O mês de janeiro deste ano foi o mais mortal de Goiás quando se considera o primeiro mês de cada ano de toda a última década. Entre as causas registradas pelos cartórios, os males cardíacos foram os que tiveram maior crescimento porcentual. Em números oficiais e nos relatos de médicos cardiologistas, a constatação é de que o goiano está cuidando menos da saúde do coração.Enquanto os exames como a Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial (Mapa) teve redução de 35% entre 2019 e 2020 na rede pública, o número de óbitos por enfarte e causas cardiovasculares não especificadas tiveram aumento de 15,46% (confira o quadro). Os dados sobre acompanhamento médico são do Ministério da Saúde. Já os registros de óbitos são dos cartórios.A Secretaria de Estado da Saúde (SES) indica números diferentes de incidência de enfarte, com margens mais próximas entre os anos, mas também com recorde de casos neste ano. A superintendente de Vigilância em Saúde da SES diz que com os números atuais, o Estado não observa aumento expressivo. “Temos de analisar uma série de no mínimo dez anos para ver se foi significativa ou não”, afirma Flúvia Amorim.O médico cardiologista Aguinaldo Freitas Jr. diz que vê no dia a dia a menor adesão de pacientes ao acompanhamento de rotina. Freitas Jr. é chefe do Serviço de Cardiologia do Hospital das Clínicas da UFG, um dos maiores de Goiás. Segundo o especialista, a redução dos acompanhamentos médicos se deu, inicialmente, pelo medo das pessoas de irem para hospitais durante a pandemia da Covid-19.“Deixaram de controlar suas comorbidades, de fazer o check up. O reflexo a gente veio notar já no fim de 2020”, relata o cardiologista. Entre as percepções, Freitas Jr. cita ter notado aumento de mortes súbitas de pacientes em casa, assim como uma maior incidência de enfarte. “O paciente, mesmo sentindo que alguma coisa está errada, está postergando a ida ao hospital”, aponta o médico.As mortes em razão de doenças cardiovasculares sempre foram as que mais mataram no Brasil, lembra a médica cardiologista Kecia Amorim. Diante da crise de saúde pública em razão da Covid-19, porém, o cenário ficou ainda mais agravado, destaca a especialista. Pelos registros civis, as mortes por enfarte saíram de 198 em janeiro de 2020 para 236 em 2021 e alcançaram 327 no mesmo mês de 2022. Pelo acompanhamento da SES foram, respectivamente: 210, 222 e 250.“Na minha prática clínica tanto de consultório como de pronto socorro cardiológico observo diagnósticos tardios de doenças graves como um enfarte, por exemplo, que o prognóstico depende muito da rapidez de atendimento. Quando o paciente deixa de ser atendido na ‘hora ouro’ ele perde músculo e evolui com complicações que vão desde insuficiência cardíaca até a morte”, relata Kecia, que também atribui o baixo acompanhamento ao medo das pessoas em se contaminarem no ambiente hospitalar. O também cardiologista Humberto Graner, atual presidente da Sociedade Goiana de Cardiologia (SBC-GO), ampara os relatos dos colegas e observa baixa nos acompanhamentos. “Temos atendido agora muitos pacientes cuja última consulta foi em 2019 ou começo de 2020”, aponta Graner, que alerta que apesar de já observar retomada da rotina de acompanhamento, “há um tempo perdido que não volta.”Os cardiologistas consultados pela reportagem destacaram, citando estudos, que a infecção pela Covid-19 tem potencial para causar ou agravar doenças cardíacas, o que também poderia explicar a maior incidência de óbitos por essas doenças. A médica Kecia classifica a infecção pelo coronavírus (Sars-CoV-2) como uma “tempestade inflamatória”. A especialista diz que esse fenômeno causa lesões endoteliais, fator que está relacionado ao início de doenças cardiovasculares.“Tenho visto muitos casos de enfarte, AVC, tromboses, arritmias, miocardites em pacientes em tratamento e principalmente no pós-covid, o que têm nos preocupado bastante”, relata Kecia, que informa que a SBC tem realizado educação continuada para auxiliar os médicos no manejo dos pacientes com Covid-19 ou mesmo os já recuperados. “É importante fazer os exames cardiológicos pós-covid, independente da gravidade com que aconteceu a doença.”Fora de cogitaçãoO cardiologista Freitas Jr. descarta possibilidades de que a maior incidência de mortes por doenças cardiovasculares possa ter relação com as vacinas contra a Covid-19. A relação já foi desmentida por sociedades médicas, mas ainda é utilizada por grupos que propagam notícias falsas sobre vacinas.“Absolutamente não tem nada a ver. Tanto que os fenômenos como a embolia pulmonar, derrame, AVC, são 20 vezes mais graves em pacientes que foram infectados pela Covid-19 e não se vacinaram do que naqueles infectados que se vacinaram”, aponta o especialista.Hábitos Para Freitas Jr., a pandemia também tem participação indireta no aumento de fatores de risco para as doenças cardiovasculares. “Houve um aumento do estresse emocional e dos transtornos. Hoje a gente sabe que essas questões são marcadores de risco”, diz o cardiologista, que cita como exemplo os transtornos de ansiedade.“Com isso nós também não podemos deixar de lembrar que as pessoas começaram a descontar no excesso de bebida alcoólica, cigarro, cigarro eletrônico”, destaca Freitas Jr.. Um dos dados que corrobora a fala do cardiologista é a alta de 5,3% no consumo de cerveja pelo brasileiro entre 2019 e 2020, conforme levantamento do Euromonitor.-Imagem (1.2410793)