“A mudança começa dentro de nós. Nosso trabalho visa acolher, socializar e integrar. Terminou o janeiro branco, então vamos fazer o fevereiro colorido!” Palavras assim têm mudado a vida de idosos que participam da Oficina Psicoterapêutica criada pela organização não-governamental Missão Amar sem Fronteiras (Masf). A proposta, voltada a pessoas acima de 55 anos, surgiu para melhorar a condição emocional dessa parcela da população, fragmentada com a pandemia da Covid-19.Desde outubro de 2022, cerca de 40 idosos, homens e mulheres, se reúnem todas as quintas-feiras na sede da Masf no Setor Nova Suiça, em Goiânia, numa grande roda de conversa. Ali falam de suas vidas, de suas famílias, de suas dores e também de seus amores. “Eu perdi seis parentes e várias amigas para a Covid”, conta Divina Carlúcia, 69. Com o isolamento durante a pandemia, fiquei com medo e deprimida. Ela mora no Jardim Buriti Sereno, em Aparecida de Goiânia, e está amando a experiência. “É outra vida!”Leia também: Por falta de recursos, abrigos de Goiânia lutam para sobreviverIdosos pedem pamonha de presente de Natal e se surpreendem ganhando ‘pamonhada’ em asilo de LuziâniaA Oficina Psicoterapêutica ajudou Divina Carlúcia, que é viúva, a encontrar um amor 20 anos mais novo. “Ele que me achou”, conta num largo sorriso, ao lado da amiga Maria Pires. A artesã de 73 anos também relata que sofreu muito durante o pior momento da pandemia quando os quatro filhos, seis netos, três bisnetos e um tataraneto só a via do portão de casa, no Garavelo Park. O isolamento a adoeceu, ela precisou de cuidados médicos e pegou Covid. “Esse grupo é maravilhoso. Às vezes a gente pensa que foi difícil, mas para outras pessoas aqui foi muito pior.”Célia Dias da Silva, 74, traduz o que diz Maria Pires. Mulher retraída desde a infância na fazenda onde nasceu, entrou para um casamento mal sucedido que deu a ela um casal de filhos. Quando se separou, foi acolhida na casa do primogênito, o seu maior esteio. A nora abandonou a casa enquanto ela enfrentava um câncer de mama. O filho comprou uma fazenda e ela chegou a morar com ele na propriedade, mas teve um AVC e precisou de tratamento. Foi numa das vindas a Goiânia para acompanhar a mãe, que ele pegou Covid. Mesmo saudável, morreu aos 43 anos.“Ele deixou um filho de cinco anos. Perdi também minha sobrinha para a Covid. Fiquei arrasada, sem forças, e não queria mais sair de casa, tive síndrome do pânico”, conta Célia, cuja filha mora na Espanha com um filho. Uma amiga a convidou para participar da oficina na Masf. A psicóloga Elizabete Miranda de Ávila relata que uma dinâmica de encher balões revelou a fragilidade de Célia. “Ela não conseguia soprar e aquilo a fez pensar.” Célia, que mora no Jardim Caravelas, em Aparecida de Goiânia, está transformada. “Aqui todo mundo me entendeu. Eu nunca mais tinha sorrido. Eu quero viver!”.Por enquanto, Isabel Cardoso dos Santos, 82, é a participante que mora mais perto da Masf. Viúva, mãe de seis filhos - três vivos - vive num apartamento ao lado da Av. T-63, no Setor Bueno. “Eu sempre fui mais fechada e a pandemia piorou muito o meu emocional, mas quando vim pela segunda vez já me senti diferente. A filha, Rosana Lemes Cardoso confirma. “Ela mudou muito, começou a falar mais. Essa terapia melhora também o ciclo familiar porque não pesa para quem cuida e para quem é cuidado.”Dinâmicas para reforçar o afetoResponsável pela ONG, Fernando Ângulo Rodallegas tem um trabalho conhecido no apoio a imigrantes e refugiados, mas decidiu criar algo voltado para idosos ao perceber o quanto a pandemia mexeu com esse público. “Nós, latinos, gostamos de afeto, de abraços. Os idosos, mais vulneráveis, sofreram muito com a pandemia. Sem contar as famílias disfuncionais que os abandonam.” Para coordenar a oficina, ele convidou a psicóloga Elizabete Miranda, que criou em 2002, numa igreja evangélica do Jardim Vila Boa, o Projeto Afeto como forma de pagar a bolsa universitária da Organização das Voluntárias de Goiás (OVG) que custeou seus estudos.Voltado para idosos, o Projeto Afeto foi levado durante anos para outros bairros, para Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e para Centros de Atenção Integrada à Saúde (Cais), mas acabou desaparecendo. Elizabete levou a concepção para a oficina na Masf e arregimentou pelo menos dez participantes que conhecia do Projeto Afeto, mas o boca-boca já reúne outros 30. “A ideia é tirar eles de dentro de casa no pós-pandemia. Tirar da ociosidade, do sofrimento psíquico e da solidão. Estamos atingindo nosso objetivo”, comemora a psicóloga.Nos encontros, Elizabete cria dinâmicas que levam os idosos a pensar. Uma folha de papel é agitada e o barulho é ouvido por todos. Depois que a amassam, o som desaparece e fica uma lição. “O papel amassado representa as marcas da vida, situações que agitaram e nos incomodaram, mas podemos recomeçar”, diz a psicóloga ao grupo. Um abraço coletivo e as mãos entrelaçadas mostram que ali estão juntos, num processo de cura. Gratidão é a palavra mais mencionada sobre o momento que viveram.No dia 28 de janeiro, o grupo fez o primeiro passeio, numa chácara. “Foi um dia maravilhoso”, diz Fernando. Elizabete concorda: “Foi de uma alegria contagiante.” Fernando quer agora concentrar esforços para envolver no projeto mais idosos da vizinhança da Masf, entre os setores Nova Suíça e Bueno, a exemplo de Isabel Cardoso. “Eu não me misturava com pessoa branca”, diz dona de casa de 80 anosAos 80 anos, a dona de casa Sebastiana Alves de Oliveira leva o grupo a gargalhar. Ela diz que se entristeceu ao machucar uma perna em 2019, restringindo sua mobilidade. Nos dois anos seguintes, a pandemia agravou a instabilidade emocional. “Fiquei parada, tímida e depressiva”, narra. O grupo a deixou feliz e falante. Ela conta que nunca gostou de ficar sozinha. Quatro dias depois de ficar viúva, buscou um substituto para o marido, relacionamento que durou sete anos. Depois deixou seu telefone num programa de rádio e 14 pretendentes a procuraram. “Eu me apaixonei logo por um gay e minha neta me alertou. Aí eu falei: Jesus, eu pedi um varão!” Seu apelo foi ouvido. Andando pela rua, Sebastiana reencontrou Joaquim Rodrigues de Souza, 66, preto como ela, um ex-namorado dos anos de 1970, e nunca mais se largaram, cada um em sua casa. Joaquim, que se separou da primeira mulher, está com ela no grupo. “Ele é uma bênção em minha vida”, comemora Sebastiana. É dela um dos mais fortes depoimentos. “Até entrar no grupo, eu não me misturava com pessoas brancas. Me sinto muito bem aqui.”