Há pouco mais de um ano, quando a pandemia do coronavírus (Sars-CoV-2) aportou no País, nem de longe a sociedade brasileira poderia imaginar a extensão do rastro de insegurança alimentar e de dor física e emocional que ela carregaria. De lá para cá, com a definição de medidas restritivas para conter o avanço da Covid-19 e a suspensão em 2020 do auxílio emergencial, a desigualdade socioeconômica ficou ainda mais delineada e a fome se estabeleceu em grande parte dos lares do Brasil, nação que se orgulha de sucessivas supersafras de grãos.Incomodados com o sofrimento de milhares de famílias, organizações do terceiro setor, grupos de amigos e pessoas, de forma individual, arregaçaram as mangas com o objetivo de aplacar a carência alimentar no País que, no ano passado, conforme Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) chegou a 55,2% dos domicílios brasileiros. Desde dezembro, com o recrudescimento da pandemia, este cenário ficou ainda mais desolador.O Grupo Asa (Amar, Sorrir, Ajudar), que atua em parceria com a obra social Irmão do Caminho numa das regiões mais carentes de Goiânia, onde estão localizados os residenciais Jardim Cerrado, tem visto muito de perto o estrago que a fome tem feito. Em setembro de 2017 quando seus membros começaram a frequentar a área, um sopão era oferecido aos sábados e um brechó com roupas a, no máximo 4 reais a peça, ajudava na compra de cestas básicas entregues a famílias de maior vulnerabilidade e no pagamento de contas de água e energia. No início do ano, crianças recebiam material escolar por meio do projeto Na Mochila. Com a pandemia tudo isso mudou.“Por causa da pandemia essas atividades foram suspensas. As famílias nos param na rua pedindo comida. Estamos entregando cestas básicas de casa em casa”, conta Milton Costa Filho, à frente do Asa. Ele diz que foi preciso dobrar a quantidade de cestas, às quais são acrescidas proteína animal e verduras. A diarista Denise Martins Lopes Leite, de 41 anos, mãe de três filhos, é dependente desse alimento. Sem condições financeiras, ela separou o casal de filhos gêmeos, de 19 anos. O rapaz vive em Rondônia com uma tia e a moça, que sofre com anemia, está com Denise no Jardim Cerrado 4, assim como um adolescente de 14. “Como estou doente, não posso trabalhar. Se não fosse o Asa não teria casa, nem comida.”Situações assim têm se repetido. O casal Renata e Edileizer Muoio participava de projetos sociais na Basílica Sagrada Família, na Vila Canaã, e na Capela São Pedro, no Parque Amazônia. A história de uma mãe impotente, sem condições de alimentar os sete filhos, a comoveu. “Fui pessoalmente lá e, depois disso passei a andar com alimentos no carro”, diz Renata. “Lembro de um senhor velhinho que, ao ganhar 2 quilos de arroz, olhou para o céu e agradeceu: ‘obrigada, meu Deus”. Foi assim que nasceu, no meio da pandemia, o projeto Amor em Ação.Renata e Edileizer passaram a relatar histórias de sofrimentos em seus grupos de mensagens e foi reunindo amigos dispostos a colaborar. No Natal conseguiram doar alguns brinquedos usados, mas foi a fome que marcou a data. “Queríamos doar 20 cestas básicas, mas não conseguimos dinheiro nem para a metade. Muita gente nos pedindo. Aí, por um milagre, apareceu 500 reais. Convertemos tudo em alimento”, detalha a professora de Inglês. Carência aumenta nos mais frágeisA empatia também impulsiona pessoas solitárias a tomar atitudes. Nos últimos meses a bancária aposentada Roseli Vieira, de 56 anos, viu aumentar o número de pessoas em situação de rua no Centro de Goiânia, onde mora. “As pessoas estão literalmente passando fome. A gente não tem mais ânimo de ir ao supermercado porque tem muitas pessoas mendigando e é impossível ajudar a todos.” Por conta própria, Roseli decidiu fazer sanduíches e passou a sair às ruas sozinha distribuindo. Mas a demanda aumentou tanto que ela recorreu às amigas. “Temos de ajudar. O Brasil está caminhando para o quarto mundo. Não tem nada que mata mais do que a fome.” As amigas jornalistas Deire Assis, Luiza Dias e Carla Oliveira fazem parte de uma parcela da sociedade que se incomoda em ficar inerte diante da necessidade do outro. Mesmo participando de projetos sociais, elas notaram que a fome tem estado ali, nos trajetos que percorrem cotidianamente. Por isso, com economias próprias passaram a montar marmitas e a distribuir em áreas ocupadas por pessoas em situação de rua. Em dezembro do ano passado, quando o grupo Amigas do Bem nasceu, a ideia era possibilitar um bom Natal para famílias em situação de vulnerabilidade social. As cerca de 40 mulheres que passaram a vivenciar situações de pobreza perceberam que era preciso fazer muito mais. “Tem muita gente carente nos procurando”, conta Gabriela Gonçalves, uma das responsáveis pelo grupo. Mais uma vez as redes sociais tornaram-se um poderoso instrumento e as doações começaram a chegar. As Amigas do Bem elegeram escolas de periferia para repassar cestas básicas a famílias que ficaram sem renda e hospitais onde estão acompanhantes de pacientes pobres com Covid-19.Três comunidades pobres em Aparecida de Goiânia são o alvo do trabalho de integrantes do Grupo de Estudos e Assistência Social (Geas), do Centro Espiritualista Irmãos do Caminho (Ceic). Eles cadastraram famílias na Vila da Paz, no Setor Rosa dos Ventos; no Vale do Sol, invasão sob a linha de transmissão da Cemig; e na Terra do Sol, que nasceu no antigo lixão. Mensalmente o grupo distribui na região 145 cestas básicas, produtos de higiene pessoal e cestas específicas para as crianças, que formam a maioria da comunidade. “Levamos roupas, leite, biscoitos, salame”, detalha o empresário Roney do Espírito Santo, que abandonou os negócios para se dedicar à caridade. “A pandemia tem mostrado que não somente miseráveis pedem esmola nos faróis, mas também os pobres, que ficaram sem renda.” A arte pede socorroCom o cancelamento de todas as atividades culturais a partir das primeiras medidas de isolamento social há mais de um ano, um segmento ficou à deriva. Cantores, produtores, bailarinos, atores, técnicos, professores de arte, escritores, pessoal do circo e muitos outros perderam o ganha-pão. O auxílio emergencial não se encaixou nesse grupo e, só mais tarde, depois de muito barulho, as necessidades dos trabalhadores da cultura foram reconhecidas por meio da Lei Aldir Blanc. Mas o dinheiro só chegou em setembro de 2020 e grande parte dele não foi utilizada.Sempre se apresentando nas noites da capital, o músico Roberto Célio Pereira da Silva, o Xexeu passou a perceber que as pessoas que trabalhavam ao seu lado estavam enfrentando dificuldades e decidiu fazer algo. Ele reuniu colegas da arte, entre eles a cantora Claudia Garcia, dando início a um engajamento para combater a fome desses trabalhadores. “Pensamos em ajudar somente os músicos, mas aí percebemos que a engrenagem era maior. Uma grande gama de profissionais foi afetada, entre eles produtores, bailarinos, atores, técnicos de luz e som, cozinheiros, garçons, vigias de carros, etc.”O projeto Adote a Arte nasceu e continua informal. A Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (APCEF), em Goiânia, concordou em ceder o espaço para reunir as doações. Xexeu explica que a espinha dorsal do projeto é composta de produtos para cesta básica e de material de limpeza e higiene. “No início da pandemia atendíamos 80 famílias, hoje são 350. Temos olheiros buscando trabalhadores que estão passando necessidade”. Esta semana, Xexeu repassou cestas para a turma das artes circenses.O projeto sofreu um abalo em fevereiro deste ano quando Xexéu e Claudia Garcia descobriram que estavam com Covid-19. Ele ficou em casa se recuperando, mas ela não resistiu. A morte da cantora, que atuou muito para ajudar os colegas, nocauteou Xexéu, mas mesmo detonado pela doença e pela tristeza, retomou o Adote a Arte ao lado de pessoas como a produtora Rejane Alves, e os teatrólogos Danilo Alencar e Norval Barbieri e Márcia, do espaço cultural Quintal do Jorjão. “É uma questão humanitária.” Amigos da ArteEm outra vertente da cultura goianiense, há um trabalho incansável para mitigar a penúria de muitas famílias que sempre dependeram de eventos artísticos para sobreviver. O produtor cultural Carlos Brandão se uniu aos também produtores Marci Dornelas, Ana Aquino e Everson Alcântara e há mais de um ano buscam doações para montar cestas básicas. “Com a suspensão das atividades culturais, muita gente está passando fome e não apenas artistas, mas também técnicos, Djs, beat makers, pessoal do teatro e vendedores ambulantes que trabalham nos eventos, como o Chorinho na Avenida Goiás, pessoas que ficam invisíveis”, detalha Carlos Brandão.O produtor e poeta conta que desde abril de 2020, quando a realidade da pandemia se tornou mais dura deixando claro que as apresentações artísticas não voltariam tão cedo, o projeto Amigos da Arte já identificou 500 pessoas deste cenário que estão passando fome. “Tem gente que pega cesta básica todos os meses porque não tem dinheiro para comprar comida. Nós chegamos a suspender a campanha por falta de dinheiro, mas voltamos a ser procurados. Somente esta semana entregamos 50 cestas”, conta Carlos Brandão. A força das organizações estruturadas Se por um lado há o empenho de grupos não formais ou de pessoas que têm se sensibilizado com a dor do outro, organizações estruturadas também estão fazendo toda a diferença na pandemia. É o caso da União GO, um movimento da sociedade civil, sem vínculo partidário, que nasceu para ajudar pessoas em vulnerabilidade social que ficaram ainda mais à margem na realidade instalada pelo coronavírus. O corpo do movimento é o União BR, que teve origem em São Paulo e criou braços na maior parte do País. Para as comunidades carentes o grupo, formado por jovens empresários e profissionais liberais, leva alimento, produtos de higiene e educação empreendedora.A Central Única das Favelas (Cufa), que nasceu no Rio de Janeiro há duas décadas, está presente em Goiás há mais de dez anos. A organização que é uma referência pelos projetos sociais que desenvolve ou encampa, tem distribuído alimentos em diversas comunidades, não somente em Goiânia, mas também em cidades do interior. As doações englobam ainda itens de higiene e de conectividade, como chips de celular, para manter as aulas on-line. Entre seus projetos mais exponenciais está o Mães da Favela, que tem como alvo mulheres que criam os filhos sozinhas. Uma parceria com uma empresa de transporte por aplicativo permitiu que elas recebessem 60 reais para levar seus familiares para a vacinação sem precisar de transporte coletivo.O Instituto Curados para Curar nasceu formalmente em Goiânia em 2014 por iniciativa de um grupo de mulheres. O embrião da ideia era apoiar emocionalmente outras mulheres, com foco na violência doméstica, mas chegou a pandemia e a demanda mudou de configuração. “Aumentaram demais as solicitações de cestas básicas. Nunca me deparei com tanta situação de pobreza. As pessoas têm pedido pelo amor de Deus”, diz a empresária e acadêmica de Psicologia, Mauriane Castro, que preside a ONG. Com uma estrutura montada no Setor Bueno, a instituição decidiu abraçar projetos menores que não têm condições de se manter. Diante da grave crise financeira que impossibilitou ampliar o leque de doadores, o instituto criou a campanha de 1 Real, que pode ser doado via transferência por Pix.Mauriane Castro explica que o amparo emocional oferecido pela ONG não paralisou com a pandemia. “Pelo contrário, aumentou muito as demandas no sentido emocional e nossa equipe de psicólogos voluntários está prestando assistência. O Instituto Curados para Curar já tem ramificações no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Nampula (Moçambique/África).-Imagem (1.2231451)-Imagem (1.2231425)-Imagem (1.2231422)