O número de crianças não alfabetizadas de 6 e 7 anos de idade no Brasil aumentou em 1 milhão comparando os dados de 2019 com 2021. O estudo produzido pelo Todos Pela Educação utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2012 a 2021.O resultado revelou que crianças pretas e pardas representam maioria dos não alfabetizados e números crescem conforme renda per capita. Em Goiânia, na rede municipal de ensino, apenas 28% dos alunos assistiram às aulas oferecidas de forma virtual durante a pandemia. Agora, a Secretaria Municipal de Educação (SME) busca alternativas para diminuir prejuízo no aprendizado e a expectativa é de que o atraso de conteúdo seja reposto em três anos.Em 2019, 1,4 milhão de crianças desta faixa etária não sabiam ler e escrever. Em 2021, o número passou para 2,4 milhões, representando um aumento de 66,3%. O impacto foi ainda maior nas crianças pretas e pardas, que passaram de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021. Nas crianças brancas, o porcentual passou de 20,3% para 35,1% no mesmo período. E entre as mais pobres, ele aumentou de 33,6% para 51% enquanto nos domicílios mais ricos, o aumento foi de 11,4% para 16,6% (veja quadro).Mestra em Educação, Linguagem e Tecnologias, neuropsicopedagoga e professora do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Carla Salomé explica que o processo de alfabetização tem a idade de 6 anos como correta porque ela é mais propícia, levando em consideração os níveis de desenvolvimento. “Nesse período, a criança está mais apta às habilidades de leitura e escrita. Os estudos da neurociência indicam que, nessa fase da vida humana, o cérebro está mais propício para tal aprendizagem, faz mais redes neuronais. Essa possibilidade vem subsidiar toda a estimulação do desenvolvimento da criança, que, ao ser alfabetizada na idade certa, irá dispor do suporte necessário para que, gradualmente, se insira na vida adulta com maiores possibilidades de se desenvolver de forma autônoma e crítica em diferentes âmbitos dos contextos funcionais das práticas sociais da leitura e da escrita”, completa.Salomé afirma que não é possível negar que a pandemia deixa reflexos na qualidade desse processo, mas acredita que também ainda não há dados legítimos que comprovem que a pandemia prejudicará uma geração. Para a professora, a resposta para esses questionamentos depende de como as políticas educacionais serão implementadas com foco na correção desse fluxo da alfabetização para o público específico de estudantes que hoje já estão nas turmas de 3º ou 4º ano do ensino fundamental. Além disso, ressalta a importância de como os sistemas de ensino vão se organizar e priorizar os investimentos para o público específico dos anos iniciais do ensino fundamental.Secretário de educação de Goiânia, Wellington de Bessa explica que o município já tinha esse problema evidente, e que uma avaliação diagnóstica apontava a ausência de alfabetização na idade correta antes da pandemia.De maneira severa, entretanto, afirma que os alunos da rede municipal foram impactados durante um ano e meio em que ficaram sem aulas presenciais. Logo após o primeiro decreto que suspendeu as aulas presenciais em 2020, a SME desenvolveu um programa de ensino on-line, no qual vídeos gravados eram ofertados, e também passou a entregar atividades impressas nas escolas e CMEIs da capital.InternetBessa diz que para a educação pública os problemas foram ainda maiores que para escolas particulares. Entre os inúmeros pontos, destaca a falta de acessibilidade, internet, aparelhos eletrônicos adequados e supervisão de um responsável. No total, apenas 28% dos alunos matriculados acessaram o sistema de aula virtual durante os 18 meses em que as aulas presenciais estiveram suspensas na capital goiana.“Temos muitos casos de crianças que ficaram sozinhas em casa, com pais trabalhando fora. Às vezes, o celular, que também não é o mais adequado para as aulas, não estava disponível para os filhos. Ainda que esses alunos tivessem todo o aparato psicológico, sabemos que não possuíam condições adequadas de aprendizagem. Esse é um dos motivos pelos quais temos insistido nas aulas presenciais”.A SME afirma que adotou dois projetos a fim de recuperar o conteúdo perdido e que a meta é fazer isso nos próximos três anos (2022 a 2024). “O projeto Aprender Sempre tem algumas medidas pedagógicas com alteração de currículo e preparação de materiais específicos desta retomadas. O outro programa chama Alfabetização em Foco e pretende garantir a alfabetização na idade certa com diagnóstico dos alunos e instrumentos de sistematização para garantir efetividade”, afirma.A neuropsicopedagoga Carla Salomé diz que a situação não é exclusividade local, infelizmente. “Crianças pobres, em condições vulneráveis, enfrentam barreiras acadêmicas e sociais que crianças de famílias economicamente mais favoráveis não enfrentam. Isso porque, pela condição econômica favorável, têm maiores condições de preencher a lacuna deixada pela pandemia, ao pagar aulas de reforço, aulas particulares nas áreas específicas, atendimentos educacionais pagos, entre outros suportes”, finaliza.A pesquisa do Todos Pela Educação reforça o argumento da neuropsicopedagoga. Equanto 51% dos alunos das famílias que compõem os 25% mais pobres não aprenderam a ler e escrever na idade adequada, o mesmo ocorreu com 16,6% dos que estão nas famílias que estão entre as 25% mais ricas do País.Mãe relata dificuldadesRubiane Fialho Alves, de 32 anos, é mãe da Ana Luz, de 8 anos. A menina, que é autista e estudante da APAE, em Goiânia, começava o 1º ano em 2020, antes das aulas presenciais serem suspensas após os primeiros casos de Covid-19 no estado. Filha única, a menina havia acabado de sair do jardim e a pandemia mudou ainda mais a rotina da família, que precisou se readaptar para garantir o aprendizado logo na alfabetização, que é uma fase complexa e importante. A mãe da Ana Luz é formada em química com mestrado em Ensino em Ciências e Matemática. Atualmente, cursa uma pós-graduação em Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo (ABA) e atua ainda como artesã. Mesmo diretamente ligada à educação, afirma que não consegue suprir a necessidade de aprendizagem. “Minha filha é autista e já possui uma dificuldade no aprendizado. É nítido que a falta do estudo presencial e interação social, principalmente com colegas da mesma idade, dificulta ainda mais o processo. Esses dois anos foram de muita adaptação e readaptação”. VídeosEla afirma que tiveram todo o suporte necessário e possível, com vídeos gravados, material escolar, apostila e até mesmo kit merenda escolar que foi fornecido pela Apae. Apesar disso, explica que além das aulas normais, que são oferecidas nas demais escolas estaduais, a Apae disponibiliza terapias como fonoaudiologia, psicólogo e terapia ocupacional, por exemplo, importantes para o desenvolvimento da pessoa com deficiência. “Demorou até conseguirem adaptar as terapias de forma segura. Eu sou professora e já tive dificuldade para ajudar a Ana Luz compreender as atividades. Muitos pais, apesar de todo apoio escolar, praticamente desistiram de ensinar em casa. Pois, além da falta de base pedagógica, outros problemas intensificam a dificuldade, como a própria necessidade especial do aluno, problemas sociais, como dificuldade de acesso remoto, necessidade de trabalhar fora e deixar o filho com outros responsáveis”, completa. HíbridoO sistema da Apae é híbrido: uma semana com aula presencial e outra, remota. Rubiane explica que, desde o início da pandemia, a escola tentou manter a turma unida, mesmo que distante fisicamente. Hoje Ana Luz está no 3º ano e, assim como os demais, conta com aulas planejadas para a readaptação, com respeito às capacidades individuais. “Eu parto do princípio que o aprendizado é sociointeracionista, então a criança está aprendendo em todos os momentos, na locomoção até a escola, com seus semelhantes em brincadeiras, com todos os profissionais na escola, até porque a criança observa tudo. Então a pandemia deu um corte nesse movimento de aprendizagem, no momento que as crianças estão também com o desenvolvimento do corpo, cérebro e conexões neurais a mil”. Rede particular também tem desafiosVice-presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino de Goiânia (Sepe), Marselha Cristina de Oliveira afirma que, mesmo nas escolas particulares, a situação de cada aluno e instituição precisa ser observada de forma individualizada. Isso porque, apesar de a maioria ter mais acesso e acompanhamento que alunos da rede pública, algumas famílias também tiveram problemas e nem todas as crianças se adaptaram às aulas virtuais. Assim como na rede pública, as instituições privadas fizeram uma análise diagnóstica dos alunos para poder criar ferramentas de ensino para os próximos anos. “Famílias que tiveram pai, mãe ou um responsável acompanhando atividades, seguindo orientações da escola em casa, que conseguiram dar mais atenção para processo, conseguiram resultado maior. Mas não é realidade de todas as famílias. Tivemos crianças que tiveram dificuldade de concentração com ambiente agitado, às vezes não tinham equipamentos ou internet adequados, bem como alguém que pudesse acompanhar. Lacunas são individuais”, completa Marselha. O sindicato avalia, de forma geral, que a alfabetização virtual destas crianças foi positiva, mas também atribui o resultado aos anos anteriores. “Sabemos que muitos alunos do 1º ano já tinham uma bagagem de letramento grande nas escolas particulares, porque entraram dois ou três anos antes. Somos privilegiados porque a maior parte dos alunos tinha acesso, equipamento, e também conseguimos usar aplicativos e plataformas de ensino com agilidade. De toda forma, escolas estão criando estratégias diferentes a partir de agora”, conclui. -Imagem (1.2401771)