Por mais incomum que possa parecer, foi a pandemia da Covid-19 que trouxe luz para a vida e a trajetória profissional de Amanda Souto Baliza, de 30 anos, a primeira mulher trans a ser eleita conselheira seccional em todo o sistema da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Nascida em Mara Rosa e passado a primeira infância em Estrela do Norte, cidades do Norte de Goiás, ela ratificou a presença pioneira na seccional goiana integrando a chapa Compromisso OAB, liderada por Rafael Lara Martins, que em novembro de 2021 venceu as eleições para comandar a OAB-GO no triênio 2022/2024. Ela passou a integrar a Comissão de Seleção e Inscrição.Em julho de 2020, depois de sete anos inscrita na OAB, Amanda foi a primeira mulher trans a retificar o registro profissional junto à seccional goiana, logo após a alteração do registro civil, deixando definitivamente no passado o nome que recebeu ao nascer. Em junho de 2021, ela tomou posse na presidência da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero (CDSG) da OAB - Seção Goiás (OAB-GO) em substituição à Taísa Steter, que se transferiu para Recife. Foi a primeira advogada trans a ocupar a presidência de uma comissão da OAB-GO e de uma seccional da OAB no País.O que mais impressiona é a rapidez dos acontecimentos. Ao POPULAR, Amanda contou que a certeza de que algo estava fora do lugar veio aos 12 anos, mas ela não sabia que nome dar. “Tinha medo da família e da sociedade, por isso decidi reprimir”. O pensamento recorrente do então pré-adolescente é que morreria cedo e que todos se lembrariam de sua figura como veio ao mundo. “O tempo foi passando e com ele muitas angústias”. Aos 16 anos ingressou na faculdade de Direito, em Anápolis, se graduou aos 21 e manteve a figura masculina até não suportar mais carregar o fardo emocional. Foi com o apoio de uma psicóloga que começou a delinear o novo caminho.Os anos de 2018 e 2019 foram os piores da vida de Amanda, como ela relata. Depois de perder o emprego num escritório de advocacia em Goiânia, foi rejeitada pelo departamento de RH de uma grande empresa. “Eu estava no começo da transição. Não posso afirmar que perdi o emprego por isso, mas foi algo estranho. Eu nunca vou esquecer da menina do RH desligando o telefone ao ouvir minha voz. E ela estava ligando para marcar minha entrevista para o novo emprego.” Amanda ficou sem renda, com dívidas e, somado a isso, vivia um relacionamento conturbado.“Tive uma depressão severa e o período mais intenso foi até fevereiro de 2020, quando veio a pandemia.” Sem perspectiva e aos poucos reconhecendo a real condição de gênero, Amanda resolveu elaborar um projeto para atender pessoas trans em situação de vulnerabilidade. “Eu não conhecia ninguém do meio. Procurei pessoas da linha de frente em Goiás que não quiseram me receber. Foi aí que a internet me ajudou. Tive acesso a pessoas de todo o Brasil. Entrei num nicho que eu não conseguiria se as coisas não tivessem ficado todas online”.Foi assim que ela contatou Toni Reis, diretor-executivo da Aliança Nacional LGBTI+, a maior organização do segmento no País, com sede em Curitiba. Hoje, após um período de trabalho voluntário, ela é coordenadora jurídica da ONG atendendo demandas do Brasil inteiro. Por causa do Advocacy, prática realizada pela organização junto ao sistema político para influenciar a alocação de recursos e formulação de políticas públicas, Amanda Souto passou a viajar muito e a conhecer pessoas influentes, tornando-se respeitada. Ela está concorrendo à presidência da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB Nacional, ao lado de colegas de SP, DF e SC. Decisão que caberá ao novo presidente José Alberto Simonetti, que será empossado nesta terça-feira, 1º de fevereiro.Direitos humanosAmanda comemora a volta por cima. “Sempre fui muito respeitada na OAB. Jamais poderia imaginar que chegaria onde estou.” O projeto dela é pautar os votos na seccional goiana na defesa dos direitos humanos, em especial na aplicação de súmulas do Conselho Federal. “A súmula número 11 proíbe pessoas que tenham histórico de violência contra pessoas LGBTI+ de ingressar nos quadros da ordem. Eu pretendo ficar vigilante quanto a isso.”Amanda Souto explica que não há consistência de dados dentro da OAB sobre profissionais como ela. “Em nosso censo não há uma pergunta sobre isso. No ano passado eu provoquei o Conselho Federal para que incluísse o questionamento. A Comissão de Diversidade deu parecer favorável e o assunto será debatido pelo conselho.” Segundo a advogada, se comparar dados antigos, antes da autorização da retificação do registro civil em cartório, é provável que haja em torno de 250 pessoas trans em todo o País atuando como profissionais do Direito.Saber das demandas desse grupo, em sua opinião, é fundamental. “Conheço casos de colegas que não tiveram uma recepção tão boa quanto eu tive em Goiás. Na semana passada, um homem trans do Piauí me contou que quando foi mudar os documentos na OAB de seu estado teve de submeter a questão ao Conselho. Imagine o constrangimento. O Conselho aprovou, mas a Caixa de Assistência não mudou o nome no sistema e o documento no aplicativo da Ordem ainda consta o nome antigo. Ele decidiu judicializar a OAB. É uma situação muito constrangedora.”Pai e irmão apoiam transiçãoA advogada reserva uma atenção especial aos pais e ao irmão mais novo que tem ajudado muito no processo de transição. A mãe, costureira, tem 50 anos e vive em Aparecida de Goiânia. “Ela tem mais dificuldade, mas respeito o tempo dela. Aos poucos vai se adaptando.” O pai, de 60, balconista de farmácia em Anápolis, a surpreendeu. “Quando decidi conversar com ele, o que ouvi me fez chorar muito. O que ele disse que não esqueço, guardo cada palavra: ‘A vida é assim. Deus te fez assim. Não vou sentir menos orgulho de você por causa disso.’”A reação do pai, como conta Amanda, foi muito além do que poderia esperar. “Foi maravilhosa!” Após conversar com a filha em Goiânia, ele voltou a Anápolis, onde vive depois da separação, reuniu os demais familiares e pediu que todos respeitassem Amanda. O irmão, três anos e meio mais novo, sempre foi um parceiro em sua caminhada. Hoje, Amanda acredita que o pensamento recorrente de que morreria cedo estava vinculado à necessidade de matar o homem que havia dentro dela. Ela sabe que ainda há uma longa trajetória a percorrer, mas celebra todos os acontecimentos dos últimos dois anos. Um deles ocorreu também há pouco. Pela da rede Linkedin, ela foi convidada pela Editora Trama, a fazer o prefácio da obra A Dor do Meu Segredo, um thriller psicológico, assinado pela norte-americana Robyn Gigl, também uma advogada trans, que já foi distribuído por meio da Trama Box.