Uma etnia que por anos sofreu massacres e que hoje possui apenas três índios remanescentes de contato em Goiás, os índios avá-canoeiros, que ocupam uma reserva em Minaçu, no norte do estado sofrem com ocupações irregulares em suas terras. Na última semana, uma operação da Polícia Federal (PF) resultou na prisão de sete irmãos que haviam invadido o local e construídos ranchos. E não são os únicos. A PF afirma que outras oito casas irregulares foram construídas e que pelo menos duas delas ainda estão habitadas. No total, a etnia possui oito integrantes entre adultos e crianças.Com idade estimada em 83 anos, Matxa é a mais velha dos avá-canoeiros, seguida pela irmã, Kakwatxa, de 78, e a filha Tuia, de 48. Tuia era esposa de Iawí, considerado líder do grupo que morreu em 2017 após ser diagnosticado com um linfoma metastático. Iawí e Tuia foram os primeiros em mais de 18 anos a chegarem ao final de uma gestação. As mulheres da etnia interrompiam a gravidez motivadas pelos traumas relacionados ao massacre que quase exterminou a etnia indígena. O choro das crianças poderia, por exemplo, revelar a localização dos que fugiam. Em alguns casos, chás de inúmeras raízes abortivas eram ingeridos para provocar os abortos.Em 1987, nasceu Trumak. Dois anos depois, o casal teve Putjawa, a primeira mulher a nascer na etnia em anos. O nascimento de Putjawa foi comemorado, era a forma de dar continuidade à etnia quase extinta. Pesquisadora dos avá-canoeiros, mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Dulce Madalena Rios explica que ao longo da vida os índios trocam de nome e que hoje Trumak e Putjawa abandonaram os nomes de infância e se chamam Jakutila e Niwatima, respectivamente.Jakutila se casou com uma índia guajajara, do Maranhão, mas ainda não têm filhos. Niwatima se casou com um índio tapirapé, do Mato Grosso, o Kapitomy’i, conhecido como Parazinho. Os dois são pais de Pãxeo, de 9 anos; Mareapatyr’i, de 6 anos e Iao’i, de 5 anos. Toda a família mora no local. “Os grupos tapirapé e guajajara são parentes linguisticamente próximos aos avá-canoeiros”, explica Dulce Rios.InvasõesNa última terça-feira (14), sete irmãos foram detidos pela Operação Tupã da Polícia Federal em uma parte das terras indígenas da região. Os suspeitos são filhos de um ex-proprietário das terras, que teria vendido a fazenda durante o processo de declaração indígena. O comprador foi indenizado pela União, mas os filhos do ex-dono não aceitavam a situação e além de construírem ranchos no local, praticaram diversos crimes ambientais como desmatamento de Área de Proteção Ambiental (APP).OrigemChefe da delegacia de repressão aos crimes ambientais da PF, Sandro Paes Sandre explica que os suspeitos tinham uma ação na Justiça pleiteando o direito de posse. Depois de ser indeferido, começaram a ser autuados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os autos foram encaminhados à Polícia Federal e a partir daí a investigação começou. “Eles não aceitam. Se organizaram em forma de associação criminosa e invadiram a terra indígena, como se a terra ainda fosse deles. Disseram que o pai deles não recebeu a indenização. Claro que não recebeu, porque ele vendeu a terra e quem comprou foi indenizado”, completa.A Operação contou com mais de 50 agentes federais que cumpriram, além dos sete mandados de prisão temporária, 14 de busca e apreensão. Além das ordens judiciais, a Justiça determinou a destruição de sete ranchos que foram construídos de forma ilegal na terra e proibiu o retorno dos infratores ao local sem autorização prévia da Funai. Participaram da operação o Grupo de Pronta Intervenção (GPI) e o Comando Aéreo de Operações Policiais (CAOP) e helicópteros institucionais. Seis irmãos foram encaminhados ao presídio da cidade e uma irmã, que morava em Uruana foi levada para a capital, mas teve prisão convertida em domiciliar por ter filho ainda criança. Processo sobre autores corre em segredo de justiçaOs nomes dos suspeitos alvos da investigação não foram divulgados e o processo corre em segredo de justiça, mas o delegado afirma que um deles trabalhava como agente prisional em Minaçu. Todos eles podem responder pelos crimes de invasão de terras públicas da União, associação criminosa, destruição de área de preservação permanente, desmatamento ilegal, caça e pesca ilegal, além do crime de impedimento de regeneração de vegetação nativa no interior da terra indígena. Eles também teriam obstruído uma ação fiscalizatória do Ibama e da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Chegaram a ameaçar a Funai, disseram que iriam atear fogo em uma das viaturas da fundação. Fomos democráticos, tentamos ouvir os envolvidos, mas eles começaram inclusive a afrontar a Polícia Federal. As práticas de crimes ambientais foram acontecendo com mais constância bem como foram dificultando a fiscalização”, acrescenta. “Três dias antes da operação, eles colocaram um trator de esteira no local e abriram uma estrada de terra de sete metros de largura descendo a serra na terra indígena, como se fossem coronéis. Então, além do crime de terra pública, que é patrimonial, existem outros tantos crimes ambientais, além da associação criminosa”, afirmou o delegado da PF. Segundo Paes, os irmãos possuíam residências na cidade, que também foram algo dos mandados de busca e apreensão. Os ranchos construídos na zona rural bem como a plantação de pequenas lavouras era uma forma de justificar o pedido pela terra com a justificativa de subsistência, que não seria real. “Era para dizer que estavam subsistindo ali, o que não era verdade. Afirmavam que só sairiam do local depois que fossem indenizados”. Os nomes dos suspeitos não foram divulgados e desta forma, a defesa não foi encontrada pela reportagem. Terra será mapeada, diz PF A Polícia Federal afirma que uma operação deste tipo faz também com que outras pessoas começam a desocupar instalações irregular. “A ideia agora é mapear toda a ocupação dentro desta terra e pedir ao Judiciário que seja autorizada demolição, como ocorreu com os ranchos. De oito casas construídas, pelo menos seis já não possuem pessoas residindo. Pessoas que pensam em invadir devem repensar. Esta é uma atribuição da PF e não mediremos esforços para cumprir o que é constitucional”, finaliza o delegado Sandro Paes Sandre. “Índios sempre evitaram contato”Pesquisadora dos avá-canoeiros, mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Dulce Madalena Rios afirma que o contato com a etnia foi sempre complexa e que ao longo dos séculos XVIII e XIX, quando ocorreu a colonização de Goiás, houveram embates contra esses índios e a população ficou muito reduzida. A etnia está na região de Goiás e Tocantins desde então. Há estudos que apontam que os avá-canoeiros já chegaram a 1.200 índios e agora chegam no máximo a 40, somando os que ainda vivem na Ilha do Bananal. “Esses índios sempre evitaram contato com o branco e por isso, muito pouco se sabe deles. Viemos saber recentemente porque eles foram contatados como grupo apenas no século XX. Apesar dos esforços do governo colonial e do governo imperial em promover expedições para contato, eles não queriam. É um grupo completamente diferente dos demais que temos aqui no Brasil Central. A família linguística é tupi-guarani, com cultura e língua muito diferente”, explica. Dulce participou de expedições no local pela PUC-GO na década de 1980, quando ainda era Universidade Católica e lembra com carinho de Iawí, que morreu em 2017. “Eles conhecem todas as plantas. Sabem pra que servem, o que é veneno, o que é bom pra comer. Eles conhecem o comportamento dos animais. Uma vez andei com o Iawí no mato, na década de 1980 e ele parou e falou: passou um porco aqui, um tajal. Tinha uma pedra fora do lugar e ele falou assim: um quati passou aqui e mexeu nessa pedra. Eles conhecem cada palmo de tudo que andavam, é impressionante. É sempre uma lição pra nós brancos que em geral achamos que os índios não têm nada para nos ensinar” Coordenador técnico local da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Moura explica que os índios ainda são considerados de recém-contato e que o trabalho feito no local é de auxílio e proteção. “A terra tem mais de 38 mil hectares e temos três barreiras de fiscalização que também servem como ponto de controle de acesso”. No caso das invasões irregulares, por exemplo, diz que os suspeitos não chegaram a ter contato direto com os indígenas. -Imagem (1.2373868)