Docente da Universidade Federal de Goiás (UFG), o professor doutor Nildo Viana, sociólogo e filósofo, aos 56 anos é um intelectual com vasta produção. Em sua trajetória constam mais de 40 livros publicados, obras organizadas e centenas de artigos sobre temas diversos, como política, crises, redes sociais, manifestações culturais, comportamento da sociedade contemporânea, violência, enfim. Nesta entrevista ao POPULAR, ele discorre sobre os efeitos sociais do caso Lázaro Barbosa de Sousa, o criminoso de 32 anos que, em fuga, durante 20 dias mobilizou quase 300 integrantes das forças policiais do Distrito Federal e de Goiás e acabou morto na segunda-feira, 28 de junho. Qual foi sua impressão sobre a repercussão do caso Lázaro ?É um fato extraordinário, mas, infelizmente, a imprensa reproduziu o que era esperado em acontecimentos semelhantes. É comum parte da imprensa criar um sensacionalismo porque atrai audiência. Por outro lado, parte da população tem interesse em narrativas como essas. São os adeptos do jornalismo sensacionalista. Tem também indivíduos que, por problemas psicológicos, possuem atração por necrofilia, por morte, por violência etc. Há ainda o aspecto de fugir da vida cotidiana que, com a pandemia, ficou mais fechada, com menos variações, então tem aí mais um atrativo para o público. Reunindo tudo isso, a imprensa trabalha o fenômeno e a repercussão é maior. A forma como a imprensa atuou pode impactar na sede de uma justiça mais radical, feita pelas próprias mãos? O conceito de justiça pelas próprias mãos se tornou mais forte a partir dos anos de 1980, quando o neoliberalismo emergiu nos Estados Unidos com a política de tolerância zero, tornando o Estado mais penal. Os filmes da época eram de ação, criando ídolos como Jean-Claude Van Damme. Nas revistas em quadrinhos os heróis também eram violentos.Nos momentos de crise, quando a criminalidade tende a aumentar, a ideia de justiça, de ação, de violência, inclusive por meio do aparato estatal, é legitimada e reforçada. Quando tem um acontecimento como esse, do Lázaro, ganha mais justificativa para tal num nível muito mais amplo e generalizado. Infelizmente, esses casos individuais, que ganham sensacionalismo, reforçam uma situação no Brasil onde o pensamento conservador avançou. Uma espécie de pensamento conservantista, que prega um governo forte e autoritário. O senhor utiliza muito a expressão conservantismo para explicar o momento atual no Brasil. Como a traduz?Historicamente se fala em conservadorismo. Mas, considero que conservadorismo são todas as concepções que apontam para a conservação da sociedade atual, moderna e capitalista. Há um setor que faz críticas, que busca alterações, embora não chegue a propor revolução, por exemplo. É o que eu chamo de progressista, a dita esquerda. A dita direita são os conservadores, mas ela não é homogênea. Tem os republicanos, os liberais e os reacionários, os últimos mais extremistas, que se dividem em três grandes tendências: o fascismo, o nazismo e o conservantismo. Este é o setor extremista mais ligado à moral, à família e à propriedade. É o conjunto de valores e ideias políticas mais extremistas que os conservadores normais, menos democráticas, mais autoritárias, mais ligadas ao militarismo. Faço a distinção para não perder de vista que o liberalismo e os republicanos também são conservadores. No desfecho do caso Lázaro Barbosa o presidente Jair Bolsonaro foi para as redes sociais e escreveu: CPF cancelado. Este movimento reforça o conservantismo? O governo Bolsonaro é a expressão do conservantismo. Ele foi eleito porque avança o conservantismo dentro da sociedade brasileira. E tem a ver com a história do Brasil e com os inimigos do conservantismo e suas práticas, tem a ver com questões políticas, com corrupção, com moralismo, com disputas morais. Esse conservantismo cresceu e é predominantemente autocrático, em matéria de governo, e autoritário quando propõe soluções embasadas em violência. Se há setores da população que defendem isso e um governo que contribui, então estamos numa situação em que casos como o de Lázaro reforçam e ampliam esse processo de predomínio de uma concepção autocrática e fundamentada na violência. O jornalismo piorou?O jornalismo hoje se defronta com as redes sociais. Isso modifica a forma de se fazer jornalismo. Apesar de se falar da neutralidade do jornalismo, no fundo, assim como a ciência e a arte, não são neutros. Ou seja, está tudo envolvido, tem opções, ou de política partidária ou de políticas mais gerais, morais, éticas. O que existe é alguns que conseguem ser mais objetivos, mais claros e menos tendenciosos.Hoje, a sociedade brasileira é palco de polarizações, tanto no nível moral quanto no nível político e agora temos a pandemia e da internet. Nesse contexto, o jornalismo encontra-se em dificuldade. A ideia de pós-verdade, que cada sujeito cria a sua verdade, gera desconfiança em relação ao jornalismo. E junto com isso temos grande parte da população confiando nos jornalistas sem ter verificação de outras fontes, sem ter um senso crítico. O problema dos jornalistas hoje é o mesmo da internet, muita informação e pouca formação. Estamos, então, num processo de regressão?É uma regressão de todos os lados, tanto da dita direita, quanto da dita esquerda, porque há um recuo da reflexão. A esquerda tem um papel muito forte nisso de condenar razão, ciência, teoria e agora isso se volta contra ela mesmo. Estamos num mundo que tem milhões de informações, mas as pessoas não têm formação, não têm capacidade de análise crítica. Por isso as fake news ficam fáceis. As ideologias de subjetividade, de pós-modernidade, de pós-verdade, etc. se unem à falta de informação. A internet reproduz a sociedade e quem a comanda, que são os grandes meios de comunicação e as celebridades. Basta ver o discurso das celebridades para ver a sua falta de formação também. Nesse contexto, as redes sociais permitem que cada um emita sua opinião e que entre em contato com pessoas que têm a mesma opinião, criando bolhas, socializando a ignorância.Temos uma sociedade que fica culturalmente fragilizada, com alto desenvolvimento tecnológico, com alto grau de informação, mas com um ser humano cada vez mais infantilizado, cada vez mais imaturo. E isso é uma panela de pressão que pode gerar explosão a qualquer momento. Como analisa o fato de as imagens de Lázaro Barbosa crivado de balas ter viralizado na internet como uma informação qualquer, banal?Temos tantos problemas sociais gravíssimos no Brasil, inclusive que ajudam a gerar pessoas como esse Lázaro, enquanto jogam atenção exagerada em cima de um acontecimento que, por mais extraordinário que seja, é apenas um caso de criminalidade. Temos questões graves que não são discutidas, como o pós-pandemia. É um elemento que deveria aparecer na imprensa, mas não deveria ser tão central e ofuscar. Dentro de duas semanas nem vão lembrar mais.