A equipe do POPULAR encontra Freud de Melo, aos 86 anos, na sua fazenda Luar do Sertão, a cerca de 20 quilômetros do centro de Hidrolândia. O homem que ficou conhecido em todo o país, não por seus feitos políticos, mas por ter construído não apenas um, mas dois túmulos com entrada de ar, parece parar o tempo. Lúcido, ágil e enfático ao falar, continua convicto de que suas ideias nada têm de extravagância ou bizarrice e, num futuro muito próximo, vai reabrir o instigante empreendimento que começou a construir em 1985, o Hotel Fazenda Lago Ideia Molhada.Entre os anos de 1990 até 2010, o local onde Freud de Melo ergueu 37 pequenos castelos que ficou conhecida como uma réplica de uma cidade medieval, foi bastante visitado. Sem ajuda de profissionais de engenharia ou arquitetura ou mesmo de historiadores, ele criou, sem um planejamento lógico, uma série de estruturas que se espalhou por uma grande área da fazenda Luar do Sertão, às margens do Lago Ideia Molhada que, segundo placas remanescentes, um dia chegou a ter 2.80 metros de profundidade. Hoje, há um pequeno espelho d’água. “Secou por causa das mudanças climáticas, mas vai voltar.”Aquele cenário grandioso, com centenas de esculturas e monumentos que atraíram milhares de visitantes, aos poucos está desaparecendo. Os castelos batizados com nomes insólitos como Cálice das Deusas, Bolo de Aniversário ou Triângulo das Bermudas viraram, em sua grande maioria, o habitat de aves ou répteis. Sem manutenção, árvores crescem entre as paredes de alvenaria. Alguns funcionários da fazenda que produz soja e gado aproveitam algumas das edificações como moradia.“Por culpa minha isso aqui ficou entregue às cobras”, diz Freud de Melo. Ele atribui o abandono de sua cidade medieval à política, embora há muito tempo não ocupe nenhum cargo de liderança em Aparecida de Goiânia, cidade que administrou entre 1976 e 1981, quando foi cassado. No escritório de advocacia que mantém na residência no centro da cidade, continua dando pitacos sobre os rumos do município que, antes dele, foi administrado pelo irmão Tanner de Melo. “A pior desgraça do mundo é a política”, dispara.Ele mesmo diz, em terceira pessoa, que em Aparecida de Goiânia, há duas opiniões a seu respeito: “Freud é um gênio. Freud é um louco”, e conclui: “Sou um visionário. Construí, num único local, o maior conjunto de monumentos históricos”. Percorrendo os caminhos da sua obra megalomaníaca, não esconde o orgulho de monumentos bíblicos como a Arca de Noé com a qual homenageou a filha Márcia, a única que perdeu. Ali, elefante, tartaruga marinha, lobo-guará, canguru, tamanduá-bandeira e cabrito alpino podem ser vistos lado a lado deixando a grande embarcação após serem salvos do dilúvio.O auditório que ocupa a parte inferior da arca ainda guarda cadeiras que sobrevivem ao tempo e às intempéries. Nada ali é utilizado. Da mesma forma, impressiona as condições do restaurante desativado, onde permanecem as mesas em formato de rodas de carros de boi em madeira maciça. “Vou reabrir tudo até meados do próximo ano”, garante. Mas Freud de Melo não explica como vai conseguir deixar o lugar em condições de visitação segura e com conforto em tão pouco tempo.“Isso aqui não foi feito na forma. É arte”, afirma, enquanto mostra as esculturas da Via Sacra. Mais adiante conta que ele mesmo fez muitas das obras, como uma baleia ou uma serpente de aproximadamente cem metros de extensão com três cabeças. “Sou artista e faço quantas cabeças quiser”, responde, ao ser questionado sobre a obra. Freud de Melo não envolve as três filhas e o único filho homem nas questões do Ideia Molhada. “Nem eles se envolvem. Eles não gostam daquilo”, conta um funcionário.Terceirizar a exploração turística da cidade medieval está fora de cogitação, conforme seu idealizador. “Se eu fizer isso, vão dar uma destinação diferente da ideia cultural e histórica”, enfatiza Freud de Melo. Para ele, a situação do lugar tem uma explicação clara: “Tudo nesse mundo estraga, pelo uso ou pelo desuso.”TúmulosAté mesmo os bancos do Jardim da Babilônia, o espaço que antecede a capela onde construiu a sua segunda tumba - a primeira está no cemitério central de Aparecida de Goiânia - foram totalmente envolvidos por troncos de árvores. Na capela com teto solar que guarda o caixão com abertura, os morcegos fazem a festa e assustam visitantes que tentam conferir a história que causou tanta curiosidade.Freud de Melo, nos anos de 1980, anunciou que, por ter pavor de ser enterrado vivo, construiu uma sepultura com entradas de ar e com itens que garantem a comunicação com o mundo, como tubos de plástico e megafones. A história excêntrica atravessou fronteiras e atraiu jornalistas de muitos lugares. Segundo ele, tudo está como foi planejado para o dia em que o declararem morto, embora muitos dos integrantes de sua família tenham chegado primeiro. Ao construir a sua cidade medieval, decidiu replicar a ideia por lá.Em ambos os jazigos, se um dia Freud de Melo for acometido de catalepsia, a condição que deixa a pessoa incapacitada de se movimentar e pode afetar até mesmo a respiração, confundindo com a morte, ele poderá pedir socorro. A excentricidade foi colocada em prática porque suas noites, não se sabe há quantos anos, foram tomadas por pesadelos nos quais se vê sendo sepultado vivo, o medo que a ciência dá o nome de tafofobia.A verdade é que, mesmo sendo um pioneiro de Aparecida de Goiânia, ex-prefeito e uma voz na política local, um auditor fiscal aposentado, um advogado e também jornalista como gosta de dizer, Freud de Melo será lembrado por essa estranha forma de encarar o momento da morte e pela excêntrica cidade medieval. Ele atribui a si próprio mais de 20 profissões e uma delas é a de escritor. É de sua autoria o livro Aparecida de Goiânia - Do Zero Ao Infinito.Obras não pararam após fechamento de hotel“Acredito que já gastei mais de R$ 1 bilhão nesta obra”, estima. Engana-se quem pensa que a desativação do hotel levou ao fim das obras. Neste feriado de 15 de novembro, operários trabalhavam na construção de uma grande baia para equinos. “Aqui vão ficar animais de sela e pôneis. Nada de animais de raça porque eles não servem para a lida”, explica. Freud de Melo sobe rampas e escadas para mostrar cada detalhe. “Aqui tem 30 centímetros de concreto”, conta sobre o muro que cerca o abrigo dos equinos. Ao lado, há um heliporto nunca utilizado por ele. Entre as concepções mais recentes está o curral de alvenaria que ganhou uma placa como sendo “a maior obra do gênero do mundo” e uma pista de cooper para servir aos futuros hóspedes. Naquele cenário grandioso e sem coerência, há ainda espaço para muito mais, como uma réplica da catedral de Notre Dame, o majestoso templo parisiense que foi consumido pelo fogo em 2019. Freud de Melo explica que a réplica vai surgir na entrada da fazenda.VisitasAinda há referências do Hotel Fazenda Ideia Molhada nas redes sociais. O telefone de contato é o do escritório de Freud de Melo em Aparecida de Goiânia. A secretária Creuza, que o atende há anos, conta que muita gente ainda liga querendo visitar o local, mas as porteiras ficam fechadas a maior parte do tempo. O idealizador da cidade medieval diz que o número de interessados caiu muito, mas que pelo menos 700 pessoas aparecem por lá todos os meses. Quando alguém pede passagem para o mundo incomum idealizado por Freud de Melo é cobrada uma taxa de 20 reais por pessoa. No pequeno comércio que antecede a entrada da fazenda, na estrada de terra que liga Hidrolândia a Bela Vista, ciclistas sempre param para perguntar onde ficam os castelos. Eles são os mais frequentes visitantes da área. Até mesmo fotógrafos que buscavam as criações de Freud de Melo para produções visuais desapareceram dali. Para chegar, a partir da praça da matriz de Hidrolândia, pegando a Avenida Botafogo até o seu final, é preciso vencer um caminho sem pavimentação, mas bem cuidado, com poucos buracos. Ao longo do trecho há muitas lombadas, as curvas de nível, um conjunto acidentado que merece atenção dos pedaleiros que costumam se aventurar pelas imediações de Goiânia. Idade Média No artigo A “Cidade Medieval”de Goiás: o conjunto arquitetônico Lago Ideia Molhada em Hidrolândia - Goiás, o historiador doutor Ademir Luiz da Silva, docente da Universidade Estadual de Goiás (UEG) diz que “ao planejar e efetivar a construção de sua “ideia molhada”, Freud de Melo transformou tal conjunto arquitetônico em parte inerente e inseparável de sua identidade pública. Para o historiador, o que foi erguido por iniciativa do ex-prefeito de Aparecida de Goiânia há muito pouco para se relacionar com a Idade Média. As cidades eram cercadas de muros e nas imagens simbólicas, não há alusão a temas sombrios como a peste negra e a inquisição, que marcaram o período. “Não existem muros… talvez por ser desnecessário em termos práticos, uma vez que hoje em dia não se espera por ondas de invasores bárbaros que só poderiam ser contidos por altos e inexpugnáveis muros”.O artigo de Ademir Luiz da Silva foi publicado em 2018 na Revista Mosaico, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO)