradas pelo Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO) aos motoristas que posteriormente foram consideradas como erradas pelo Conselho Estadual de Trânsito de Goiás (Cetran-GO). Além disso, outras 335 infrações autuadas pela Secretaria Municipal de Mobilidade (SMM) de Goiânia tiveram o recurso feito pelos condutores na Junta Administrativa de Recursos de Infração (Jari) do órgão aceito, excluindo a multa. Entre janeiro de 2021 e julho de 2022 a SMM autuou 1.077.581 infrações, enquanto que o Detran-GO chegou a 126.695.O equívoco já ocorreu com a artesã Flavia Silveira de Queiroz, moradora de Senador Canedo, na região metropolitana de Goiânia, que foi surpreendida quando chegou em sua casa uma notificação sobre uma ultrapassagem proibida no quilômetro 145 da GO-330, próximo a Pires do Rio. “Nunca estive nessa rodovia, não sei nem chegar lá. Meu carro só fica em Senador Canedo ou Goiânia”, alega Flavia. A multa foi aplicada por um fiscal da Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra) no dia 15 de janeiro de 2020 e a situação até então não foi resolvida.“Somente eu dirijo o carro, só vou de casa para o trabalho e vice-versa. Trabalho na casa da minha mãe, então o carro fica estacionado na porta dela o dia todo. E posso provar isso com testemunhas, câmeras de monitoramento da cidade, câmera de segurança da casa dos vizinhos, etc, mas não adianta. O Detran e a Goinfra não fazem nada a respeito.” A artesã conta que entrou com o processo questionando a autuação, mas até hoje não houve resposta. Segundo a Goinfra, o recurso foi recebido pela Comissão de Defesa Prévia (Codep) e está dentro do prazo legal para julgamento pelo órgão.Leia também:- Motorista dirige e lê livro ao mesmo tempo em rodovia de Goiânia; vídeo- Mulher denuncia ter recebido multa por falar ao telefone em Goiânia quando estava com carro no MT - Fiscalização pretende multar motoristas que desrespeitarem ciclofaixas no Jardim AméricaEm janeiro deste ano, a jornalista Clarissa Bezerra foi multada por supostamente dirigir manuseando um aparelho celular na Rua 7 do Setor Central, em Goiânia, às 11h06, o que lhe custou R$ 293,47. Ela relata, por outro lado, que no mesmo dia e horário estava com o veículo na Avenida Paranaíba, buscando o filho no colégio. Ela apresentou o recurso de defesa prévia com a declaração da escola afirmando ser o horário de saída dos estudantes e que Clarissa esteve no local. Junto a isso, também juntou o rastreamento feito pelo Google do caminho que percorreu de sua casa, no Setor Jaó, até o colégio.Ainda assim, de nada adiantou e em março ela teve a resposta de que a multa estava mantida. A situação ainda fará com que ela perca o desconto de 50% dado pelo governo estadual no Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) aos condutores de carros 1.0 ou motocicletas até 125 cilindradas que passam o ano sem receber qualquer multa. Clarissa entende ser ilógico apresentar o recurso para o próprio órgão autuador julgar se sua ação foi correta. “Eles mesmo multam, eles mesmo julgam, não faz muito sentido”, conta e acrescenta que não passa pela rua em que houve o flagrante da infração.DefesaA advogada e presidente da Comissão de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Goiás (OAB-GO), Eliane Nogueira da Silva, relata que o grande problema das tentativas de anular as multas aplicadas equivocadamente é provar que não foi aquele veículo que estava na situação identificada pelos agentes ou aparelhos de fiscalização. “Não é fácil. O agente possui a veracidade, a fé pública. É preciso ter uma prova concreta e robusta, como imagens de câmeras de segurança do local em um caso de estacionamento irregular, por exemplo.”Ela explica que no caso de infrações verificadas por fotossensores é possível que o condutor peça as imagens e identifique, através de perícia técnica, que aquele veículo não é o de sua propriedade. Isso pode ser feito com uma vistoria em que seja capaz de identificar sinais como batidas ou amassados que diferencie os carros ou motos. “A maioria só tenta a defesa prévia e acabam pagando a multa. Os que resolvem recorrer mesmo são aqueles motoristas com problemas de pontuação na CNH (Carteira Nacional de Habilitação), mas a maioria a gente sabe que é para tentar retardar a aplicação, já que o recurso dá efeito suspensivo à multa.”Falta de notificação é argumentoO não recebimento da notificação da infração é um dos principais argumentos apontados pelos condutores goianos ao recorrer das multas aplicadas pelos órgãos autuadores em Goiás. A advogada Eliane Nogueira da Silva alerta, no entanto, que essa situação deve ser vista com atenção pelos motoristas, já que é possível, pelo sistema dos órgãos, verificar se o documento de fato chegou ao destinatário, a data, local e quem o recebeu. Outros argumentos comuns são a falha no preenchimento da autuação, como endereço incompleto ou falta de informação nos campos obrigatórios; a alegação de que o veículo foi clonado; e a contestação da fé pública do agente de trânsito, alegando que não cometeram a infração quando há abordagem. Nestes casos com relação aos agentes é comum o proprietário afirmar que não estava no local em que a infração foi cometida.Segundo a Secretaria Municipal de Mobilidade (SMM) de Goiânia, os casos que conseguem a anulação da multa são, normalmente, aqueles em que há inconsistência do auto de infração, o que é explicado pelo artigo 280, incisos de I a VI do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O que é corroborado pelo Departamento Nacional de Trânsito de Goiás (Detran-GO), que informa que o deferimento do processo se dá “se a lavratura do auto foi feita em desacordo com a legislação pertinente”.Eliane aconselha aos motoristas que se sentiram injustiçados a buscar todas as provas possíveis e ficar atentos aos documentos necessários para iniciar os processos, desde a defesa prévia e passando pela primeira e segunda instâncias de recursos. “Se foi uma multa isolada, a primeira coisa é verificar se não tem erro na identificação da placa, às vezes acontece de trocar um Q por um O ou um O por um zero, por exemplo”, diz. Ela afirma ainda que tem pedido aos órgãos autuadores para colocar mais um campo no auto de infração para o preenchimento pelos agentes com mais detalhes dos veículos, de modo que possa reduzir a chance de erro.Dois casos com a mesma pessoaCom a nutricionista Amanda Zardini, o recebimento de multas que não cometeu ocorreu em duas ocasiões distintas. A primeira foi em janeiro de 2017, quando ela e o marido estavam de férias no Rio de Janeiro e o carro ficou na garagem de casa, enquanto eles levaram a chave do veículo. Ao chegar do descanso, havia uma notificação na residência sobre uma infração cometida pelo condutor do veículo por falta de uso do cinto de segurança no município de Inhumas, a 1.354 quilômetros da capital carioca onde o casal estava.Neste caso, ela nem chegou a procurar os órgãos autuadores para tentar anular a infração. “Estava vendendo o carro quando descobri a multa em fevereiro. Aí ou pagava a infração que não era minha ou perdia a venda para esperar todo o trâmite para recorrer. Acabei pagando, infelizmente, não dava para vender com a multa em aberto.”Já em 2019, Amanda passou novamente pelo problema, mas desta vez com um final feliz. A infração foi autuada por estacionamento irregular no local em que ela trabalha. Ela relata que parou o carro no estacionamento da clínica, onde havia várias vagas de gaveta e tinha até manobrista para ajudar.“Parei o carro na segunda vaga e atrás do meu carro dava para passar um carrinho de bebê ao lado de uma cadeira de rodas, tinha muito espaço ainda. No entanto, ao lado do meu carro tinha uma caminhonete dessas grandes paradas atrás de outro carro grande, ou seja essa parte da vaga estava ocupando a área de pedestre”, conta ela.Assim, os agentes de trânsito passaram e multaram todos os carros parados na segunda vaga. “Nessa eu recorri, mandei foto, mostrei o quanto de espaço sobrava atrás do meu carro e expliquei a situação e essa multa foi retirada.”