Atualizada às 21h28A proposta de liberação da Barragem do João Leite para lazer recebeu, nesta segunda-feira (18), um número massivo de reações contrárias. O assunto foi tema de uma audiência pública presencial para discutir os Planos de Uso Público e de Manejo do Parque Estadual do João Leite (PEJol) e do Parque Estadual Altamiro de Moura Pacheco (Peamp), no Centro Cultural Oscar Niemeyer.Embora o evento tenha atraído um público restrito, os debates foram acalorados, recheados de questionamentos e de acusações sobre o interesse do governo de Goiás em transformar as Unidades de Conservação (UCs) em destino de visitação e de uso para lazer do reservatório do Ribeirão João Leite, criado para abastecimento público de algumas cidades da região metropolitana de Goiânia. Leia também:- Lago do João Leite pode ser liberado para lazer- Reservatório do João Leite chega a 98% da capacidadeAs críticas foram expostas tanto presencialmente quanto no chat disponível na transmissão do evento. O depoimento mais emocionado partiu de Everaldo Pastore, arquiteto, ambientalista, professor e consultor, que criou a Associação para Conservação e Recuperação do Meio Ambiente (Arca). Ele, que por mais de dez anos contribuiu para a elaboração do plano de manejo da Área de Preservação do Ribeirão João Leite, perguntou, em lágrimas: “Não conseguimos ter juízo nem um dia?” Everaldo Pastore lembrou que os parques também foram criados para proteger a vegetação. “O uso público tem de ser contido e respeitoso. Essa área é sagrada!”A arquiteta e urbanista presidente da Arca, Maria Ester, foi dura em sua posição relativa à proposta. “Autorizar o uso do reservatório será um desastre.” Servidores da Saneago e técnicos sanitaristas pontuaram que a preservação está sendo colocada em segundo plano. “Esse reservatório é prioritário para o abastecimento público. Não pode ser um detalhe nesse estudo. Não temos garantia dessa priorização. O abastecimento público é colocado no mesmo nível do turismo”, afirmou a química e advogada Leda Portela, que atuou na companhia por 39 anos, chegando à gerência de qualidade. Representante da Associação Brasileira de Engenheiros Sanitaristas (Abes), do Sindicato dos Engenheiros e dos comitês das bacias do Meia Ponte e do Paranaíba, Henrique Luiz reforçou o apelo para o cumprimento da função de origem da barragem. “Nós pedimos que o uso da nossa caixa d’água seja restrito para contemplação, uso zero para turismo. Se morrer alguém afogado, haverá a piada: ‘vamos beber o defunto’ ”.O direito ao meio ambiente equilibrado e o respeito à dignidade da pessoa humana, previstos na Constituição Federal, foram lembrados pela advogada e presidente da Associação dos Moradores do Setor Jaó, Adriana Dourado. “Até quando vamos lutar com o poder público para preservar nossas águas, nossas nascentes?”RepresentaçãoA titular da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Andréia Vulcanis, foi representada por Mariana Lima Moura, superintendente de Unidades de Conservação e Regularização Ambiental da Semad. Também responderam às manifestações dos presentes, os técnicos da pasta Marcelo Pacheco, que gerencia os dois parques; Thales César Neves, gerente de Criação e Manejo das UCs e Eric Neves Souza, gerente de Uso Público e Regularização Fundiária e Gestão Socioambiental das UCs. A engenheira e sanitarista Sabrina Mendes, representando a STCP, empresa paranaense que elaborou os planos, fez a apresentação das propostas. A consulta pública sobre as duas propostas está aberta no site da Semad e até o dia 28 deste mês. Qualquer pessoa pode ler os documentos e apresentar sugestões. Os técnicos da pasta garantiram na audiência que tudo será levado em consideração e que as propostas em discussão foram elaboradas após oficina, em setembro do ano passado, com a participação de “vários atores”, desde técnicos da pasta e da Saneago, até a sociedade civil, moradores da área do entorno, proprietários rurais e municípios que recebem influência dos parques. Não ficou claro na audiência como foi a escolha dos participantes desta oficina.ImpactoVários presentes mencionaram durante a audiência pública a movimentação de empreendedores para usufruir do lago, em atividades de turismo e lazer. O único empresário presente que se manifestou foi André Lunardelli, sócio da Santa Branca Ecoturismo e Pousada, que fica na zona rural de Terezópolis de Goiás. Ele disse que, embora não tenha lido os documentos, defendeu o uso público de forma comedida e entende que a preocupação é legítima. “Se for bem feito, o impacto será irrisório e vai gerar benefício para a população”, disse.Para Lunardelli há outro problema mais grave e que não vem chamando a atenção, que é o parcelamento irregular na área da APA do João Leite. “As autoridades estão omissas. Estamos articulando uma reunião com várias instâncias para que uma providência seja tomada. O gestor de ambas UCS, Marcelo Pacheco, confirmou que o parcelamento rural é um problema que tende a crescer e pode impactar o solo e recursos hídricos, mas que a Semad tem dificuldade em intervir, embora esteja atenta para contribuir no que for necessário. Marcelo Pacheco explicou que todo o entorno da barragem é constituído de posse e domínio público, são áreas do estado, o que “afasta um pouco a exploração imobiliária”. Segundo ele, há ocupações irregulares, algumas antigas, em especial no município de Goiânia, com características urbanas, na zona de amortecimento da APA. Uma delas é alvo de ação judicial. Outra está bem próxima à divisa com Goianápolis. “Isso tende a causar uma série de impactos nos parques e no reservatório”. Projeto preocupa servidores da SaneagoEmbora a Saneago, que construiu o reservatório e não tenha ocupado lugar na mesa da audiência pública, alguns técnicos da empresa estiveram presentes. A bióloga Rafaela Wolff, que é responsável pelo Laboratório de Hidrobiologia da Saneago, afirmou que participou das oficinas e deixou sugestões que não foram contempladas na proposta apresentada para o uso público. “Sou especialista em algas e deixo claro que fico preocupada com a qualidade desta água. Vai doer no bolso do pobre porque, nós consumidores, vamos pagar essa conta.”Outra especialista da Saneago, que esteve presente, mas prefere não se identificar, disse ao POPULAR que o reservatório, criado somente para abastecimento público, corre o risco de ser transformado numa nova represa do Guarapiranga. O reservatório, que abastece 4 milhões de pessoas na região metropolitana da capital paulista, foi tomado por assentamentos clandestinos e recebe um grande volume de esgoto e detritos sólidos. “A conta vai ficar mais cara porque vamos gastar mais produto químico para potabilizar a água. Como vão tratar o esgoto dos bares e restaurantes que serão construídos nas imediações? Alguém está ganhando com isso”, afirma a técnica da Saneago.Ex-servidores da Saneago também marcaram presença na audiência. Além de Leda Portela, o engenheiro Henrique Luiz representou a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes) e o engenheiro civil aposentado Caio Gusmão, que pertenceu aos quadros da companhia por 38 anos, fez um depoimento contundente e esclarecedor. “Trabalhei na barragem do lançamento da pedra fundamental até a entrega da licença de operação.” Ele lembrou que a empresa fez uma lista de 36 atividades ambientais que poderiam degradar o reservatório, entre elas o turismo. “Recreação e lazer foi descartada mesmo antes da formação do reservatório por ser uma atividade predatória.” O engenheiro ressaltou que foi gasta uma fortuna para desmatar a área do espelho d’água e que a recomposição florística seria feita nos 200 metros que cercam a barragem. Ele teme que a abertura para o lazer impeça a renovação da mata. Outra preocupação, segundo ele, é que o sistema produtor João Leite e a barragem foram projetados em 1998 e demorou seis anos para entrar em operação. “O sistema, que ainda está em obras, hoje é insuficiente para atender em quantidade e qualidade às populações de Goiânia, Aparecida, de Goiânia, Aragoiânia, Trindade e Goianira. E quando estiver em pleno funcionamento, atingindo 6,2 m³/s, o reservatório vai variar seu nível. Vamos incrementar, no mínimo, uma população de 800 mil habitantes”.Outro aspecto mencionado pelo engenheiro sobre a importância do sistema João Leite é que ele se interliga ao sistema Meia Ponte que, por ter em seu percurso vários projetos de irrigação, não consegue produzir os 2,6 m³/s, como estava previsto anteriormente no projeto. “Por isso o sistema do João Leite é primordial. Qual o motivo de colocar recreação lá? Não existe justificativa pra isso”. Mariana Moura agradeceu “o histórico do reservatório” e insistiu que a pasta trabalha no sentido de turismo de baixo impacto que, para ser viabilizado, depende de dados ainda a serem coletados.Administração de unidade deve ser repassada à iniciativa privadaA Semad contratou junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) uma proposta de regime de concessão de gerenciamento à iniciativa privada de parques estaduais goianos. Além da Área de Proteção Ambiental João Leite (APAJoL), que reúne o PEJol e o Peamp, a pasta espera concessionar também o Parque Estadual da Serra de Caldas e o Parque Estadual de Terra Ronca, no nordeste goiano. A secretária Andréia Vulcanis disse ao POPULAR que, embora ainda seja um planejamento, é uma estratégia importante. “Todos os parques que fizeram isso ganharam enormemente no manejo, na conservação das espécies, na proteção e numa visitação mais qualificada.”Os representantes da Semad não conseguiram convencer os presentes e as cerca de 70 pessoas que assistiram a audiência pelo canal do órgão, no YouTube, de que as opiniões apresentadas seriam levadas em consideração para enriquecer as propostas. “Até que ponto os técnicos envolvidos na criação do reservatório serão ouvidos?”, perguntou Leda Portela, que trabalhou na Companhia de Saneamento de Goiás (Saneago) por quase 40 anos. Mariana Moura, a esta e a outras indagações similares, respondeu que os planos são sugestões para um turismo ordenado. “Estamos aqui para recolher contribuições. Vamos levar para o gabinete para tirar a melhor conclusão possível.”-Imagem (1.2440387)