O desempregado Divair Nunes da Cruz, de 28 anos, luta pela vida desde a noite de 9 de dezembro, quando foi atingido por 4 dos 8 tiros disparados em uma abordagem policial na Praça do Sol, no Setor Oeste, em Goiânia, sem saber que pesa contra ele um mandado de prisão expedido pela Justiça no dia seguinte, por tentativa de homicídio. Em situação de rua há pelo menos quatro anos, Divair usava um banco da praça para dormir e era conhecido da vizinhança como uma pessoa tranquila. Desde o fato, Divair está internado inconsciente na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Urgências de Goiás (Hugo). O estado de saúde é considerado muito grave.A prisão se deu após audiência de custódia no dia 10, com Divair internado, sem condições de ser ouvido e sem nenhum parente informado até então sobre a ocorrência. Prevaleceu a versão dos policiais militares, de que ele tentou matar um deles, com uma faca, ao entrar em luta corporal.O policial em questão, um cabo da PM, apresentou um machucado no nariz e em um dos cotovelos, um rasgo na calça da farda e uma marca de 9 centímetros no braço, que teria sido causada pela faca, mas que não chegou a lhe cortar. No laudo médico feito pela Polícia Técnico Científica, os ferimentos aparecem como “leves escoriações”.Divair não tem passagem pela polícia e não consta contra ele nenhuma denúncia de violência ou crimes. Entretanto, ao apresentar as informações que embasaram o pedido de prisão preventiva, a Polícia Civil entregou uma relação de vezes que ele foi abordado por policiais militares. Foram 12 vezes desde agosto de 2018, com base nas situações relatadas no sistema da PM. Em nenhuma há uma justificativa para a abordagem. Apenas em duas situações os policiais informam que se trata de operações designadas pela Polícia Militar.Primo do morador de rua, Moisés Oliveira da Cruz, de 29 anos, diz que em uma destas abordagens policiais – ele não sabe se entre as que foram registradas – Divair teve um pulso quebrado e os pertences chutados. “Foi de surpresa e foram violentos, já chegaram batendo, chutando as coisas dele, e nessa ele acabou quebrando o pulso. Não teve motivo nenhum para isso”, alega.Suposta luta corporalNos registros policiais encaminhados ao Judiciário por conta da audiência de custódia e da prisão preventiva, não consta o motivo da abordagem ocorrida na Praça do Sol. Os relatos são todos iguais, de que equipes foram chamadas para dar apoio a policiais militares após Divair ter quebrado o farol direito de uma viatura. Quando estas equipes chegaram, o desempregado estaria bastante alterado, com uma faca em cada mão, se negado a se entregar e “em progressão agressiva tentou desferir um golpe de faca” contra o cabo da PM.A cena em seguida foi a que teria embasado o pedido de prisão por tentativa de homicídio. É dito que o cabo, ao tentar se esquivar, tropeçou e caiu no chão, momento em que Divair teria “pulado sobre o mesmo e tentado desferir golpes com suas armas brancas”. Os policiais argumentam que por isso foram necessários os oito disparos, de três armas diferentes. O próprio cabo disparou três vezes.Após a audiência de custódia, foram arroladas ao processo imagens de câmeras de segurança de um prédio da vizinhança. Nelas, não aparece se e quando Divair teria quebrado o farol da viatura. As imagens mostram apenas a aproximação dos policiais do banco onde Divair descansava com seus pertences, os momentos dos disparos e a chegada do socorro médico. Todas as cenas são prejudicadas pela presença de árvores.As únicas manchas de sangue no local apontam que o morador de rua foi baleado no banco e junto a uma faca no chão ao lado, conforme aparece em fotos juntadas ao processo. Com o morador de rua, além da arma branca, apenas pertences como roupas e coberta.Na decisão que colocou Divair preso, a juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães negou o pedido de uso de tornozeleira eletrônica feito pela Defensoria Pública e argumentou que a “necessidade de manutenção do autuado no cárcere em que se encontra visa a conveniência da instrução criminal e da garantia de aplicação da lei penal, haja vista que não comprovou o exercício de atividade laboral lícita antes de sua segregação, tampouco residência no distrito da culpa. Ressalto que nenhum documento foi acostado ao feito com tais finalidades”.No dia 17, o delegado Charles Ricardo Lobo Júnior entrou com pedido de mais prazo para as investigações, alegando necessidade de mais diligências e novos depoimentos dos envolvidos na ação policial e de possíveis testemunhas. A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil para questionar sobre o que consta como o motivo da abordagem inicial a Divair e mais informações sobre o contexto que o teria levado a quebrar, na versão da PM, o farol da viatura, mas a assessoria de comunicação pediu para que fosse procurada a Secretaria de Segurança Pública. Defensor público vê “estranheza”O defensor público Luiz Henrique Silva Almeida, que representou Divair Nunes da Cruz na audiência de custódia, diz que a versão apresentada pela polícia é “no mínimo estranha” e que os fatos chamam muito a atenção pela violência com que o morador de rua teria sido imobilizado e pela quantidade de policiais envolvidos. “Não faz sentido manter a prisão de alguém em uma história estranha, que não se encaixa.” Luiz Henrique destaca que os vídeos juntados ao processo reforçam ainda mais as “estranhezas” na narrativa oficial. “Nada justifica ali o armamento utilizado. Ainda que ele estivesse com uma faca, há formas de intervir menos violentas”, comentou.No dia seguinte à ocorrência, moradores do entorno da Praça do Sol e internautas se solidarizam com o morador de rua. “Uma crueldade feita ontem em nosso bairro, esse rapaz morava na praça, todos conheciam e ele não era perigo ou ameaça para ninguém. Três carros de polícia para abordar uma pessoa vulnerável”, comentou uma pessoa na publicação da reportagem no perfil do jornal no Instagram. Moisés diz que tentou tirar o primo da rua diversas vezes e que o visitava sempre. Quando se mudou do Pará para Goiás, Divair chegou a trabalhar, mas foi demitido após uma confusão com um colega. Ainda segundo Moiséis, o primo tinha transtornos psicológicos e dificuldade para se ressocializar.-Imagem (Image_1.2375955)