Devido a uma especialidade que, se não chega a ser incomum, não é das mais cobiçadas na Medicina, Ricardo Borges era conhecido como “Doutor Morte”. Aos 42 anos de idade, 19 de profissão e há 10 como médico paliativista, hoje é chamado pelos colegas de “Doutor Esperança”. Mas, esperança de que, diante do fato de que ele é chamado a intervir no momento em que não há mais retorno? “Boa pergunta”, responde. E demora alguns segundos para conseguir responder. “Talvez porque ela, a esperança, seja o último sentimento que sobre. Não é possível enfrentar a morte sem esperança”, diz. O paliativista é aquele que é chamado quando não há mais chances de que o paciente sobreviva – ao menos, não em termos de recursos médicos. Sua missão é fazer com que os momentos derradeiros de vida sejam menos dolorosos, tanto fisicamente, em determinadas doenças, quanto psicologicamente. Em uma década, Borges assistiu cerca de 300 pacientes, todos com desfecho morte.Diante da “indesejada das gentes”, as pessoas costumam lidar com uma miríade de sentimentos. “Existe um aprendizado, é momento de perdoar, reconhecer o legado que se vai deixar”, diz o médico. Esse é, porém, o roteiro natural, que nem sempre é seguido à risca. “A agonia da morte traz reações as mais diversas possíveis, de acordo com qual estágio se está”, afirma.A psiquiatra suíça Elisabeth Kubler-Ross identifica cinco estágios nessa última caminhada: negação, raiva, barganha, depressão e ressignificação. “Quando a pessoa continua negando, a agonia da morte é maior, ao contrário do que ocorre quando ela passa à ressignificação”, diz Ricardo Borges. Em sua prática diária, o que o paliativista busca é diminuir o sofrimento desse percurso. “Meu papel é convidar as pessoas a olhar para a própria morte”, resume.Essa especialidade tem se tornado mais comum nas últimas décadas, com o envelhecimento das populações e, consequentemente, a proliferação de doenças crônicas típicas da velhice. A Covid-19, porém, veio romper com esses paradigmas. Paliativista do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), Ricardo Borges conta com essa infecção, que surgiu há pouco mais de um ano, balançou com todos os procedimentos antes aplicados.“A Covid-19 é uma doença aguda e, diferentemente das doenças crônicas, que dão sinais quando a morte se aproxima, em duas semanas ela pode matar uma pessoa”, afirma. Assim, como a maioria das vítimas morre entubada e sedada, geralmente perde-se a oportunidade de experimentar todos os estágios da morte. “A catástrofe é tão grande que até morrer desse jeito (passando por todos os estágios) não é possível”, diz.Para tornar tudo ainda mais doloroso, o paciente com Covid-19 não pode receber visitas. Para amenizar a solidão, e possibilitar a despedida possível, os profissionais têm de lançar mão de algumas estratégias. “Nosso objetivo é ajuda-los (família e pacientes) a encontrar um caminho”, conta Borges. Uma das alternativas tem sido a realização de videochamadas, por meio de telefones celulares ou tablets.Outro complicador é que, sedado, o paciente não tem como exercer sua autonomia – como decidir que não é mais momento de tentar salvar sua vida ao custo de tratamentos dolorosos e invasivos. Para decidir se é hora de parar ou continuar os esforços para manter o organismo vivo, o especialista precisa ter uma conversa fraterna, mas franca, com os familiares do doente. Muitas vezes, porém, esse diálogo ideal não é possível. “Isso me magoa”, admite Borges.No início da pandemia, o paliativista, que trabalha no Hospital das Clínicas há cinco anos, auxiliou na capacitação dos profissionais que passaram a atuar especificamente com pacientes infectados com o coronavírus Sars-CoV-2, que já matou mais de 320 mil pessoas no Brasil – 11,7 mil em Goiás. O trabalho consistiu também em treinar a equipe para a comunicação com as famílias.Há um ano, ele não imaginava a dimensão que a Covid-19 teria em todo o planeta. “A doença não permite que os familiares entrem (na UTI) para se despedir. Nem isso é possível. É um terror e sofremos todos como humanidade”, acredita.Borges não também não sabe dizer que tipo de aprendizado a doença pode deixar, tanto nas relações sociais quanto nas práticas médicas. “Para que a gente compreenda o futuro, o presente tem de ter se tornado passado”, diz, parafraseando o neurologista e psiquiatra Sigmund Freud, morto em 1939.Acostumado a lidar com despedidas definitivas, o médico paliativista demonstra-se um tanto cético com as avaliações de como a humanidade sairá da pandemia. “O grande aprendizado ainda está por vir e não será nada do que imaginamos. Não há um marcador muito claro”, afirma. Enquanto as respostas não vêm, Ricardo Borges continua sua rotina de dar a notícia que ninguém quer ouvir da maneira mais suave possível.