Em uma conta que não fecha, prefeituras de cidades goianas chegam a ter mais servidores em cargos de chefia do que em postos de subordinados. Os registros das folhas de pagamento mostram que 66 dos 246 municípios de Goiás têm mais de 20% dos funcionários públicos contratados como chefia. A desproporção está por trás do excesso de comissionados, o que na prática resulta, em muitos casos, em desvio de função em massa.O chefe da Divisão Agropecuária em Cristianópolis exerce a função de auxiliar de serviços gerais. Na mesma cidade, o contratado como chefe de Divisão de Estradas Vicinais também exerce atividades de auxiliar de serviços gerais. O desvio de função denunciado por um servidor da cidade se estende para outros 46 cargos descritos como de chefia. No total, a relação do funcionalismo público do município indica a contratação de 66 chefes, entre 248 servidores, ou 26,6%.O porcentual de servidores em cargos de chefia de Cristianópolis é, porém, apenas o 35º maior entre as 246 cidades. Um levantamento feito pelo POPULAR com base nas folhas de pagamento repassadas para o Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) observa que dos 202,7 mil servidores municipais ativos indicados no mês de abril, 20,4 mil estavam contratados em postos de unidades de comando, uma média de 12%. São entendidos como unidades de comando os cargos de administrador, chefe, comandante, coordenador, diretor, encarregado, gerente, secretário geral, secretário municipal, superintendente e supervisor.A média observada é o resultado de uma profunda desproporção entre a quantidade de chefes contratados pelas gestões municipais. Enquanto a cidade com o maior porcentual tem 53,6% de servidores em unidades de comando, outras várias não superam 1% de cargos de chefia. No detalhamento, 17 cidades têm 30% ou mais de chefes, 49 têm entre 20% e 29,99%, 96 têm entre 10% e 19,99%, 59 têm entre 5% e 9,99% e outras 25 têm entre menos de 1% até 4,99%.Leia também:- Verba de gabinete dos vereadores cresce 53% em seis meses- Justiça proíbe festa de mais de R$ 755 mil em Cachoeira de Goiás por falta de merenda a alunosEntre as 11 cidades que serão destacadas na reportagem, nenhuma questionou a veracidade dos dados repassados pelo TCM e analisados pela reportagem. As explicações, quando fornecidas, convergem para a mesma linha, com justificativas de que a grande quantidade de chefes se dá por dificuldades com as respectivas legislações ou pela falta de concursados. Em alguns casos há a promessa de ajustes na proporção de cargos de chefia.ExplicaçõesNa primeira posição, o município de Britânia, que tem 5,5 mil habitantes, tem 382 servidores, dos quais 205 estão lotados em cargos de unidade de comando. Na sequência, Arenópolis, com 3,3 mil habitantes, tem 363 servidores, dos quais 167 são chefes. Em terceiro, Morro Agudo, cidade com 2,3 mil habitantes, tem 210 servidores ativos, dos quais 95 são chefes. Mesmo que consultadas de forma insistente, as três optaram por não responder às perguntas feitas pela reportagem.O secretário de Atos de Pessoal do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM), Vinícius Santos, diz que não existe um limite específico sobre proporção de cargos de chefia. Apesar disso, explica que equipes numerosas de chefes indicam desequilíbrio entre a quantidade de servidores efetivos e comissionados. Isso porque os comissionados, categoria que não demanda concurso público, só podem desempenhar direção, chefia e assessoramento. Dos 20,4 mil servidores municipais ativos em cargos descritos como de chefia, 18,6 mil são comissionados.A Prefeitura de Vila Propício, cidade que tem 5,5 mil habitantes, tem 378 servidores, dos quais 156 estão em cargos de chefia. A gestão municipal diz que a desproporção estaria ligada justamente ao quadro insuficiente de servidores efetivos “ou mesmo candidatos aprovados em concurso público para o exercício das respectivas funções”. De acordo com a prefeitura, a administração está providenciando a realização de um novo concurso, o que deve “alterar significativamente a proporção de cargos de chefia”.O entendimento atual é de que as gestões municipais precisam ter menos de 50% de servidores comissionados. “Caso o número de comissionados supere este quantitativo, há um prejuízo para a continuidade do serviço público, principalmente na mudança de legislaturas. Acaba alterando todo o quadro funcional, acarretando em descontinuidade do serviço público”, diz Santos sobre os cargos indicados por agentes políticos.Dos 202 mil servidores municipais ativos, consta que 131 mil são efetivos, ficando dentro da porcentagem exigida. No entanto, o secretário Santos destaca que irregularidades são observadas mesmo em margens inferiores. “Isso pode ser indicativo de aparelhamento partidário da administração pública, um resquício do patrimonialismo”, observa.Assim como Britânia, Arenópolis e Morro Agudo de Goiás, optaram por não responder a reportagem as prefeituras de Anhanguera, sétima maior proporção com 50 dos 138 servidores em cargos de chefia, Davinópolis, em oitavo com 128 dos 358, Ouvidor com 102 dos 287 e Cristalina, com 885 dos 2.588.TCM vê excesso de comissionadosO secretário de Atos de Pessoal do TCM diz que o tribunal mantém apurações constantes, trabalhando a partir de amostragens ou por provocação de denúncias. “Em casos concretos as fiscalizações do tribunal têm observado que uma quantidade exagerada de servidores comissionados, ainda que não supere os 50%, mas que seja elevado, é um grande indicativo de desvio de função. É um indício para instaurarmos uma investigação”, aponta.A justificativa de Três Ranchos, que tem 2,8 mil habitantes e aparece com a 6ª maior proporção de cargos de comando, com 113 chefes em uma equipe de 292 servidores, também cita a falta de concurso público. “O último concurso público realizado estava sob júdice, havendo decisão definitiva no ano passado, não sendo possível fazer um novo até a decisão final”, afirma a prefeitura em nota. Segundo a gestão, o obstáculo foi vencido e o município está realizando estudos para fazer um novo concurso que deve ser lançado no próximo ano.Em Cristianópolis, que tem ao menos 46 chefes executando funções alheias aos cargos, a justificativa da prefeitura é de que a atual estrutura administrativa impõe a necessidade de servidores serem nomeados como chefes mesmo que não sejam de fato. “Devido ser um município de pequeno porte e uma estrutura enxuta, em alguns casos o servidor que ocupa estes cargos de chefe desempenha todas as funções de um determinado setor por não haver necessidade de mais de um colaborador. O que não denota qualquer irregularidade administrativa”, diz a gestão municipal.Por outro lado, o município afirma que segue a proporção entre efetivos e comissionados indicados pelo TCM, tendo atualmente 25,8% de servidores comissionados, o que fica abaixo da margem de 30% adotada pelo tribunal como sinal de alerta. “Reporta-se ainda que o município realizou concurso público em 2019 e já chamou praticamente todos os aprovados”, reforça Cristianópolis.O desvio de função é observado mesmo em municípios que têm proporção de chefes abaixo da média geral. É o caso de Aparecida de Goiânia, que tem 5% dos 11 mil servidores lotados em unidades de comando. Quando observada a proporção de comissionados, porém, tem 37% de servidores nessa categoria, por sua vez acima da margem de 30% indicada pelo TCM como sinal de alerta. Um dos últimos processos julgados pelo TCM envolve desvio de função de um servidor de Aparecida contratado para serviço de assessoria.Em nota, a Prefeitura de Aparecida, por meio da Procuradoria Geral do Município, diz que o município segue discutindo a questão dentro do Tribunal de Contas dos Municípios, “assim como outras cidades”.SaláriosNa média, as nomeações em cargos de chefia são pouco melhor remuneradas. A tabela fornecida pelo TCM mostra que a média de rendimento dos servidores municipais é de R$ 2,8 mil. Já aqueles lotados em cargos de chefia recebem, em média, quase R$ 3,1 mil.Em Cristianópolis, porém, os servidores nomeados como chefes e que desempenham outras funções têm salários que chegam a ser inferiores àqueles recebidos por efetivos de uma mesma área. É o caso de auxiliares de serviço gerais, que contratados como chefes não ganham mais que R$ 1,3 mil, mas como efetivos têm rendimentos de até R$ 1,7 mil.A questão é destacada pela prefeitura. “O município de Cristianópolis atende os porcentuais previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal quanto aos quantitativos e gastos de servidores efetivos e comissionados. Portanto, Cristianópolis segue a legislação vigente e não há prejuízo ao erário ou desvio de função, de fato.”Tribunal diz que serviço melhora com mais efetivosNo processo para constatar possíveis irregularidades, o TCM apura não só a porcentagem geral, como também as proporções observadas em cada órgão. “Em alguns casos pode ser que a média esteja abaixo, mas em um órgão importante a quantidade de comissionados está bem acima, de forma que o serviço público fica comprometido. Nossa fiscalização é mais ampla, olhamos órgão por órgão. Quanto mais servidores efetivos, melhor nós temos visto o desempenho do serviço público e as garantias da continuidade das atividades”, considera Santos, do TCM.Detectado algum problema, o tribunal tem a competência de determinar medidas para reverter o quadro, com possibilidade de orientação para demissões de comissionados e abertura de concursos. Para alguns casos, se provado que o gestor tinha conhecimento sobre a irregularidade, há aplicação de multa.Foi o caso do município de Alto Horizonte, que, com 3,4 mil habitantes tem 880 servidores públicos municipais, e até o ano passado tinha mais comissionados que efetivos. “Restou comprovado que o quadro de servidores é composto pela maioria de servidores comissionados tanto no ano de 2019 (62%) quanto neste ano de 2021 (59%), bem como a existência de contratação de servidor comissionado em desconformidade com o quantitativo estabelecido por lei”, diz ação do TCM julgada no ano passado e que resultou em multa para o atual prefeito, Luiz Borges da Cruz.A decisão de junho do ano passado indicou o prazo de 30 dias para que a gestão apresentasse diversas respostas. Além da multa para o prefeito, ficou determinado que o município teria de adequar seus números às proporções exigidas entre efetivos e comissionados. Atualmente a porcentagem de comissionados caiu para 44%. O atual secretário de Administração, Rogério Rozário, diz que o município segue mudando a estrutura organizacional e prevê que os cargos comissionados sigam sendo reduzidos. “A partir do momento que entramos, começamos a corrigir essas distorções”, afirma.Especialista afirma que situação é negativa para o serviço públicoNa avaliação de Jessica Traguetto, professora e pesquisadora da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas (Face) da Universidade Federal de Goiás (UFG), o excesso de unidades de comando, se de fato todos exercerem atividades de chefia, pode atrapalhar o bom funcionamento dos órgãos públicos. “Causa dificuldade de orientação, de receber ordens, chefes diferentes uns dos outros”, avalia.Sobre a existência de um porcentual adequado de chefia, Jessica diz que isso depende das características de cada órgão. A pesquisadora, que é doutora em administração e professora da pós-graduação da Face-UFG, considera que a grande quantidade de chefias pode ser explicada também pela busca dos servidores por especialização. “Há alguns estudos que mostram que os servidores buscam, cada vez mais, se especializar. Então estão procurando formações para atingir cargos de chefia, para conquistar promoções”, pondera.Em contrapartida, Jessica observa que em muitos casos os cargos de chefias não são alcançados por meio da qualificação. “Não há uma proporção adequada entre qualificação e os cargos de chefia. Dessa forma é preciso questionar: esses comissionados estão preparados para assumir esses cargos? Quais as questões interferem na escolha para os cargos de chefia?”, afirma a pesquisadora.-Imagem (1.2479793)